Sônia Fleury resgata a história e potência do SUS

Nos anos de chumbo, um grupo de ativistas e pensadores criou as bases do maior sistema de saúde pública do mundo. Como esta construção se deu; por que foi interrompida pela mercantilização; e de que modo retomá-la

Entrevista a Antonio Martins

MAIS
> O texto a seguir foi construído a partir de entrevista de Sônia Fleury, que está transcrita ao seu final. Acesse também as versões em vídeo (link acima) ou podcast (abaixo).

> O projeto Resgate, por meio do qual Outras Palavras quer debater ideias-força para a reconstrução do Brasil em novas bases, pode ser conhecido aqui.

Gramsci, Nicos Poulantzas, David Capistrano Filho e Orestes Quércia. Os núcleos do Cebes – Centro Brasileiro de Estudos sobre Saúde — espalhados pelo país. A Teoria Monetária Moderna e, em oposição diametral a ela, os planos de privatização de Bolsonaro e Marcelo Queiroga. Todos estes elementos estiveram presentes na entrevista em que a cientista política Sônia Fleury compartilhou, com Outras Palavras, uma pequena parte de sua memória sobre os primórdios da criação do SUS, em meados dos anos 1960. O diálogo, que lança a fase preliminar do projeto Resgate, tem, além do interesse histórico, poder de inspiração política. Ele revela como, mesmo em tempos muito difíceis, é possível identificar e explorar fissuras no sistema de opressão. E sugere fazê-lo combinando visão utópica (“às vezes, nos víamos na galáxia de Andrômeda”, lembrou Sônia) com pé no chão e pragmatismo político.

É impossível reduzir a entrevista ao espaço deste texto. Valem apontar, como guia para o vídeo que a registra, alguns destaques. Sonia enxerga três processos, sucessivos e em parte entrecruzados, na construção do SUS. Chama-os de Subjetivação, Constitucionalização e Institucionalização. O primeiro é o mais fascinante e menos conhecido. Coincide com a emergência do movimento pela Reforma Sanitária.

Em meados dos anos 1970, ainda nos “anos de chumbo”, um conjunto de pensadores originais articulou-se no Cebes. Refletiam sobre a Saúde não apenas como futura política específica – mas como conceito em disputa, em torno do qual era possível construir nova hegemonia cultural e questionar as relações sociais. Atuavam nas universidades (especialmente a Escola Nfcacional de Saúde Pública, hoje parte da Fiocruz e o Instituto de Medicina Social da UERJ). Relacionavam-se intensamente com os sindicatos (que emergiriam como atores destacados a partir de 1978) e os movimentos sociais então nascentes. Tinha papel articulador o Partido Comunista Brasileiro.

Os pioneiros da Reforma Sanitária orientavam-se por um marxismo renovado, que bebia de Gramsci, Nicos Poulantzas, Giovanni Berlinguer e outros autores (David Capistrano Filho, que mais tarde seria prefeito de Santos, publicava-os na revista do Cebes). Certamente observavam o Sistema Nacional de Saúde inglês (NHS). Mas criaram conceitos próprios (como Saúde Coletiva) e uma forma particular de ação política. A vitória da oposição à ditadura, nas eleições de 1976, deu-lhes base para atuar na prática, nas prefeituras. O desgaste do regime continuou a se ampliar e aos poucos formou-se o caldo que permitiu propor novas políticas em plano nacional. Ele foi engrossado pela ebulição dos movimentos por saúde nas periferias e pela crise financeira do então INPS (que reunia Saúde e Previdência), no governo do general Figueiredo. Ao fim da ditadura, em 1985, havia, em favor da Reforma Sanitária, um movimento influente, sólido ponto de vista teórico e capilarizado.

A fase de constitucionalização do SUS abre-se com a queda do regime e se fecha em 1988. Sônia discorda dos defensores da hipótese, hoje corrente, segundo a qual estabeleceu-se então um pacto de governabilidade (que teria durado até o golpe de 2016). Participante ativa da Constituinte (na condição de assessora do senador Almir Gabriel), ela lembra que a Carta de 1988 foi a resultante de conflito intenso. O capítulo dos Direitos Sociais da Constituição estabeleceu conquistas inéditas. Mas a concepção da Ordem Econômica é liberal. O próprio financiamento às políticas públicas que poderiam efetivar os novos direitos é precário. E o então presidente José Sarney afirma que a Carta tornou o país “ingovernável”. Ou seja: em vez de grande acordo, abre-se uma disputa permanente – e ela não terminou…

A institucionalização do SUS vai se dar a seguir, sempre neste ambiente de enfrentamentos. A decentralização do sistema, prevista desde as concepções iniciais da Reforma Sanitária, permite conquistar aliados. Os governos estaduais e em especial as prefeituras – que sofrem pressão direita dos eleitores – são resistência real às tentativas de desmonte da Saúde pública. Mas também estão presente, no SUS real, contradições que remontam a décadas e nunca foram resolvidas. A privatização da rede de atendimento é uma delas. Sônia relembra que, no Brasil, ela começou ainda durante a ditadura, com o estímulo aos hospitais privados. Foi se ampliando nos anos de democracia de baixa intensidade, quando o Estado passou a conceder múltiplos benefícios aos planos de Saúde privados. E contamina parte dos movimentos sociais: veja-se o apego dos sindicatos a estes planos…

O confronto tende a se acirrar, no próximo período. O ministro Marcelo Queiroga deixa claro, em parte de suas falas, que seu objetivo é levar a privatização a novo patamar. Neste cenário, o SUS deixaria de existir como um sistema único e coordenado. Emergeria algo que alguns já chamam de Sistema Nacional de Saúde – uma colcha de retalhos caótica e orientada pela lógica do lucro, em que cada empresa ofereceria seus serviços, mas sem abrir mão jamais do financiamento público… Num país empobrecido e de classe média em extinção, explica Sônia, a medicina empresarial sabe que será alimentada, essencialmente, pelos vouchers estatais, de que tanto fala o ministro Paulo Guedes.

A alternativa está por construir. Ao final da entrevista, Sônia lembra que ela dependerá do fim das políticas de “austeridade” e “teto de gastos”. Por isso, são tão importantes os movimentos que questionam (inclusive entre os economistas) o neoliberalismo fiscal e propõem a retomada do investimento público – não para subsidiar lucros privados, mas para alcançar objetivos de justiça social e ambiental. Não bastam recursos, porém. É preciso retomar o impulso inquieto e transformador da Reforma Sanitária.

Como fazê-lo, na prática, é assunto para outro capítulo do Resgate. Sônia Fleury, colaboradora destacada do projeto, ajudará a desenhar, a partir do final de julho, a ideia-força que trata do tema. Mas recuperar a história da luta pela Reforma Sanitária, travada em condições tão desfavoráveis, ajuda a lembrar que o fascismo por der vencido; e a devastação nacional, superada.

Eis a transcrição do diálogo:

Antonio Martins: Oi, eu sou Antônio Martins, editor do Outras Palavras. Esse é o projeto resgate e nós temos uma alegria e uma honra muito grande de estar aqui com a Sônia Fleury, professora do Centro de Estudos, pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, tem uma série de outras qualificações, políticas, acadêmicas, de militância, de estudo. Ela reúne as duas características que a gente quer aqui no resgate: ela é pensadora e ela é ativista na luta por outra sociedade.

O resgate é um projeto lançado pelo Outras Palavras, há poucos dias, e objetivo dele é refletir sobre o Brasil nas condições de luta contra o bolsonarismo, portanto, contra o projeto fascista e na tentativa de reconstruir o Brasil em novas bases a partir do possível sucesso dessa luta pelo qual nós tamos batalhando muito.

A ideia essencial do resgate é que o Brasil não pode voltar simplesmente ao velho normal, porque foi o velho normal que trouxe, que nos colocou no fundo do poço. Nós precisamos retomar a imaginação política, retomar a construção de novos horizontes políticos e isso vai ser feito numa combinação de luta eleitoral, luta política eleitoral, mas de muita mobilização da sociedade, também, pra refletir sobre os quarenta anos de retrocessos neoliberais, sobre o o nosso passado colonial, sobre as possibilidades de superar tudo isso.

Há um elemento positivo e um elemento de esperança, nessa situação toda, que é o declínio, num certo sentido, a crise profunda do neoliberalismo, essa ideia que governou o Brasil nos últimos quarenta anos, a ideia segundo a a qual as sociedades e os estados tinham que se limitar a administrar as finanças públicas pra não perturbar os mercados financeiros, sob o risco de serem punidos severamente.

Essa ideia foi contestada em várias partes do mundo, o sucesso da China num certo sentido foi construído contra essa ideia, essa ideia entrou em crise maior na pandemia e, maior ainda agora, com o lançamento de um conjunto de pacotes pelo governo Biden, que tem todas as suas contradições e e todo o seu projeto hegemônico internacional, mas que desencadeou um conjunto de medidas de programas que rompem com essa ideia segundo a qual a sociedade só pode gastar aquilo que arrecada.

Bem, o resgate começa, oficialmente, digamos assim, em julho, mas nós estamos fazendo, a partir de hoje, uma série de encontros preliminares com pessoas que inspiram, digamos assim, essa essa possibilidade de refletir sobre o Brasil, de construí-lo em novas bases.

E nós fizemos questão de começar essa série com a Sônia Fleury, pela importância que ela tem como pesquisadora, pelo ativismo dela em paralelo a esse processo de reflexão sempre sobre o Brasil e porque ela vai nos contar aqui uma história que é muito muito inspiradora também pra situação em que a gente está.

A Sônia fez parte do grupo de pessoas que lançaram a ideia da Reforma Sanitária, ainda nos anos setenta, a ideia que depois levou à construção do SUS. Tem duas coisas que nos interessam muito, e eu não vou me estender porque a Sônia tem muita história pra contar, mas que permitem estabelecer um certo paralelo com a situação que a gente tá vivendo no Brasil.

Uma, a capacidade que esse grupo de pioneiros teve de enxergar, numa situação extremamente difícil, uma brecha, uma brecha de democratização. O SUS, a Sônia vai falar da década de setenta, mas em setenta e quatro estávamos na ditadura brava ainda. Em setenta e quatro cai a maior parte da direção do Partido Comunista Brasileiro, em setenta e cinco Vladimir é assassinado, em setenta e seis há o massacre da Lapa… Ou seja, é o período de repressão brutal da ditadura e, nesse período, esse conjunto de pessoas que eram militantes políticos imagina uma possibilidade de encontrar uma brecha que a Sônia vai nos contar.

E outra coisa que que nos inspira muito a ouvir a Sônia é o que ela estava me contando numa conversa particular, outro dia, sobre a contradição nos dois pés, num certo sentido, que marcaram a construção… eles se chamavam pessoal de Andrômeda, que faziam sonhos intergaláticos, mas ao meu entender eles não perderam a capacidade de imaginar um futuro muito além do que era pragmaticamente possível naquelas circunstâncias, eles projetaram para uma situação futura, em que as condições de força seriam diferentes, e ao mesmo tempo eles souberam ter muito pé na realidade. Olhar em Andrômeda e o pé na realidade, pra aproveitar as condições concretas que foram surgindo.

Boa tarde, Sônia, é uma alegria muito grande falar com você na abertura do Resgate.

Sônia Fleury: É um prazer enorme estar aqui nessa abertura e poder compartilhar essa história tão rica que a gente viveu e continua vivendo, né? E continuamos empurrando pra ver se se o mundo anda, se transforma, né?

Antonio Martins: Sônia, eu acabei esquecendo de te apresentar, outra característica da Sônia que a gente vai destacar no Outras Palavras é que, em breve, ela é uma das organizadoras do dicionário das favelas, Marielle Franco, uma outra iniciativa de ativismo e de conhecimento. Mas vamos voltar pro passado. Sônia, em que lugar você estava e como você viu o surgimento do SUS?

Sônia Fleury: Primeiro, eu acho que é o importante diferenciar que o SUS é uma construção, um projeto institucional, mas que o que antecede isso é o projeto político. Então, o movimento da reforma sanitária, ele antecede eh o que eu participei, desde o início, e dessa construção de um sujeito político que vai construir um projeto, mas não é o projeto e nem a institucionalização, que foi possível ser feita, que é o SUS, que nos mobilizou.

O que nos mobilizou era a luta contra a ditadura, vista de vista dentro de uma análise setorial. Nós trabalhamos no setor saúde e identificamos as crises, e acho que isso tem muito a ver com o momento atual, a capacidade que nós tivemos de ver que o autoritarismo da ditadura estava em crise.

Então tinha uma crise econômica, tinha uma crise sanitária que a gente, então… essa noção de crise foi o que nos nos possibilitou pensar longe, quer dizer, como trabalhar essa questão da crise. E nós trabalhamos a partir de dois dois pilares, assim, que era a produção do conhecimento, quer dizer, repensar as categorias de análise da área de saúde, que era o que nos interessava, para poder agir politicamente.

Então era a construção de uma nova forma de pensar na área de saúde. Com que categorias? Com que instrumentos? E depois, qual era a estratégia política de transformação. Então, do ponto de vista do campo do conhecimento, a gente teve a contribuição que começou nos departamentos de medicina preventiva, toda essa história começa nos departamentos de medicina preventiva, nos projetos de extensão em Paulínia e outros lugares de interior de São Paulo, e de outras partes do país, que começam a discutir os limites da prática e da organização liberal da medicina.

E o Aruca faz uma tese que é um marco, que é sobre o dilema preventivista, quer dizer, a vontade da prevenção, mas ao mesmo tempo o limite da concepção liberal, daquele formato da medicina. E a gente usava o método histórico-estrutural, para analisar e repensar o que a gente chamava de organização social da prática médica… Como é que se organiza e o que que determina? Então, nós tínhamos dois conceitos centrais, que era a determinação social da saúde e doença, e isso hoje está muito institucionalizado e se fala muito, mas naquele momento era uma concepção nova, que inaugura um campo de saber novo, que é a saúde coletiva, né?

Que essa saúde coletiva, inclusive, é uma distinção nossa em relação aos companheiros da nossa América Latina, que estavam lutando pela mesma coisa, e que continuavam falando da medicina preventiva ou da medicina social. E nós partimos para criar um outro campo, que é a saúde coletiva, que já não guarda a ideia da medicina, é da saúde.

Antonio Martins: Esse conceito foi criado por vocês aqui no Brasil Sônia?

Sônia Fleury: Aqui no Brasil, não existia em mais lugar nenhum. Os nossos companheiros todos, da saúde latino-americana, que nós sempre for muito articulados através da ALAMS, falam ainda a medicina coletiva, medicina preventiva ou, mais claramente, medicina social, e alguns começam a falar “saúde coletiva é brasileiro”. É a marca da reforma sanitária a construção de um campo e as primeiras

Antonio Martins: Sônia, só pra te interromper um pouquinho, porque você está muito familiarizada com isso, mas eu acho que muitos dos nossos leitores, dos nossos e e ouvintes, não. Você fala muito nós, quem era esse nós? Que movimento era esse? Que coletivos eram esses, que em plena ditadura estavam pensando uma nova forma de enxergar a saúde?

Sônia Fleury: O nós, institucionalmente, era o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (CEBES), que foi criado pelo o David Capistrano e pelo José Ruben, aí em São Paulo, com a ideia de que era preciso difundir, através de publicações, uma nova concepção da área de saúde. Então o Davizinho foi fundamental, mas ele ele tinha uma uma visão muito de de editor. Então ele criou a revista, criou uma editora, e aí traduziu vários autores, como Giovanni Berlinguer, que era do PCI italiano e tal.

Depois, logo em seguida, o CEBES vem para o Rio. Quando os CEBES vem para o Rio, ele ganha uma outra concepção, mais de movimento social. A ideia, de não só de de de publicar e difundir aquela coisa, essa sempre foi fundamental, mas de criar um ator político, de criar movimento.

Antonio Martins: Nós estamos em setenta e seis, mais ou menos.

Sônia Fleury: É, setenta e setenta e seis, setenta e oito… eu ingresso nisso em setenta… setenta e quatro, eu vim pro Rio… é, por aí, em setenta e seis nós estamos nessa nessa história. É, e já tinha acontecido uma coisa importante, que em setenta e quatro as eleições, em várias cidades de porte médio, ganharam prefeitos de oposição, mesmo durante a ditadura. Então houve um esforço, nesse momento… Campinas, Londrina, Niterói, de testar essas ideias.

Eram ideias vistas dentro de uma universidade ou de um núcleo de estudos político, mas pouco testadas, de como é que nós podemos organizar um sistema de uma forma diferente, né? Pensando essas questões da organização social e da determinação da prática médica. E foi muito importante, porque aí se introduz um componente mais prático de gestão. Como é que nós vamos levar isso adiante. E foram através dessas experiências.

Depois teve também uma experiência fantástica pra nós, que foi, naquele momento, a organização Pan-Americana (OPAs) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) eram bastante progressistas, coisa que não são mais hoje. Elas hoje competem com os nossos conceitos. A gente fala de direito universal à saúde, porque a gente quer uma igualdade no acesso, na utilização, e a Organização Mundial da Saúde adotou cobertura universal de saúde, ou seja, cada pessoa estando coberta, mas mesmo sendo com acessos diferentes de acordo com a capacidade de comprar um seguro, ou de ter um plano, ou de enfim…

E que é muito diferente da ideia do direito e da igualdade da cidadania, né? Do direito cidadão. Mas naquele momento a OPAs era muito importante e mesmo na ditadura nós conseguimos um financiamento. E essas pessoas que estavam em várias áreas da saúde, já movimentava as secretárias de saúde, desses mais progressistas, e havia algumas com uma capacidade de gestão grande como era São Paulo, como era Minas Gerais.

E Minas Gerais, então, a área de planejamento da secretaria faz uma um convênio com a OPAs, com recursos pra se criar um projeto que foi chamado Projeto Montes Claros, então aí foi o grande teste. Porque nós, enfim… se reuniu ali, em Montes Claros, um conjunto de atores políticos envolvidos na construção de um sistema, de um proto-sus, daquilo que nós queríamos que fosse.

E só que entre Montes Claros e o que virou o SUS, vai uma diferença de contexto político, de nível, de tudo. Pra você ter uma ideia, um livro que eu organizo sobre vinte anos do projeto Montes Claros, chamado Montes Claros, a utopia sanitária, utopia revolucionária, utopia sanitária.

Antonio Martins: Montes Claros foi em que ano?

Sônia Fleury: Eu não me pergunto a data, rsrs, eu não sou capaz, rsrs, mas enfim, eu não sou capaz, rsrs, número eu não decoro, mas as coisas, as análises políticas eu decoro, rsrs. Isso é capital, e tem uma coisa muito interessante que acontece lá, porque o diretor, o Chicão, que era um um quadro técnico extremamente importante, mas com uma origem católica forte, ele tinha uma forte ligação com toda militância católica e tal. Então, lá se discutia, a cada dia se reuniam todos os técnicos, sejam eles nacionais ou internacionais, porque vinha muita gente fora e tudo mais, nós, que estávamos aqui, acho que já era setenta e oito, íamos lá dar assistência, o Arouca, eu, o Pelegrino, enfim, várias pessoas… E eles lá discutiam, no final do dia, tudo que tinha acontecido e planejavam a a orientação e a estratégia tática de implantação do dia seguinte.

E nessa discussão participava o motorista, a moça do cafezinho, a cozinheira, todo mundo igualdade de condições. Então, teve um dia que tinha um técnico, americano, que vindo pela OPAs, e que disse que aquilo era uma loucura, que não dava pra fazer planejamento com aquele público discutindo, todo mundo em igualdade de condições. E o Chicão insistia que aquilo sim é que era planejamento, e a essa discussão ficou lá, está tudo isso no livro, é muito forte, e até que o técnico disse para o Chicão “mas você me diz, um único exemplo, onde a política se sobrepôs à técnica no planejamento” e ele, Chicão, respondeu “no Vietnã, vocês perderam a guerra porque estavam todos os vietcongs participando, então a participação é muito importante e vai continuar assim”.

Eram outros tempo, eram outros tempos maravilhosos, em que a gente sonhava, por isso a gente fala da utopia, já chamando esse projeto de um projeto de utopia, e com o pé na terra, foi ali nós estávamos construindo, efetivamente construindo um sistema de saúde.

Antonio Martins: Sônia, pra gente só pra continuar montando o quebra-cabeça, desculpa te te interromper de novo, rsrs.

Sônia Fleury: Não, mas não pode interromper, por que se não eu vou eu vou direto.

Antonio Martins: Tem um mosaico muito bonito aqui, porque você está falando do CEBES, do CEBES como centro de edição, inclusive, de ideias, de autores contemporâneos naquela época, importante pra renovação do pensamento marxista, num certo sentido. Você está falando do CEBES quando vai pro Rio, que se articula mais com um movimento sociais, você está falando de um conjunto de prefeituras ou oposicionistas que começam a fazer embriões de políticas diferentes, mas parece que também tem um papel importante de duas instituições acadêmicas e do Partido Comunista, como que é isso?

Sônia Fleury: Olha, o partido, eu acho que foi fundamental porque, na estratégia política… Olha, acho que nós estávamos falando mais da produção de conhecimento… Deixa eu só terminar esse ponto da… a revista do CEBES, ela era muito importante porque ali se foi demarcando o que era o conhecimento da saúde coletiva, o que entrava, o que que não entrava, as grandes discussões, tanto teóricas, quanto políticas. E essa revista era distribuída no Brasil inteiro, em condições muito precárias, a gente viajando, O Temporão, que foi ministro, saia dali levando o pacote pra São Paulo, para poder distribuir no núcleo de São Paulo… Enfim, havia núcleos do CEBES, como existe até hoje. O CEBES tem quarenta anos e continua com uma juventude incrível, trabalhando e tudo mais… e a revista chegava e era o ponto de discussão, as pessoas discutiam o conteúdo da revista, então essa a ideia da difusão do conhecimento, de um novo conhecimento, e de ampliação da consciência sanitária, que era o conceito que a gente usava, eram fundamentais.Ou seja, a luta pela hegemonia, nesse sentido, né?

E a estratégia política, que também tinha uma enorme discussão, está tudo isso retratado lá, ela assumiu assim o slogan da saúde à democracia e da democracia à saúde. Ou seja, nós, e hoje é mais atual do que nunca, ou seja, mesmo que você tendo o SUS, um programa de vacinação como nós temos no Brasil, com êxito, reconhecimento internacional, se você não tem democracia, isso tudo num funciona.

Então nós, já daquele tempo, dizíamos isso, ou seja, tínhamos que politizar a saúde para democratizar a saúde, para que a democracia nos permitisse que as que as pessoas tivessem saúde. E uma das questões fundamentais ali, além da informação e da difusão, era da organização, ou seja, tínhamos muito claro, e aí isso era uma mudança em relação à proposta anterior, que era preciso nos organizarmos, nos organizar como um movimento.

E esse movimento, através desses instrumentos que nós tínhamos, mas essa fase, essa questão da organização eu acho que assim, a influência dos comunistas, do Partido Comunista, era muito importante. Porque o partido sabia organizar, sabia levantar dinheiro, sabia fazer finanças, sabia… enfim, movimentar. E organizar não era só um movimento de base, era um movimento que organizava. É claro que o CEBES e o movimento sanitário é muito maior do que isso. Tinha várias pessoas que não pertenciam ao Partido Comunista, ou que eram de outros grupos e tudo mais, mas a hegemonia era dos comunistas, e eu acho que isso foi fundamental porque concretizava esse movimento, dava concretude a esse movimento, a questão da organização.

Depois tinha as estratégias políticas, né? As estratégias eram a ideia de que a saúde, isso é Giovanni Berlinguer, de que a saúde assim como democracia são conceitos supraclassista, ou seja, eles tinham ser disputado pelas classes, eles não pertenciam nem à burguesia, como a gente dizia democracia buguesa, antigamente, e tudo mais, e nem à classe operária. Ou seja, era discutir e disputar o conceito de democracia e o conceito de saúde, que também é um conceito tão amplo e genérico que permite essa disputa.

Então, a ideia era essa, uma luta mesmo por um processo civilizatório, de busca de hegemonia e tudo mais… e nesse sentido se pensava que era preciso ampliar as alianças, era preciso que nós levássemos isso para além do próprio movimento. Então, por exemplo, o parlamento passou a ser uma arena importante pra nós. Em setenta e oito, e essa é a única data que eu vou lembrar, rsrs, porque é dez anos antes da constituição, então para mim fica meio marcado porque eu fiz uma comparação entre esses dois textos… três professores do Instituto de Medicina Social sintetizam as nossas propostas num documento fundamental, o Fiore e o Reinaldo e o Edson Cordeiro, e o Reinaldo propõe ao Arouca, que dirigia o CEBES, naquele momento, que o CEBES assumisse esse documento.

Então a gente rediscuti o documento e tal, e como instituição leva esse no primeiro simpósio de saúde da Câmara. E esse foi um momento, assim… eu acho muito marcante na história nossa como movimento sanitário, porque nós nunca tínhamos estado nenhuma arena pública diante das pessoas que eram os nossos opositores, que eram os donos dos hospitais, da Federação Brasileira de Hospitais, dos Seguros de Saúde, ABRAMGE, e que estavam todos eles ligados ao estado da ditadura, que privatizou enormemente a saúde, a área da previdência e tudo mais.

Então essa ideia de levar essa proposta e de nos confrontar, numa arena que nós tínhamos naquele espaço igualdade de condiçõe,s porque nós podíamos falar, eles podiam falar. Então, ali estavam eles, parecia a CPI, com os seus advogados, aqueles homens de terno e tudo mais… e nós, aquele bando de pessoal com cara de universitário de esquerda. E nós percebemos, nesse momento, que eles não tinham uma proposta a não ser a manutenção de tudo como estava, com o qual eles se beneficiavam, e que nós tínhamos uma proposta consistente.

Então isso nos deu uma autoestima, uma força, porque a gente tinha um projeto que podia levar a outra questão estratégica, era a questão de ocupar espaços no estado, ocupar os espaços possíveis. Isso também, não era consenso, teve muito debate, tem lá textos meus e do Jaime em uma discussão… se nós estávamos sendo cooptados ou não éramos cooptados, enfim, que era a revolução ou não era reforma, o que era… mas a ideia de entender, como ambulâncias, que as lutas passavam pelo interior do estado, mas é claro que ali ninguém era ingênuo, como se coloca hoje o Mandetta, o Teisch, de achar que dá pra entrar pra ser ministro da saúde do Bolsonaro, e depois, um mês depois, ou um ano depois, ficar desiludido porque não deu certo.

Não era essa a ocupação que nós… a ocupação era, onde estão as fissuras dentro do estado autoritário, que nós possamos ocupar implementando o projeto. Então era uma outra visão. E essa fissura apareceu na crise da previdência, nos anos oitenta… oitenta, eu acho. Na crise da previdência, em que ficou claro que aquele modelo, que era o modelo de privatização do INAMPS e de compra de serviço que o doutor Gentili chamava de dar um cheque em branco, porque ela recebia uma conta dos hospitais que ela contratava, sem nenhum controle… então havia fraudes, havia tudo, e levando, inclusive, a questões para área de saúde muito ruins como, por exemplo, transformar o parto em cirurgia, que até hoje no Brasil isso ocorre…

Por quê? Porque o INAMPS pagava mais pela cirurgia do que pelo parto natural, então induzia a um um supergasto, à superespecialização e tudo. Quando tem a crise financeira, não sabendo como sair disso, chama-se os sanitaristas para ocupar esse espaço. Então vão pra ali pessoas do nosso grupo, o Cordeiro, o Saraiva, o Temporão, o pessoal que está no CEBES, o Noronha, então essas pessoas vão e aí introduzem os germens do sistema de saúde, porque… Do SUS que nós queríamos, porque eles colocam que, olha, o único jeito de atender a população sem gastar dinheiro, que a crise era financeira, sem gastar mais dinheiro, é fazer um convênio da previdência que era o INAMPS, que só atendia aos aos que tinham carteira assinada, com as secretarias da saúde, o ministério em decadência, as secretarias estaduais em total decadência… mas tinham os serviços, tinham os profissionais, mas não tinham dinheiro.

Então fazem esse convênio criando, conforme o que foi chamado SUDS, naquele momento, e que, por que ele era transformador, né? Primeiro porque unificava o sistema e criava um sistema único, não criava, mas era um gérmem de criação da junção do Ministério da Saúde com INAMPS, que era o projeto SUS. Depois porque universalizava, ou seja, se no INAMPS, só se podia atender pessoas que estavam no mercado formal de trabalho, uma secretaria tinha que atender todo mundo, então universalizava. E terceiro, descentralizava, que era outra parte do nosso projeto, e essas foram experiências fundamentais pra gente inovar, experimentar, consolidar e introduzir fissuras num estado autoritário e em crise, como a gente entendeu aquilo.

Antonio Martins: Isso foi possível em grande medida, Sônia, porque tinha uma conjuntura bastante particular… era uma conjuntura de uma ditadura já em declínio, já derrotada em algumas eleições e já envolta numa crise econômica que começa com a crise do petróleo, lá em setenta e três, e um pouquinho depois vão surgir as novas manifestações dos estudantes e vai vão surgir vai surgir o movimento operário a partir de setenta e oito. Você quer falar um pouquinho sobre esse movimento? Como que vocês se viam nesse movimento? Num certo sentido, vocês foram parte da construção dessa contraofensiva, dessa contra-hegemonia, como é que você compara aquela situação com a de hoje, por exemplo?

Sônia Fleury: Havia uma efervescência enorme na sociedade, de movimentos lutando pela pela reforma urbana, pela reforma sanitária, pela reforma agrária, pelas lutas das centrais sindicais que apareciam, enfim… Do movimento sindical, e enfim, era todo um conjunto e e não só isso… a gente se aliou a pessoas também que não eram tão à esquerda assim, como esses movimentos, por exemplo, o movimento municipalista que era o Quércia. Mas nós queríamos descentralizar, e esse movimento municipalista também queria que as coisas, que as políticas fossem descentralizadas.

Então havia vários atores, não todos tão à esquerda, e não todos tão, nem todos movimentos também, alguns eram movimentos que não tinham tão claro um projeto setorial como o nosso, mas era um conjunto, na sociedade, muito forte. A gente tinha ligações, através das discussões de saúde do trabalhador, e tudo isso com o movimento sindical. Mas o momento sindical também já buscava formas de buscar seguro saúde e tudo mais… nos apoiavam, mas a prática era um pouco diferente.

Então, é dentro desse conjunto, que a gente vai parar na, eu acho que tudo isso, deságua na Assembleia Nacional Constituinte. Onde nós conseguimos imprimir coisas extremamente importantes, que eu acho que é fundamentalmente o capítulo, o título oito, que é o título da ordem social. Eu acho que ali é a grande inovação dessa constituição, é o título da ordem social, que não existia antes, ali aparece um conjunto de direitos que expressavam a transformação da sociedade.

Estão ali os indígenas, está ali a educação, a ciência e tecnologia, os meios de comunicação, os idosos, os jovens, a assistência social como direito da seguridade social, a saúde, a previdência, isso tudo que está sendo hoje objeto de demolição, foi ali a inovação. Eu acho… muita gente fala assim “ah, porque o pacto da constituinte, e hoje está se desmoronando e tal”… eu acho que não teve pacto, eu não concordo com essa visão. Acho que teve um enfrentamento.

Antonio Martins: Enfrentamento em que havia forças. Não um pacto.

Sônia Fleury: Com uma resultante mais limitada porque, por exemplo, nós conseguimos colocar coisas fundamentais, o nosso projeto foi constitucionalizado. E, mas por exemplo, nós conseguimos inclusive levar, puxar a área da assistência, eu era assessora o Almir Gabriel, do senador Almir Gabriel, na redação da seguridade social lá, e eu dizia que não tem como, senador, ter seguridade social sem ter assistência. Aí ele dizia, mas assistente, que assistência sempre foi no lugar das primeiras damas e não do direito. Isso aí não dá nem pra definir.

Aí um dia ele perdeu a paciência e disse “se você conseguir definir, eu ponho”, mas aquilo lá de eu ponho… ele punha e no dia seguinte aquilo caia, né? Vinha outro lobby e caia. Mas o Conselho Federal da assistência social já discutia assistência como direito, embora não tivesse uma organização e um projeto como o nosso, mas já estava antenado na ideia de que… a partir daí eu abri a porta e elas entraram, as assistentes sociais, copiaram, copiamos tudo do SUA, do SUAS, o SUAS, na Constituição, tem a cara do SUS, e só depois desses últimos trinta anos é que realmente se constituiu uma institucionalidade e uma coisa própria do SUS.

Mas foi muito interessante, a saúde tinha ali, nós criamos a plenária da saúde na constituinte, que era uma organização que funcionava lá todos os dias, tinha uma plenária em que todas as pessoas que estavam lá fazendo lobby, e tudo mais, de todas as organizações se juntavam pra traçar, fazer uma análise do que que tinha acontecido e para onde que a gente podia caminhar… tinha divisões entre nós também, não era assim tão tão simples, né? Principalmente porque tinha a ala do INAMPS e a ala do Ministério da Saúde, e… pra onde ia a unificação era uma questão de poder também, então essa questão, enfim também pegava.

Então acho que foi um momento fundante, fundamental assim de de colocar, eu falo que o processo de reforma nosso, ele tem três momentos… Que alguns com alguma sinergia ou outros nem tanto. O primeiro é esse processo que eu chamo de subjetivação, a formação do sujeito político, e esse sujeito político foi o movimento da reforma sanitária e que existe até hoje… você vai no Brasil, tem pessoas que identificam com o movimento da reforma sanitária no Brasil inteiro, profissionais, intelectuais pelo Brasil inteiro e tudo mais…

Depois você tem esse momento de constitucionalização, que é o momento de transformar aquilo e dar uma base legal, direito à saúde, um direito universal, o SUS constitucionalizado e tudo mais. Essa… e é interessante porque começam aí, logo em seguida teve os grandes embates. Ah, eu ia falar que houve enfrentamento, só terminando o negócio, porque nós conseguimos avançar muito na na área dos direitos sociais, mas a partir da parte tributária, ficou progressiva igual. Então, como é que você ia financiar aquilo tudo? Ou seja, não teve pacto. As elites se concentraram na área econômica e deixaram que a gente, com a nossa força, conseguiu empurrar os direitos sociais.

Mas desde aí o embate ficou muito grande, tanto por não ter recursos pra aquilo tudo, porque não se criou mecanismo redistributivos capazes de assegurar a efetividade dos direitos ali… e também, que outra coisa que foi importante aí, ah! As leis orgânicas. Porque a constituição, nós fomos bastante detalhistas, sorte nossa porque hoje, pra poder mudar as coisas, a gente sabia disso né? Então tu sabe que a constituição é prolixa e tudo mais, isso era uma questão fundamental da estratégia política… eh mais precisava de leis orgânicas né? Para efetivar tudo isso… e aí o embate era muito sério porque já eram governos completamente diferentes, desde o Sarney, que diz que aquela constituição era uma loucura que envolveu o país, era ingovernado, mas o Collor, por exemplo, se recusou a assinar a Lei Orgânica da Assistência Social, que só no Itamar, dez anos depois, é que foi assinada. Ou seja, dez anos sem poder descer ao concreto do que seria o SUAS, né?

E no caso da área de saúde é muito curioso, que a área de saúde tem duas leis orgânicas, eu acho que é a única área que tem duas leis orgânicas porque o Color vetou toda a parte que dizia respeito à descentralização e a participação, ou seja, ele passou coisas do sistema de saúde, mas não descentralizado, mas não participativo. Eles tinham consciência de onde que se queria avançar, né? Onde a luta tava levando e só quando ele caiu é que a gente aprova essa essa segunda, essa segunda parte…

E para poder fazer aquilo que ser implementado foi outra outra luta, nesse momento o slogan da luta era a ousadia de se fazer cumprir a lei, esse era o grande slogan da reforma sanitária porque já tinha lei, mas não se institucionalizava. Então nós temos um momento de subjetivação, de constituição do sujeito político, um momento de constitucionalização e um momento de institucionalização, que é o momento da criação do SUS.

Essa institucionalização se dá já em uma conjuntura muito mais desfavorável né? Uma conjuntura de predomínio de políticas de austeridade, hiperiflação, de uma crise econômica grande, e aí o SUS é a materialização do projeto da reforma sanitária em um contexto e dentro das limitações que foram possíveis. Então, ele está sempre, para nós, sendo não o SUS que nós queríamos, ele é o SUS que foi possível, e que nos abre possibilidade de lutar pra avançar. O tempo todo foi lá essa pressão.

Antonio Martins: Eu sei que essa história é muito longa, mas essencialmente quais são, de que forma o fato do SUS ser institucionalizado, já numa época neoliberal, se choca com o projeto da reforma sanitária. Quais são os elementos centrais que você veria de contradição.

Sônia Fleury: Ah, eu acho que a questão do financiamento é a mais fácil de se ver né? Na medida em que não se criou o orçamento da seguridade social, que deveria ser para área de previdência, da saúde que passou tudo da previdência do INAMPS para juntar com o Ministério da Saúde, e da assistência No entanto, quem arrecadava era a previdência social, e os direitos são muito diferentes, do direito contratual da previdência, que o cara pode acionar na justiça se você não pagar a pensão dele do direito à saúde… que simplesmente essa pessoa não tem acesso ou não tem qualidade, tem acesso mas num serviço de baixa qualidade, ou da assistência que você restringe ali, ou como é que você chega lá, distribui o quê e tal.

Então, foi assim, uma manifestação muito clara, foi a falência, o Ministério da Saúde foi, acho que o único ministério que faliu, ele não conseguia pagar as contas da junção do do serviços do INAMPS, e faliu, até o ponto que o doutor Jatene começa essa luta pela CPMF e tudo mais.

Além disso, em noventa e quatro, com Fernando Henrique e o Plano Real, você tira recursos, que é, criou-se um orçamento separado, foi uma grande conquista, o orçamento que era pra separar aquelas contribuições só para a seguridade social, para os direitos sociais… e separado do orçamento fiscal. Mas a suposição é que o orçamento em geral, fiscal, pudesse auxiliar, mas vem ao contrário, com a DRU, a desvinculação das receitas da união começou a tirar recursos, do orçamento da seguridade social para pagar juros da dívida, do orçamento fiscal. Então essa questão foi sempre uma questão muito muito forte.

O pouco investimento, porque você tinha uma rede de atenção à saúde, muito concentrada, muito concentrada porque ela vinha da previdência, e onde tinha a classe operária formal era São Paulo, Rio de Janeiro, as grandes capitais. Então o Nordeste e Norte não tinham, praticamente, serviços, ou tinham aquelas campanhas e tudo mais… então como é que você vai universalizar, se você não tem uma base para, para as pessoas se atenderem ali.

Então a falta de investimentos, para você expandir a rede nacionalmente, foi também um entrave muito grande e custou muitos anos, até hoje não é superado, mas mas melhorou muito O outro ponto era que, diferentemente dos outros países da América Latina onde a privatização da da dos serviços sociais se deu com os governos liberais, no nosso caso ela antecedeu os militares já tinham essa orientação e privatizaram a atenção à saúde da previdência social.

Eles, em vez de investirem nos hospitais próprios, que eram os grandes hospitais, Hospital dos Servidores, Hospital da Lagoa, tudo mais, eles passaram a comprar os serviços e criou-se aí um ator político que não existia, financiado pela Caixa Econômica, com juros super ahm, que são os hospitais privados, eles antecederam o liberalismo. Então, quando a gente cria o SUS, setenta por cento das camas hospitalares já eram todas do setor privado e continua até hoje mais ou menos a mesma coisa.

Então, sempre teve que comprar serviço no setor privado e o setor privado tentando, com a sua lógica e tudo, isso é uma atenção constante, né? Outra questão foi, que a universalização, que nós achávamos que era o a estratégia de chegar a todo mundo, não chega, a todo mundo, ela chega a algumas franjas, ela amplia, mas aos extremamente excluídos, à população miserável, ela não chega… ela não chega porque essas pessoas não tem nem conhecimento, nem dinheiro pra poder pegar o ônibus e chegar a um posto de saúde, nem nada.

Então, foi com a introdução da atenção primária de saúde, o programa de saúde da família, os agentes comunitários, que veio, dentro de um projeto que era para, apoiado pelas agências internacionais FMI, o BID, tudo mais, que era pra se contrapor ao SUS, dizer o Estado tem que focalizar nos mais pobres.

Essa história de universalizar tem que acabar, e na verdade o o movimento sanitário conseguiu incorporar isso que veio como sendo contra o momento, para dentro. Então ele se transformou numa parte fundamental da universalização. E isso foi uma conquista, porque as bases dessa aliança do movimento sanitário, ela foi mudando, se antes os movimentos sociais, de universitários, intelectuais e tal, de esquerda. Depois viraram, foram os gestores, os grandes atores que seguraram o SUS, foram os gestores, com a descentralização, e aí surgiram essas instâncias o CONAS, o CONAS SUS, que se juntaram, os secretários estaduais, secretários municipais de saúde, e que passaram a defender ardorosamente o SUS, fora o movimento, que o movimento sempre esteve aí.

Então, foi a resistência pra aumentar financiamento, pra estabelecer parcelas do orçamento dos vários níveis de governo, depois para investimento pra poder ampliar a rede, enfim, é uma luta constante. Uma luta constante, e que tinha opositores muito fortes… a mídia, a grande mídia, o tempo inteiro, ela depende muito do financiamento da propaganda e tudo mais, e está associada aos seguros de saúde, que entraram muito fortemente desregulados, durante dez anos não teve nenhuma regulação, erro nosso, erro nosso… porque nós não queríamos tratar da do setor privado, achávamos que o nosso sistema era público e não fizemos nada, foi no governo Fernando Henrique que se criou, que se criaram as agências, a ANS e tudo mais.

E a classe média fugiu, a classe média abandonou o SUS. Ela abandona o SUS subsidiada pelo Governo porque não paga, no imposto de renda e tudo mais, ou o próprio Governo dá planos de saúde para as pessoas… então é com esse subsídios que a classe média sai do SUS, mas sai.

E eu acho, assim, pra tentar resumir o meu ponto, eu acho que o SUS ele tem uma potencial de incomodar, de ser uma reforma limitada, mas tem um princípio que é revolucionário, dentro da nossa sociedade, que é pensar que todos são iguais. É a única política pública que leva isso efetivamente à prática… você vai tomar vacina, você vai lá, tem um cara, morador de rua alcoólatra, do meu lado e ele entra primeiro que eu porque ele chegou primeiro. Então isso, para uma sociedade tão desigual como a nossa, é um absurdo, né? Então, ter um plano de saúde, por mais precário que seja, se transformou em um símbolo de status para as pessoas. Então é a mídia contra, é uma cultura política né? Da desigualdade… e esse projeto incomoda, ele incomoda. Então, podemos depois falar de outras coisas, de perspectivas, mas para contar a história, assim resumidamente, é mais ou menos isso.

Antonio Martins: A minha última pergunta pra ti, para não tomar demais o seu tempo… tem a ver com a perspectiva… o resgate tem como segunda ideia-força, que vai ser construída a partir de julho, o SUS. O SUS como exemplo de política pública que precisa ser transformada, mas que mostra a potência, e a pandemia é o sinal mais claro disso, a potência da política pública.

A Sônia é a pessoa que está nos ajudando a pensar um conjunto de conversas, de diálogo sobre, digamos assim, a transformação do SUS, a recuperação da ideia da Reforma Sanitária, de que ela tava falando no início, e que que não foi, infelizmente, institucionalizada no SUS por conta de todas essas circunstância que a Sônia contou. Como você vê hoje os caminhos, Sônia, para um SUS que recupere aquela ideia da reforma e como você vê hoje também…

Eu não falei no início, a Sônia era professora, até a pouco tempo, da Fundação Getúlio Vargas e foi demitida numa situação vexaminosa… a gente publicou com muita honra no Outras Palavras, inclusive, a carta de despedida dela, era a professora, inclusive, do ponto de vista das normas institucionais mais produtiva da instituição… e tem um fenômeno novo hoje, Sônia, que é o surgimento, na teoria econômica, de uma nova geração que não é neoliberal, que pensa o público, que pensa a economia como forma de distribuição de riquezas, que pensa a possibilidade do Estado executar políticas públicas… realmente muito potentes, é… você vê a possibilidade de nós vencermos, em primeiro lugar, a luta contra o fascismo e de, a partir daí, nós retomarmos as ideias essenciais da reforma sanitária?

Sônia Fleury: Eu penso que a reforma sanitária, a ideia fundamental dela é a luta pela democracia, entendida para além do sistema eleitoral e partidário, como sendo a construção de uma sociedade de cidadãos né? De que as pessoas tenham seus direitos assegurados, e que a saúde seja um valor público e não seja uma mercadoria, ela seja um valor público, ela possa ser, através da saúde, um projeto emancipatório da cidadania, não é só ter um serviço, é um projeto de construção de consciência, de democratização e de luta por um projeto civilizatório. Então é esse a questão, o SUS é o que nós conseguimos fazer e é fundamental, a gente sabe que é, com todas essas dificuldades desde a ditadura, e depois passando pelos austericídios da vida e todas essas coisas, as dificuldades que foram enfrentadas e que construíram uma coisa fantástica, né? Um serviço público com essa qualidade, com essa capilaridade, com essa capacidade de inclusão e com todas as dificuldades e deficiências que tem, que são muito muito grandes também, né?

Então vencer essas dificuldades é fundamental. Pra isso, nós precisamos de romper as políticas econômicas da austeridade.É impossível você pensar em ampliar o acesso a serviços de qualidade que as pessoas tenham o direito na prática… E não tenham, o que a gente, chamei em um dado momento de, o contra-direito à saúde. O que que é o contra-direito à saúde? É a pessoa chegar num serviço público e aí dizem pra ela, não tem ortopedista, não tem alcoolista e ela fica o Deus dará ou seja, o sistema não é capaz de aceitar, então a peregrinação que as pessoas fazem, né? Buscando o seu direito não efetivado, é o contra-direito à saúde, e por isso a população também tem ressalvas porque ela sofre isso, né?

Então, mas com uma política de que hoje nós somos dos países, comparados com os países, por exemplo a Argentina, outros países são um país que per capita gasta menos em saúde em recursos públicos, não é, menos do que os outros países vizinhos, mostra a dificuldade que a gente pode ter quando predomina uma visão de uma política que é extremamente, que é só monetária, isso é impossível, ou seja, o Estado para assegurar esses direitos sociais, ele não pode ser um Estado que quando o estado de bem-estar social foi criado, o Estado era arrecadador e podia fazer políticas distributivas.

Hoje os estados são devedores, os estados ficam pagando a dívida, dos interesses, pro mercado financeiro, isso não há nenhuma possibilidade de distribuir aquilo que é ao contrário, que o mercado financeiro tá querendo, é tirar o resto dos direitos sociais, dos fundos públicos para canalizar pro mercado financeiro, seja na saúde, seja na assistência e onde seja. Então essa disputa econômica, ela é a fundamental, é a disputa econômica que é fundamental, é a disputa política, para acabar com com com o Governo autoritário, fascista, e é a disputa cultural, para que as pessoas adiram a um projeto civilizatório mais amplo. Que entendam esse… essa construção da democracia e e os direitos que vêm dentro. Acho que são essas três coisas fundamentais. Sem isso nós vamos ficar limitados a uma institucionalidade precária sem poder avançar muito.

Agora, os inimigos são enormes, tem o mercado financeiro, tem o setor privado da área de saúde, tudo isso. E nós temos algumas desvantagens também, agora que eu ainda falei, em setenta e oito o setor privado só queria manter os seus privilégios, ali do monopólio da compra dos serviços pelo Estado e tal, e nós tínhamos um projeto transformador.

Hoje, o setor privado tem um projeto de transformar o sistema único de saúde em um sistema nacional de saúde… e esse ministro que está aí, o Quiroga, se propõe a isso, e ele não tem nenhum pudor de falar isso, falou na CPI, falou em todos os momentos, que ele vai fazer a vacinação e depois construir o sistema nacional de saúde. Quer dizer, um um sistema nacional de saúde, quer dizer, beneficiar o setor privado com os recursos públicos do SUS, e isso é o que está em jogo, certamente não é que as pessoas pobres possam se hospitalizar no no Einstein, rsrs, nem no Sírio-Libanês, como sugeriu o Guedes quando daria voucher para as pessoas… Que tem a cara de pau de dizer isso, porque agora, nem aceitar que tivesse uma fila única durante a pandemia se aceitou.

Tanto os serviços da área militar, quanto os serviços privados reservaram, para as suas clientelas, as camas e não quiseram saber do povão. Então, essa junção é a única forma que tem o setor privado de aumentar os seus recursos, por quê? Porque nós não temos classe média, ela tá definhando, está desse tamanhozinho… então como é que eles vão aumentar o número de pessoas? Ao contrário, está diminuindo, o número de pessoas que como podem ter planos de saúde… só se o Estado der plano de saúde de baixa qualidade pros pobres. Então é este o projeto.

Agora, este é um projeto transformação, o nosso projeto SUS, ou nós reconstruímos ele como um projeto de transformação ou nós vamos ficar segurando a brocha como eles ficaram dizendo que nós queremos manter isso do jeito que é e tudo mais, e todo mundo apontando os defeitos. Então nós também precisamos voltar a repensar o nosso projeto, a nossa Andrômeda.

Antonio Martins: Nós ficamos por aqui, Sônia, muito obrigado pelo seu tempo, pelas suas ideias, é justamente essa ideia de novos projetos, do passo adiante, da nova Andrômeda, num certo sentido, mas muito concreto, com muito pé no chão que o resgate quer discutir. E nós ficamos muito felizes por você abrir esse processo e por ter você como colaboradora, também, quando formos discutir a nova transformação do SUS e a luta pelo direito à saúde num país democrático, como você tá dizendo. Te agradeço muito por essa e por contar de você nesse processo todo.

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