Tiaraju D’Andrea: Periferia brasileira, além dos clichês

Nenhum projeto de transformação social se realizará se não for abraçado pela maioria de brasileiros que vive nas quebradas urbanas. Mas nelas predomina, hoje, um imenso ceticismo em relação à política. Um sociólogo dá pistas sobre come compreendê-lo

Entrevista a Antonio Martins

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> O texto a seguir foi construído a partir de entrevista com Tiaraju Pablo D’Andrea, que está transcrita ao seu final. Acesse também as versões em vídeo (link acima) ou podcast (abaixo).

> O projeto Resgate, por meio do qual Outras Palavras quer debater ideias-força para a reconstrução do Brasil em novas bases, pode ser conhecido aqui.

Eles são 76,1% da população urbana do país, segundo um estudo de 2017 do IBGE. Somam cerca de 130 milhões de pessoas, o que os faria o 10º país mais populoso do planeta. Vivem menos (em casos extremos, 23 anos, numa mesma metrópole) – e em condições que vão do desconfortável ao dramático. A covid os castigou muito mais. Mas eles foram os únicos a desenvolver, para enfrentar a pandemia, redes de solidariedade autônomas. E se transformaram, nas últimas décadas, num de criadouro de invenções culturais. Ainda assim, os moradores da periferia urbana brasileira tornaram-se, nas últimas décadas, um ente estranho, para aquilo que se convencionou chamar de “esquerda”. As imagens associadas a eles são as igrejas evangélicas, a violência policial, as milícias, o crime organizado, os bailes funk.

O sociólogo Tiaraju Pablo D’Andrea, da Unifesp, é um dos pesquisadores que têm se dedicado a ir além do estereótipo e estudar o que chama de “sujeitas e sujeitos periféricos”. Em 25/6, em entrevista a Outras Palavras no âmbito do projeto Resgate, Tiaraju expôs algo de suas pesquisas e reflexões. A periferia que emerge de sua fala não é mágica – mas histórica. Surgiu devido a condições concretas e se transformou junto com o país. Ajudou a livrá-lo da ditadura, nos anos 1970. Regrediu com ele, nas décadas de reprimarização e precarização. Arrisca-se a submergir, como todos nós, no túnel de retrocessos e fundamentalismo. Mas pode surgir de lá, deste “possível novo quilombo de Zumbi”, o impulso capaz de resgatar o Brasil.

Como realidade e conceito, periferia urbana é um fenômeno recente em termos históricos, argumenta Tiaraju. Data de um tipo particular de urbanização, acelerada e segregadora, iniciado nos anos 1950. A vida tornou-se insustentável nas regiões mais pobres, e fez do Brasil o país de maior migração interna no mundo, no século 20. As multidões que acorriam às metrópoles em formação – São Paulo e Rio, especialmente – eram empurradas para áreas cada vez mais distantes, desprovidas de serviços públicos e mobilidade. Quase sempre precisavam, para se estabelecer, entrar em choque com a natureza: matas, mangues, mananciais aquíferos.

A industrialização nascente, prossegue Tiaraju, transformou estas periferias, aos poucos, em dormitórios proletários. Elas crescem de modo explosivo por décadas. Seus moradores envolvem-se em lutas sociais. Nos anos 1970, junto com o sindicalismo operário, que desperaa em especial os homens, brotam as lutas territoriais cujas protagonistas são mulheres. Elas querem saúde e creches; organizam-se nos clubes de mães e no movimento contra a carestia. Os partidos de esquerda ocupam algum espaço. E quem mais atua, nos planos simbólico e político, é a igreja católica ligada à Teologia da Libertação.

Mas nesse período, a própria quebrada ainda não se reconhece como tal. Os estudos de Tiaraju revelam: quem fala em periferia, neste período, são as universidades. Seus habitantes, cujo vínculo social mais relevante está fora do território, enxergam-se como trabalhadores ou como povo. As associações que organizam para reivindicar melhor infraestrutura são de moradores de bairro.

A partir dos anos 1990, continua o sociólogo, um terremoto econômico e político sacude as franjas das metrópoles. A desindustrialização encolhe dramaticamente a classe operária e espalha o desemprego nas quebradas. A esquerda, tanto laica quanto religiosa, retrai-se. Os partidos progressistas deslocam os quadros mais importantes para as instituições: os governos municipais e estaduais, as assessorias parlamentares e, mais tarde, Brasília. A Teologia da Libertação é golpeada pela devastação conservadora que marca o papado de João Paulo II. No espaço aberto pelo desemprego, as quebradas transformam-se em espaços de violência sistemática. Começa a política de o aprisionamento em massa dos pobres: entre 1990 e 2019, a população carcerária crescerá 900%. Avançam a criminalidade e o genocídio da juventude negra.

É nessa fase, apontam os estudos de Tiaraju, que a quebrada se reconhece como tal; que começa a usar, para si mesma, o termo “periferia”. Ela o faz, diz o pesquisador, como “um grito desesperado para unir aqueles que estão sendo abandonados nas metrópoles; para expor o que a sociedade não quer enxergar”. O período é contraditório. As lutas anteriores esvaziam-se. Mas surgem, pela primeira vez, o orgulho periférico; e a consciência de que a população que vive às margens dos centros e bairros “nobres” não é inferior, mas injustiçada. Na construção desta singularidade, a cultura é central. E na produção artística destacam-se os Racionais MC’sem álbuns como RaioX Brasil (1990) e Sobrevivendo no Inferno (1997).

Esta periferia, que começou a ter consciência de si mesma, sofre no entanto as influências contraditórias, que marcam o país a partir de então. Ela vota majoritariamente no lulismo, a partir da virada do século. Mas abre terreno para as igrejas do individualismo, quando dissolvem-se as antigas formas de reivindicação de direitos trabalhistas e os próprios governos de esquerda deixa de apostar na mobilização popular. Vê seu território, abandonado pelo Estado, sob controle de grupos como o PCC, cujo papel é ambíguo – defesa contra a brutalidade do encarceramento em massa e, ao mesmo tempo, empresariamento militarizado. Assiste à emergência de uma miríade de coletivos culturais, que são ao mesmo tempo espaço de criatividade e forma autônoma de geração de renda.

A resultante é ambígua, faz questão de ressaltar Tiaraju. Do ponto de vista estritamente político, o sentimento que predomina é a descrença. A abstenção eleitoral beira os 40%. Com o apagamento dos grandes projetos de país, abre-se espaço para a política como troca de pequenos favores.

Como envolver esta nova periferia na luta pelo Resgate do país? Tiaraju não tem respostas prontas, mas segue estudando. Ele o faz desde que, originário das quebradas da Zona Leste, chegou à USP em 2002 e chocou-se com o “abismo” entre a universidade e as maiorias. Ressalta: dois valores éticos, que se destacam nas periferias, podem ser bases para um novo tempo de reflexões e mobilização. O primeiro é a diversidade. As quebradas são, por sua própria natureza, territórios instáveis e em renovação constante. Acolhem gente de múltiplas origens, que nelas busca um pequeno espaço para erguer uma casa de blocos e se proteger de algum modo da aridez insensível da metrópole. Todos sabem que são precários e desta noção nasce o respeito pelo outro. Talvez a consciência de território seja, neste aspecto, uma nova forma de consciência de classe.

E, pelos mesmos motivos, a periferia cultiva a solidariedade. Tiaraju lembra que foi as únicas redes comunitárias para proteger as populações da covid surgiram em lugares como o Complexo da Maré, no Rio, ou Heliópolis, em São Paulo. O sociólogo pensa que não é algo relacionado apenas à pandemia, mas uma atitude – a criação incessante do Comum – que a quebrada adota como estratégia de sobrevivência.

Tiaraju pensa, contudo, que esta conquista cultural e ética não substitui a presença do Estado e, em especial, sua capacidade única de promover a redistribuição de riquezas entre toda a sociedade. A parcela da riqueza social que é drenada incessantemente das periferias para a elite não pode ser recomposta por meio de ações solidárias entre os próprios moradores da quebrada. Para isso, é preciso um Resgate muito mais potente…

Eis a transcrição do diálogo:

Antonio Martins: Boa noite pessoal, eu sou Antonio Martins, editor do site Outras Palavras, essa é mais uma sessão do nosso projeto, dos preâmbulos, as sessões iniciais do projeto nosso Resgate, onde a gente quer provocar, entre a sociedade, a discussão da reconstrução do Brasil em novas bases. A ideia de que a luta contra o bolsonarismo, que nós queremos que seja vitoriosa, não seja a volta ao velho normal, porque o velho normal remete aos 500 anos de colonização, o velho normal remete aos 40 anos de neoliberalismo e destruição do Brasil. Foi isso que nos trouxe até aqui.

A partir do Resgate, nós queremos fazer com a sociedade, com os movimentos sociais, com ativistas e com pensadores, uma reflexão sobre como voltar, não ao velho normal, mas nós estamos como num país que, 500 mil mortos, como que acordasse de uma guerra. É preciso fazer o luto e é preciso refletir sobre o que nos trouxe até aqui. E nós temos uma satisfação muito grande de contar, hoje, nos preâmbulos do Resgate, com o Tiaraju Pablo d’Andreia, que é um pensador e ativista singular. O Tiaraju é professor da Universidade Federal de São Paulo, da UNIFESP, no campus da Zona Leste, mas ele também é pós-doutor em filosofia pela USP, é pesquisador convidado na Universidade Paris Oito é doutor em sua sociologia da cultura, tem muitos outros títulos.

Mas o Tiaraju que conta, em uma série de textos, como ele chegou na USP, em 2002, quando ainda era um ambiente basicamente dos chamados bairros nobres de São Paulo, e o Tiaraju não se descolou da periferia da Zona Leste, de onde ele articula o centro de estudos periféricos, ele acaba de publicar um livro importantíssimo, que vai fazer diálogo, inclusive, com o que a gente quer aqui no Resgate, “Quarenta ideias para a periferia”. É um livro que saiu agora em março e que vale muito a pena comprar e ler.

Boa noite Tiaraju, tudo bem? É um prazer ter você aqui, queremos ter você ao longo de toda essa caminhada de Resgate.

Tiaraju D’Andrea: Boa noite, Antonio Martins! Boa noite a todos, a todas, todes que estão nos assistindo. Para mim é um prazer dialogar com você essa noite, fico muito honrado pelo convite!

Antonio Martins: Nós é que ficamos, Tiaraju. Eu queria te propor, desde o início, uma ideia para essa nossa conversa. O Resgate procura, num certo sentido, não incorrer em certos problemas que a atuação da esquerda tem registrado no Brasil, o problema, por exemplo, de ficar muito preso ao Estado e esquecer da mobilização popular. Ou o problema de reduzir o horizonte político apenas ao que é possível, na correlação de forças de um dado momento, sem pensar em como nós vamos mobilizar a sociedade para transformar essa correlação de força.

Mas o Resgate precisa, para cumprir esse papel, fazer um diálogo, inclusive, com quem não está hoje no Outras Palavras, fazer um diálogo com a maioria dos brasileiros que vive nas periferias urbanas, é a maioria dos brasileiros, hoje. E nós vivemos, nós somos conscientes, nós estamos imersos numa sociedade colonizada, e há dificuldades de diálogo. E a ambição, digamos assim, dessa conversa e das outras que a gente pretende ter com o Tiaraju, é ver de que forma esse pensamento que surge nas periferias pode nos ajudar – a nós, que temos uma visão limitada, ainda, do Brasil – a construir melhor uma visão da transformação da sociedade brasileira, pra gente tentar chegar aí, eu te perguntaria, Tiaraju, você é um sujeito que acabou de publicar esse livro, mas você tem estudado e formulado a respeito do surgimento de sujeitas – como você diz – da sujeita e do sujeito periférico, que é uma longa construção que você teoriza, que vem desde 1950, e você teoriza, inclusive, as mudanças que esta sujeita e sujeito periférico estão sofrendo. Eu queria que você nos contasse um pouquinho sobre isso pra gente começar a nossa conversa.

Tiaraju D’Andrea: Obrigado, Antonio! Bom, eu sou um cara nascido e crescido em Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, nasci na década de 1980, sou filho de uma liderança do movimento de saúde da zona leste de São Paulo, uma militante do Partido dos Trabalhadores, no começo do Partido dos Trabalhadores, e a minha mãe, muito aguerrida, militante histórica da região, e eu sou um pouco fruto disso, né? Meu pai também militante, mas minha mãe sempre sempre organizada na militância do bairro. Sempre me chamou atenção um certo descolamento entre um pensamento hegemônico, dentro da esquerda brasileira, hegemonizada, inclusive, por uma certa classe média intelectualizada, e a militância nos bairros e a militância nas periferias e a militância no movimento popular e a organização popular e essa cisão é uma coisa que um pouco me move, me move politicamente, me move intelectualmente, porque eu acho que isso é um dos grandes entraves para o avanço de um processo de transformação social, no Brasil.

Infelizmente, tem um poço histórico, que está dado, que não é bom, não é bom para processos de fundo de transformações sociais no nosso país. O fenômeno “periferia urbana”, Antonio Martins, eu diria para você, que ele é um fenômeno historicamente novo, até, ele começa em meados da década de trinta, da década de quarenta, falando da cidade de São Paulo, e eu estou sempre falando da cidade de São Paulo – pode ser que isso sirva para outras grandes capitais brasileiras, para outras metrópoles brasileiras, em alguns momentos não serve, por conta das características regionais de cada uma dessas cidades – mas tomando como base a cidade de São Paulo, a cidade de São Paulo, até esse momento, ela era circunscrita a um centro, que é o centro que a gente conhece, a chamada Região Sudoeste, que estava se expandindo, onde virou o local de moradia das elites, e a gente tinha bairros que, na época, eram bairros periféricos, que hoje a gente chama de bairros suburbanos, que mesmo que na época eram bairros periféricos, tinham uma presença estatal no que se refere à organização urbanística do local, à cobrança de imposto, à presença estatal no que tange aos serviços públicos, né?

Então, eu estou falando de bairros como a Penha, Vila Matilde, a Vila Maria, a Freguesia do Ó, bairros históricos da cidade de São Paulo, o limão, Santo Amaro, que é um bairro bastante antigo, porém, mais ou menos entre a década de quarenta e cinquenta, por conta dos processos de migração na cidade de São Paulo, fundamentalmente imigração nordestina, e derivado da expansão da indústria automotiva na nossa cidade, a cidade de São Paulo ela sofre, ela passa por um processo de explosão demográfica muito marcado, né?

Enfim, entre 1940 até 1950, a gente tem o dobro, a população ela dobra, depois, entre 1950 e 1960, ela dobra de novo, entre 1960 e 1970, ela dobra de novo, em 1970 e 1980, ela dobra de novo, passa por um processo que, entre 1940, mais ou menos, a cidade de São Paulo tinha 800, 900 mil habitantes, quase 1 milhão. Ela chega em 1980 com 8 milhões. Então, ela quase que tem sete, oito vezes mais população, é um afluxo imenso e essa população vai morar nesses territórios que a gente ora conceitua como periferias.

Periferias urbanas, conhecidas pelos seus loteamentos precários, muitas vezes grilados por pequenos agentes proprietários dessas regiões, locais com terrenos baratos, que era onde essa população podia morar, fundamentalmente nordestina, local com muita precária presença de infraestrutura urbana, e aí a gente está falando de asfaltamento, de luz elétrica, de saneamento do básico, de transporte público, enfim. Periferia urbana, até a década de sessenta e setenta, era muito córrego a céu aberto, era muita rua de terra, era uma população muito pauperizada, muito empobrecida. Com o passar do tempo, essa periferia urbana ela vai mudando, ela vai se modificando de acordo com como se modificam os tempos políticos do nosso país.

Eu acho que é interessante a gente notar que temos uma década de setenta, a periferia urbana era muito pauperizada, muito empobrecida, a gente tinha um processo de ditadura militar no nosso país, uma repressão contra essa população, e já com alguns movimentos populares importantes que, juntamente à mobilização nas fábricas, começa a criar um caldo político nesses territórios populares.

E aí vale salientar o movimento contra o custo de vida, movimento contra a carestia, clubes de mães, que começam a fazer manifestações inclusive na Praça da Sé, e fazer um movimento que ajuda a pressionar, a derrotar a ditadura militar no nosso país, obviamente que não foi o único, a ditadura é derrotada por uma série de agentes sociais, mas você tinha uma periferia urbana que começava a se organizar, fundamentalmente, por isso que a gente pode chamar de questões urbanas, a cidade era o grande mote, direito e acesso à escola, posto de saúde, com protagonismo feminino bastante grande.

Eu creio que na década de oitenta a gente tem algumas modificações nesse processo de organização das periferias urbanas, já com uma presença maior e mais consolidada das comunidades eclesiásticas de base, organizadas pela teologia da libertação, uma igreja católica comprometida com os pobres, como se dizia, e a partir do Concílio de Puebla, que teve em sessenta e oito, o Concílio de Medelin, em setenta e nove, quando a igreja católica ratifica a sua opção pelos pobres e ajuda muito a organizar essas periferias urbanas, por meio de uma série de ações. E com muitos padres chamados de padres terceiro-mundistas. E isso na América Latina inteira, não só no Brasil. A gente pode lembrar Dom Romero, na América Central, Camilo Torres, na Colômbia, Padre Mujica, na Argentina… e no Brasil, Dom Angélico Sândalo, Dom Paulo Evaristo Arns, Frei Beto. Padre Tikão, uma atuação muito bonita aqui, na Zona Leste de São Paulo, veio a falecer agora, 1º de janeiro de 2021.

Então a gente tinha uma igreja que ajudava a organizar, nas comunidades eclesiais de base, essa igreja católica ela começou muito dos movimentos sociais mais importantes que a gente tem até hoje, Movimento Sem Terra, o próprio Partido dos Trabalhadores. Então, essa presença da Igreja Católica nas periferias ajudou a movimentar as periferias.

Antonio Martins: Tiaraju, nesse momento, segundo o que você estava falando, pra gente acompanhar também, paralelamente. Paralelo a isso, é a evolução social, era uma periferia basicamente operária, certo? Os operários, o pessoal que vinha do Nordeste e chegava nas periferias, encontrava emprego nas fábricas, e a composição da periferia era operária ou não?

Tiaraju D’Andrea: Eu acho que ela era bastante operária, mas não só operária, eu acho que tinha um contingente muito grande, por exemplo, de trabalhadoras e trabalhadoras na construção civil, que a cidade de São Paulo ela estava explodindo também no que tange à construção de edifícios, e a gente tinha também serviços domésticos, né? A mulher pobre, no Brasil, ela sempre trabalhou fora. Vamos lembrar disso, serviços domésticos, trabalho em fábricas também, tinha a presença da mulher operária, também, é uma coisa que a gente precisa salientar, mas eu concordo com você, a presença operária era muito maior. Aí a gente tem, até para os meus alunos eu sempre sugiro, “assistam ao filme ‘Eles Não Usam Black-tie’, assistam ao filme ‘O Homem que Virou Suco’”, verdadeiros retratos do que eram as periferias urbanas na década de setenta, que era uma periferia urbana pauperizada, com uma classe trabalhadora brasileira que se reorganizava, mas também com a sua heterogeneidade interna, com os seus conflitos internos, mas obviamente, como a composição da classe trabalhadora brasileira, no geral, tinha uma porcentagem operária maior… isso também fazia diferença nas periferias.

O que a gente discute hoje, Antonio, é a historiografia que pensa a periferia urbana, por muito tempo, os estudos sobre periferia urbana ficava numa cisão que era quase um Fla-Flu, era uma coisa assim, o homem na fábrica, a mulher no bairro. E hoje a gente fala “ó, pessoal, não foi bem assim” Eu sempre morei em quebrada, tive uma infância muito pobre, muito pobre, minha mãe é uma trabalhadora, minha mãe era funcionária pública, era enfermeira de hospital, minha mãe sempre trabalhou fora e as mulheres, grande parte delas, precisava trabalhar fora porque precisava conciliar, ajudar no sustento da casa.

E periferia urbana tem um pouco desses arranjos, a avó que cuida dos filhos, a tia que cuida dos filhos, um pouco, para essas mulheres poderem também trabalhar fora. Havia uma predominância masculina nas fábricas? Havia. Isso quer dizer que a mulher não estava na fábrica? Não, não quer dizer. Se a gente remontar à greve geral de 1917, lá no começo do século, a presença feminina era muito grande, a presença feminina em serviços domésticos era muito grande, então a mulher também estava na fábrica, havia uma hegemonia masculina, é verdade, e no movimento popular nos bairros, a presença feminina era maior, e ela era protagonizada, mas isso não quer dizer que o homem também não estava junto, o homem também estava, ele estava em menor número, por questões de menor comprometimento ou por questões do fato de estar mais preocupado com a organização na fábrica ou com o chamado mundo do trabalho.

Mas as coisas eram mais complexas, eram mais complexas. Eu acho que tinha tanto mulher no local, como tinha homem no outro, mas eu concordo com você que a composição da classe trabalhadora brasileira não é diferente. A gente tem um dado que, no final da década de 1970, 34% por cento da população da região metropolitana de São Paulo estava empregada nas fábricas, 34%, 1/3 da população.

Na década de noventa, em meados da década de noventa, esse número era de 17%, então em vinte anos cai pra metade, eu não tenho dado atual, mas a gente pode chegar juntos à conclusão que a população…

Antonio Martins: Deve ter cortado de novo pela metade.

Tiaraju D’Andréa: Podemos dizer que é uns 10%, né? A gente percebe esse processo de desindustrialização que atingiu o nosso país, de maneira um pouco mais cortante a região metropolitana de São Paulo. Aqui, como diz o professor Milton Santos, geógrafo, a cidade de São Paulo sofreu um processo de macrocefalia, por conta da presença muito concentrada das indústrias na cidade de São Paulo, que é um processo típico de países de terceiro mundo, né? Você precisa concentrar toda a produção industrial num lugar só, a cidade de São Paulo inchou, que é o caso da cidade de São Paulo, ela inchou, e hoje a gente tem um processo que eu chamo de classe trabalhadora sem trabalho, porque a gente continua tendo uma classe trabalhadora, só que, já adiantando um pouco o argumento, para trazer o debate para a contemporaneidade, a gente tem todos esses processos de pulverização de trabalho esporádico, de bico, de uma série de formas muito precárias, com o mundo do trabalho.

Mas aí, Antonio, eu queria me remontar um pouco à década de oitenta, só para te responder à questão do sujeito periférico. A gente tem uma década de oitenta que tem uma efervescência política no nosso país, né? Tanto você quanto eu, quando a gente vai fazer o curso de formação no movimento social, a gente aprende o que, né? O acenso do movimento de massas, na década de oitenta, se deu uma conjunção de fatores relacionados ao fim da ditadura militar, à volta dos exilados, à reorganização dos sindicatos, aos movimentos populares nos bairros, aos partidos políticos que voltam a ter legalidade, e outros partidos políticos são fundados nessa época…

Mas você tem o povo na rua. A gente tem as “Diretas Já”, que foi um momento importante, 1984, a gente tem a mobilização pela constituinte, em 1988, a gente tinha todo um processo social de mobilização da população progressista, à esquerda, com os bairros muito organizados, muito mobilizados, e acho que essa presença da igreja católica, novamente, foi fundamental.

Mas a gente começa a sofrer alguns reveses, a gente pode até considerar que esse esse otimismo da geração da década de oitenta, era uma geração que acreditava no Estado, acreditava na institucionalidade, porque estava querendo destruir aquele estado da ditadura militar, então acreditava nas eleições, acreditava nos partidos políticos, na constituição de conselhos que vão discutir políticas públicas dentro do Estado. Todos os movimentos sociais estavam imbuídos nisso e estavam acreditando em a gente formar uma nova institucionalidade. O paradoxo é que, no Brasil, o neoliberalismo chega com anos de atraso, justamente por conta dessa primavera popular, aí, do segundo pincínio da década de oitenta, e essa primavera popular postergou a implementação do neoliberalismo no Brasil, só que o neoliberalismo chega, tardiamente, mas chega. E aí a gente começa a ter a implementação de uma série de políticas, no âmbito nacional, Collor de Mello, posteriormente com Itamar Franco e depois, aprofundado nas duas gestões do Fernando Henrique Cardoso. E na cidade de São Paulo, bom, a gente tinha já governos do PSDB, a gente tem a prefeitura do Paulo Maluf, posteriormente do Celso Pita, e a gente começa a ter a privatização de tudo. A gente tem a privatização da saúde com o paz, a gente tem um programa de erradicação de favelas que era o projeto Singapura, e só pra falar da cidade de São Paulo.

Antonio Martins: E a mudança na composição social, né, Tiaraju?

Tiaraju D’Andrea: Exatamente. Aí a gente vai ter uma desagregação da classe trabalhadora, no sentido que vai ter uma mudança na forma de gerir o estado, uma prática pelo estado mínimo, cumprir privatização de serviços públicos, mas a gente também vai ter um aprofundamento do desmonte da sociedade salarial, e isso vai atingir diretamente as periferias urbanas, diretamente porque são nesses territórios, onde mora preferencialmente a população desempregada, a população que mais precisa de serviços públicos e uma população que começa a se enxergar com mais dificuldade de construir os seus laços de solidariedade, porque a gente tem uma classe trabalhadora que é, no mundo do trabalho está em crise, mas no bairro ela começa a estar em crise, também, por conta da da desarticulação dos vários núcleos de bairro, por exemplo, que existiam, do Partido dos Trabalhadores, pela derrota que a igreja católica progressista sofre, internamente, nos embates dentro da igreja católica, que é uma coisa pouco discutida na historiografia… mas no ano de 1989, acontece muita coisa, a gente tem queda do Muro de Berlim, que enfraquece o ideário socialista no mundo todo, fragiliza sindicato, fragiliza parte da esquerda, começa a hegemonizar a sociedade um discurso pós-moderno, um discurso neoliberal por outro lado.

E a gente tem a derrota do Lula, na eleição de 1989, e um processo interno ao Partido dos Trabalhadores, um pouco de se adequar ao jogo eleitoral no nosso país, e a gente tem esse ataque à feição mais progressista da Igreja Católica. Então, as periferias urbanas elas começam a entrar em uma crise muito profunda, não é a toa que é na década de 1990 que a gente tem um alto número de desemprego, a gente tem um esgarçamento do tecido social, a gente tem um súbito aumento, por exemplo, da economia da droga, da economia do tráfico, e aí se relaciona também com outras questões relacionadas ao tráfico de drogas internacional, ao tráfico de armas ou mesmo ao desmonte da Ditadura Militar, no Brasil, que começa a fazer com que os armamentos comecem a entrar por circuitos ilegais, vamos dizer assim, e as periferias começam a se armar também. E a gente tem, na década de 1990, um genocídio contra a população moradora das periferias, fundamentalmente negra, fundamentalmente jovem, a gente pensava, até pouco tempo atrás, que aquele era o maior genocídio contra a população negra e periférica do nosso país.

Infelizmente, hoje, a gente tem que rever, porque nós estamos no meio de um outro genocídio, com algumas características descritas, mas com algumas características muito próximas, e é nesse momento, na década de 1990, quando a gente tem essa desarticulação da classe trabalhadora, de organizações populares, de organizações no bairro, que a gente começa a observar, outras formas da periferia se organizar. Diferentemente daquelas formas clássicas, que a gente aprendeu na década de 1970 e 1980, muito relacionada a movimentos populares que estavam lutando por demandas urbanas, que estavam lutando por direitos. Então, eu acho que a partir da década de 1990, a gente tem outros atores que começam a entrar em cena.

Antonio Martins: Tiaraju, deixa eu te interromper aqui, um pouquinho, porque o que você está falando é de enorme importância pra gente compreender e é um fenômeno social dos mais expressivos, aqui no Brasil. Nós estamos enxergando o seguinte, a transição que se dá com o neoliberalismo, na sociedade, especialmente na periferia, é assim, você tinha – claro que eu vou simplificar – mas você tinha o homem que era um sindicalista, que mesmo que não fosse um sindicalista, estava numa fábrica, lutando pelos seus direitos, num ambiente coletivo, muitas vezes ele perde o trabalho e fica na periferia sem uma ocupação fixa. E você tem uma esquerda que, na sua apresentação, assim muito forte a presença feminina, se dava, por exemplo, é o caso da sua mãe, no movimento da carestia ou nos clubes de mães, ou nos movimentos, de alguma maneira, ligados ao cidade e ligados ao político também.

De repente, a esquerda passa a se acomodar a uma visão mais institucional, e cai esse mundo, ao mesmo tempo, e você tinha a igreja católica que, num certo sentido, criava uma comunidade, ajudava a criar laços culturais, seja de tipo religioso, mas são laços culturais, e ela sofre a derrocada do conservadorismo, ao mesmo tempo – e acho que é nisso que você vai começar a falar agora, eu te interrompi só pra gente estabelecer esse marco – você está dizendo nas tuas entrevistas, que eu estava vendo antes da entrevista, que é mais ou menos nos anos noventa que começa o orgulho da periferia, primeiro que a periferia se vê a si mesmo, e você coloca os Racionais como marco, não é mais a universidade que enxerga a periferia, a periferia que se enxerga, e ela se enxerga não mais como subalterna, mas como injustiçada. Como que é esse processo? É meio contraditório porque talvez você teja desfazendo uma organização, que é a do capital, que é a da fábrica e também a da esquerda tradicional, mas está surgindo uma coisa nova, que é mais autônoma. É isso que eu entendi das coisas que eu li de você.

Tiaraju D’Andrea: Você entendeu perfeitamente, Antonio, eu acho que a leitura sociológica e histórica que eu faço é essa, a história é contraditória, a história é complexa, a gente não pode cair num – quando me chamam para falar, ou quando eles falam – a gente não tem bem e mal, não tem melhor e pior, eu não posso dizer que a geração anterior foi melhor, nem posso dizer que foi pior, nem posso achar que hoje a gente é muito esperto e a geração do passado não valia nada, ou também achar que… eu acho que a gente precisa ter a a frieza e o realismo necessário para fazer uma boa análise política, o que eu aposto, e eu acho que esses processos eles acontecem simultaneamente, é dessa maneira como você colocou. Eu acho que a perda do referencial, no mundo do trabalho, fez surgir outros referenciais coletivos, e aí o território ele ganha força. Por quê? Aquele cenário de violência, da década de 1990… imagina que a gente viveu um genocídio em curso, que por final de semana tinha 70 homicídios nas periferias de São Paulo, a gente chegou no final da década de 1990, entre 1997 e 1999, que foram os anos com maior índice de homicídio, se matava mais gente em São Paulo do que em cidades oficialmente em guerra. Se matava mais gente de São Paulo que Bogotá, se matava mais gente em São Paulo do que estava numa guerra, e a gente não estava oficialmente numa guerra, mas tinha uma guerra ocorrendo contra corpos negros, contra corpos pobres, moradores das periferias.

Essa violência, que era a principal questão colocada, a violência e a pobreza ocasionada pelo aprofundamento do neoliberalismo, não era uma problemática que se dava, necessariamente, no mundo do trabalho. É isso que é interessante notar, quando a polícia chega, ela mata no bairro, quando você tem uma situação de pobreza, de uma casa que está empobrecida por conta do desemprego ou da formação de uma favela, por conta de processo de favelização, são fenômenos que se dão no território.

Antonio Martins: Tiaraju, eu perdi um pouquinho… assim, você estava falando que esses processos de repressão e também de formação de sujeitos novos, se dão no território. Aí você foi interrompido pela pela internet.

Tiaraju D’Andrea: O território acaba ganhando mais força, não por uma vontade, ele acaba ganhando mais força por uma situação, por um contexto histórico muito concreto… tinha menos gente empregada, tinha menos gente se organizando dentro do mundo do trabalho, os sindicatos estavam sofrendo ataques atrás de ataques. Então, o espaço de moradia, o território, ele acaba ganhando força como uma consciência da população pobre, e aí, o que eu acho interessante é que o termo periferia, naquele momento, era uma forma de dar uma unidade para uma classe trabalhadora, no momento que a classe estava fragmentando. É quase como se “Periferia” fosse um grito desesperado para unir condições próximas, no momento em que tudo estava desagregando, e aí eu acho que naquele momento histórico da década de 1990, gritar “Periferia”, ou enunciar “Periferia”, publicamente, teve três funções principais: unir quebradas em guerra, porque a gente tinha um genocídio, mas também tinha as brigas internas, a gente tinha uma necessidade de pacificar esses territórios, porque eram territórios que estavam com índices de morte muito grandes; e tinha também um caráter de denúncia para a sociedade, porque periferia urbana era o local que a sociedade não queria ver. Como diz o Perry Anderson, historiador marxista, o neoliberalismo, ele não é só um sistema econômico, ele é uma máquina avassaladora de construir ideologias. Na década de noventa, Antonio, a cidade de São Paulo se gabava como sendo a cidade dos condomínios fechados, como sendo a cidade com a segunda maior frota de helicópteros do mundo, como sendo a cidade dos shoppings… Nessa época que essas coisas começam a ganhar força na batalha ideológica, enunciar “Periferia”, naquela época, era apresentar para a sociedade territórios de violência e pobreza, que a sociedade não queria enxergar.

E aí, essa palavra ganha força, ela ganha mais força do que nas gerações anteriores. As gerações anteriores tinham, por exemplo, o referencial do mundo do trabalho mais forte, década de 1970, década de 1980, mesmo no bairro, as populações se organizavam por meio dos conceitos “classe trabalhadora”, “povo”, “classes populares”, “movimento popular”. “Movimento popular” era o termo forte, se militava no movimento popular, moradores dos bairros populares conheciam o termo periferia, mas a palavra periferia trazia vergonha, porque a palavra periferia queria denotar um local de carência, o que está fora, o que é precário, o lugar onde era muito um discurso da polícia… a periferia era muito um discurso dos telejornais denuncistas, porque é na periferia que tal coisa acontece, a geração da década de 1970 e 1980, salvo raras exceções, ela não estava interessada em fazer o uso político do termo periferia.

A geração posterior enxerga que essa palavra tem um potencial. Por que o conceito trabalhador estava começando a fragilizar, mas essa periferia era justamente uma classe trabalhadora, era uma classe trabalhadora, moradora do território, era uma classe trabalhadora negra, era uma classe trabalhadora mulher, era uma classe trabalhadora que continha os desempregados, também. Então, periferia tem uma capacidade de colocar para dentro gente que estava dispersa, muita gente que estava fora, muita gente que estava um pouco perdida, mesmo, num determinado momento.

Onde, de fato, a classe trabalhadora estava sofrendo por sérios golpes. Golpes organizativos, golpes ideológicos. Então, eu acho que periferia, num dado momento histórico, dá uma amarração. E aí eu acho que a cultura teve um papel importante, primeiro com o movimento que do hip-hop, depois com uma série de coletivos artísticos e culturais, e é um pouco essa geração que eu estou chamando de sujeitos periféricos, né? Sujeitas e sujeitos periféricos, é um pouco uma forma de fazer política, a partir da década de 1990. Eu um pouco fui tentando encontrar um conceito, uma população que se afirma no território, que tem um orgulho do território, que quer tirar dos processos de estigmatização, que quer se organizar politicamente, não de uma maneira subalternizada, mas de uma maneira autônoma, é um pouco tentando romper com hierarquias, agora, não foi só essa juventude ao redor da cultura, que se organiza a partir da década de noventa.

Eu acho que a gente tem outros dois agentes sociais muito importantes, que começam a operar nas periferias. Os evangélicos, que também crescem, para ordenar um território que está desagregado socialmente. Os evangélicos também cumprem esse papel. E o PCC, que também cumpre um papel de organizar um território que está desagregado socialmente. Então, eu diria que o neoliberalismo que, nas periferias, se apresenta da maneira mais cruel, a partir da década de 1990, ele produz, pelo menos, três desdobramentos sociais: o PCC, os evangélicos e os coletivos culturais. Um pouco nessa tentativa de reorganização societária desses territórios.

Antonio Martins: Deixa eu te fazer uma provocação, Tiaraju, nós sabemos que os coletivos culturais periféricos são, certamente, o que mais resgata dessa tentativa de criar uma nova sociabilidade, uma sociabilidade até autônoma, quando o mundo do capital, que é a fábrica, e quando depois… eu queria que você falasse mais desse conflito que você mencionou no início, mas quando a esquerda, das cidades, a esquerda da classe média, também entre em crise e, num certo sentido, deixa de fazer o que eu acho que é muito mal chamado de trabalho de base, porque é como se tivesse que se fazer um trabalho na periferia, como se, enfim… mas aí surgem esses 3 fenômenos. Um fenômeno é a cultura periférica, que são os produtores culturais. Mas eu queria, me intriga muito… me parece assim, olhando de fora, que num certo sentido os evangélicos expressam a tentativa de integrar pelo neoliberal, pelo empresário de si mesmo, pelo cara que vai pelo esforço próprio se destacar do conjunto dos demais. E o PCC representa, ao contrário, a articulação daqueles que querem impedir a violência do Estado, principalmente a violência prisional do Estado, que é como surge o PCC. Tem sentido isso? Ou estou romantizando demais a história?

Tiaraju D’Andrea: Eu matizaria, Antonio, eu matizaria nos dois casos. No caso do PCC, eu acho que cumpre um papel ainda, o PCC tem o monopólio legítimo da violência nas periferias urbanas, né? Utilizando o conceito do Max Weber, do sociólogo, você não pode operar nenhum tipo de ato de violência, sem que o PCC dê o aval, de sim ou de não, o PCC ele é o peso da balança, inclusive, hoje em dia, o PCC tem muito mais importância no próprio ordenamento territorial de favelas, por exemplo, de dizer quem pode construir barraco e quem não pode construir. Porém, nos seus processos históricos, o PCC também tem um nexo muito grande com o mercado. Eu acho que ele também passou a ser um empresário, né? Passou a ser um agente empresarial. Então, eu acho que tem esses dois lados, um lado de uma tentativa de ordem.

Antonio Martins: Num certo sentido, o proibicionismo deu para ele a reserva de mercado de um produto que é consumido largamente na sociedade.

Tiaraju D’Andrea: Exatamente, e ele virou um grande poder. Tem um grande poder econômico, ramificações por todo o Brasil e fora do Brasil também. Os evangélicos, é muito grande também o mundo evangélico, tem desde os fundamentalistas conservadores do machismo mais cavernícola, do patriarcado mais ancestral, da submissão das mulheres… tem um setor, também evangélico, que tem isso que você falou, que é o empresariamento de si mesmo, que é a teologia da prosperidade, que ajuda a empoderar o pequeno negócio, do morador da periferia, mas os evangélicos, eles também ajudaram a acolher muita gente em momentos difíceis. Então eu acho que a gente precisa também fazer essa leitura real e concreta. Não é só a palavra religiosa, ou a palavra de Deus, que faz efeito, faz efeito também porque distribui cesta básica, faz efeito porque ajuda quando uma pessoa está enferma, faz efeito porque cria laços de sociabilidade, faz efeito, Antonio, porque um grande problema da população moradora das periferias é um encarceramento em massa.

Tem muita gente que mora nas periferias que está presa, tem muita família que está morando em periferia, em favela, que tem familiar preso, quem ajuda é a igreja evangélica, que leva comida. Então, assim, tem parcelas da população que tem uma dívida de gratidão, e aí falo isso no meu livro “Quarenta Ideias”, poxa vida, a gente está no momento de desestabilização total da nossa sociedade, por conta da Covid-19, falta, às vezes, uma sede de um partido político, do movimento social ali, cinco seis militantes distribuindo… não precisa de muita coisa, mas só de você estar junto, ali na caminhada, já ajuda, entendeu?

E os evangélicos estão lá, a gente pode ter toda crítica política, e a gente tem toda a crítica política, porque tem que fazer também a crítica política, mas as portinhas estão lá, quando o calo aperta na população, é na porta da igreja evangélica que vai bater. Então, eu acho que a gente tem que fazer uma leitura um pouco mais concreta de “por que” o sucesso dos evangelhos. Também pensar falhas disso, que a gente chama – e aí eu gostaria de entrar numa discussão um pouco mais polêmica – que é a próprio utilização do termo esquerda. A gente passa por um momento que eu acho complicado, perigoso, porque, desde os setores da direita até esse pessoal que está nos blogs, que forma a cabeça das pessoas no blog, como grande parte de moradoras e moradores das periferias, parece que quando a gente fala de esquerda, a gente está falando de um mundo circunscrito a uma classe média intelectualizada, que está nos postos de direção dos partidos, ou que está nas universidades e isso é um perigo, Antonio. É um perigo!

Antonio Martins: O Bolsonarismo nada de braçada nisso.

Tiaraju D’Andrea: Nada de braçadas, mas isso também foram erros históricos cometidos por setores hegemônicos da esquerda, porque você circunscreve a um setor muito restrito algo que é uma bandeira histórica construída, há séculos, por trabalhadoras e trabalhadores, no mundo todo. Então, assim, esquerda somos nós, entendeu? Mas aí também, eu também critico o contrário, quando tem gente pseudo-radical, inclusive de periferia, que fala “eu não sou de esquerda nem de direita, eu sou da periferia”… bom, isentão também não dá, entendeu?

Ó gente, é isso que é a esquerda, somos nós, só que a esquerda ela é muito mais ampla, ela é muito mais heterogênea, ela tem uma série de setores, e a gente precisa combater esse esse processo de restrição a um certo setor da sociedade, desse conceito que foi construído com tanto sangue, suor e lágrimas. Esquerda é a classe trabalhadora, organizada ou desorganizada, esquerda é um movimento popular, esquerda é um movimento social, esquerda é uma forma como a gente enxerga o mundo… e se a gente tem toda uma série de, grande parte da, trinta ou quarenta por cento da nossa população, seja de classe média, seja mais empobrecida, às vezes com diferentes experiências, mas que compartilham uma visão de mundo, todos nós somos esquerda, entendeu? Inclusive, a gente, quando faz crítica à esquerda, faremos nós, também, nossa autocrítica. E setores organizados das periferias também, não dá para dizer que só acertaram, também cometeram um monte de erros históricos, também continuam cometendo. Eu estou falando de uma pessoa que está no movimento social, dentro das periferias. Eu acho que quando a gente chega num processo, ou num momento histórico como o nosso, Antonio, onde a gente está perdendo mais de 500 mil vidas, não sabemos onde isso vai parar… onde tem um projeto que nos derrota de maneira acachapante e, eu acho, que a gente tem que ter a humildade suficiente pra encarar e assumir que a gente está sofrendo uma derrota histórica, eu acho que todas e todos que se autointitulam de esquerda, precisam fazer uma séria autoanálise de como vem produzindo política nos últimos tempos.

E aí é todo mundo, é partido político, é movimento social, classe média intelectualizada, é esquerda, morador de periferia também, é morador de quebrada, porque todo mundo cometeu o seu equívoco, todo mundo fez a sua besteira, porque se a gente tivesse sido tão esperto, Antonio, a gente não estaria sofrendo o que a gente está sofrendo agora, com certeza.

Antonio Martins: E eu acho que essas coisas todas que você está falando, infelizmente, eu não posso continuar tomando o seu tempo o resto da noite, mas você está levantando alguns pontos que, se você se dispuser, eu acho que dão espaço para muita discussão política, sociológica, riquíssimo isso que você está falando. E, como eu tenho uma última pergunta, eu vou fazer uma penúltima, digamos assim, a última é justamente o que esses novos movimentos, essa epistemologia da periferia, essa sujeita e sujeito periférico pode dizer ao Resgate… e eu acho que tem muito a ver com o seu livro.

Mas antes disso eu queria que você dissesse pra gente, você que ao longo dos textos aqui, que eu fui lendo, seus, você vai acompanhando ponto a ponto, passo a passo o conjunto de influências políticas, ideológicas, na periferia: os conservadores, o lulismo, os evangélicos, etc. Queria que você me dissesse como como você acha que está o peso dessa balança, hoje? Muita gente, é claro que é besteira achar que o Bolsonaro ganhou por causa das periferias, Bolsonaro ganhou por causa da classe média e dos ricos, mas é claro que teve influência e tem também nas periferias. Como que ele está depois desses último fatos de declínio dele, de denúncia da CPI, de início de novas mobilizações e, ao mesmo tempo, como está o Lula? E como está isso que você enxerga mais importante, é o social, porque o político, eu acho que influencias pesam, hoje, e você fala muito, tanta coisa pra discutir… da passagem do rap para o funk, de que pesos têm as várias tendências da cultura da periferia, como é o ambiente hoje, cultural, político, social?

Tiaraju D’Andrea: A periferia é complexo de contradições, é um milhão de coisas acontecendo ao mesmo tempo, né? Eu acho que se a gente for falar de… quando a gente fala de cultura de periferia, tem pelo menos três formas da gente entender. Eu sempre pergunto, bom, cultura de periferia pode ser um projeto utópico de civilização; cultura de periferia pode ser produção artística, oriunda das periferias, enquanto os coletivos culturais teatros, do rap, do samba, cultura enquanto obra artística; e tem uma terceira forma da gente entender cultura de periferia que, te confesso, Antonio, hoje é a que mais me interessa, que é cultura enquanto modo de vida. Porque cultura enquanto modo de vida ela é mais ampla do que cultura enquanto obra artística, por mais que a gente tenha esse processo social ali, a partir dos 1990 que ancorou a política muito ao redor da produção artística, a gente não pode esquecer que periferia urbana está muito mais além do que essas pessoas que produzem arte e produzem cultura, que são intelectuais orgânicos importantes, mas a periferia é muito ampla, né?

Ela é muito contraditória, ela tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Eu eu sou muito crítico – e eu coloco isso no livro – a essas tentativas de taxar a periferia como se periferia fosse isto ou aquilo. Então, na década de 1990, a periferia era violenta, depois no lulismo a periferia é consumista, depois, periferia virou liberal, depois virou conservador… bicho, é um monte de gente ao mesmo tempo, entendeu? Que tem um monte de coisa acontecendo, pessoas que pensam diferente, pessoas que têm posicionamentos políticos diferentes, não é por aí que a gente unifica a periferia! A gente unifica a periferia muito mais nas condições de precariedade, de sociabilidades próprias, que se dão em territórios onde as pessoas precisam conviver de maneira muito próxima, onde as pessoas precisam aprender a conviver com o plural, muito antes da palavra diversidade entrar na pauta, a periferia sempre foi diversa, a periferia sempre teve gente de todos os cantos, que chegavam nesse território com culturas diferentes e que tinham que reaprender, numa nova cultura, porque é o encontro de todas elas.

Periferia é uma síntese cultural… só que é uma síntese cultural que está totalmente conectada com as condições econômicas. Então, a gente não pode falar de cultura de periferia como sempre uma coisa abstrata, né? A cultura de periferia é o concreto, cultura de periferia é a dificuldade para pegar um ônibus, no ponto de ônibus lotado, a cultura de periferia é a dona de casa que tem que esticar o seu salário até o final do mês para poder continuar comprando, cultura de periferia, uma molecada que sabe uma série de segredos para conseguir fugir da violência policial, tudo isso é cultura de periferia. Cultura de periferia está totalmente marcada e dependente pelas condições econômicas, porque cultural e econômico não são coisas que estão separadas, a gente aprende um pouco a pensar as coisas em caixinhas, né? Ah, é o cultural ou é o econômico… Não, bicho! Na realidade concreta não tem separação, a tua cultura é totalmente ditada pelas suas condições econômicas e a forma como você produz economicamente é totalmente relacionada à maneira como você, como naturalmente produz sua vida.

Então, assim, pra começo de conversa, periferia é território complexo, tem um monte de coisa acontecendo, tem um monte de gente que politicamente pensa diferente, as pessoas não são virtuosas de por si, por terem nascido e criadas em periferia… não é por aí, também. Na periferia você tem bolsonarista, na periferia você tem pobre de direita, você tem um empreendedor, você tem gente com pensamento progressista, você tem gente que pensa no próximo, você tem gente solidária, você tem gente que está no movimento popular, você tem gente que está na associação de moradores, no time de várzea, no clube de samba, no funk e você tem uma grande parcela da periferia que, acho que hoje talvez, no âmbito político, seja o que mais me chama atenção, você tem uma grande parcela que tá cética e está desacreditando de tudo… essa é talvez, essa interrogação que a gente precisa entender melhor, antes de ficar taxando ou, que por um lado a periferia é um bando de liberal, que quer subir na vida, ou é um bando de conservador que vota no Bolsonaro, ou por outro lado é na periferia que está a virtude… Olha, nem o triunfalismo e nem esse pensamento derrotista.

O que me chama atenção hoje é que, por exemplo, 40% da população das periferias não vota, nas últimas eleições, 2016, 2018, 2020. É uma população que já não acredita mais em tudo o que se fala, ela não acredita no sistema político, ela não acredita no jogo eleitoral burguês, ela não acredita na política institucional e, essa recusa, pode ser enxergada como sendo uma alienação, por um lado a gente pode enxergar, é uma população que não quer participar dos jogos políticos, mas a gente pode enxergar também como sendo uma visão a longo prazo, de 40% da população, que já entendeu que isso daqui já não diz mais nada.

Mas isso hoje para mim, me interessa mais, porque você tem tanto, quando a gente soma? Votos em branco, votos nulos e abstenções dá 40%. Eu quero entender porque essa população já recusa o sistema eleitoral, ela recusa o jogo burguês, ela recusa a institucionalidade burguesa. Márcio Pochmann tem um texto que ele vai dizer “muito mais do que liberal, a periferia é anarquista”, pode ser, pode não ser, mas eu acho que a gente precisa estar antenado a esses processos que ocorrem nesse subterrâneo da política, dessa política que o Gramsci chamava a política pequena, que é a política do cargo, a política da eleição, a política de qual candidato a gente vai lançar? Bom, essa é uma parte da política, mas tem uma outra parte que é um monte de coisa que está acontecendo na vida cotidiana das pessoas, que é como elas enxergam o mundo, e aí eu acho que a nossa capacidade de leitura é muito pequena, ainda é muito, os nossos mecanismos de entendimento da formulação ideológica da população pobre, no nosso país, ela ainda precisa ser melhor trabalhada. Pra gente, enquanto esquerda, acertar mais.

Antonio Martins: Entendi. Tiaraju, eu te disse já antes, mas digo aqui publicamente, eu gostaria muito que esse diálogo continuasse, eu acho que tem muitíssima riqueza nisso que você está dizendo. Para terminar, eu vou deixar as perguntas dos nossos leitores pra uma outra conversa, o Gerson, o André fizeram perguntas, são mais específicas, a do Gerson é muito interessante, eu vou ler para você porque é interessante para sua reflexão também: “a urbanização rápida do Brasil, sem o acolhimento humano dessas novas populações, em todas as grandes cidade, criou um paradoxo urbano. A urbanização é claramente um projeto: esvaziar o campo e entulhar a cidade. No campo a mecanização tecnológica dispensava os trabalhadores, na cidade o desemprego é um recurso do capitalismo. Muitas cidades como Goiânia, Natal, eram pacíficas até a década de 80. A partir dos anos 90 elas se tornam perigosas e violentas. São Paulo sofreu esse processo antes? O que muda em 90? É uma pergunta muito interessante, mas eu queria te fazer uma última de hoje. Espero que a gente volte.

Você lançou o livro “Quarenta ideias para a periferia”, e você estava dizendo, no início, que você é impactado pelo conflito, não sei se foi essa palavra que você usou, mas de sintonia entre o discurso de movimentos sociais, que chegam na periferia, e as narrativas produzidas na própria periferia. E nós estamos vivendo hoje uma situação em que talvez a gente, para superar a ameaça de fascismo, a gente tem é que propor uma radicalização, não é uma radicalização retórica dos velhos jargões da esquerda, se é reforma, se é revolução, mas é, que dizer, o que é preciso fazer para que as pessoas possam chegar de casa ao trabalho, em no máximo quarenta minutos. O que é preciso fazer para que termine o genocídio da periferia? O que é preciso fazer para que tenha ruas arborizadas e calçadas bem feitas? O que é preciso fazer pra que os mesmos investimentos que são feitos, são grandes, pelas prefeituras, no centro da cidade, sejam feitos em toda a cidade, né? Eu acho, às vezes, e o Resgate bate um pouquinho disso, que é preciso identificar novas radicalidades, a radicalidade não está em falar eu sou revolucionário, você é reformista, radicalidade tem em compreender concretamente quais são, onde aperta o calo das pessoas, e em que isso se relaciona com nós termos um sistema que só se preocupa com o lucro. Como a gente pode inverter isso? Bem, o que um discurso de mudança do sistema tem a ver com o seu livro “Quarenta Ideias pra mudar a periferia”? Por que você escreveu esse livro? Eu queria, tenho muito interesse, que eu não li ainda o livro e exatamente, eu queria que o nosso diálogo tivesse esse componente também. Você falou que tem um abismo, entre a classe média, a universidade e a periferia. Você, num certo sentido, é uma ponte, porque você está dos dois lados, se você enxerga isso ou se você quer isso, eu não sei, mas você concretamente é essa ponte. O que essa ponte quis dizer quando escreveu “Quarenta ideias pra mudar a periferia”?

Tiaraju d’Andrea: Esse livro é curioso, Antonio, porque eu tenho outros projetos intelectuais, tem outros livros pensados, livros com mais fôlego, inclusive, com mais profundidade, densidade teórica, mas esse livro aqui, ele foi escrito muito rápido, eu escrevi ele duas, três semanas, eu escrevi no mês de julho do ano passado, de 2020, eu escrevi esse livro no momento que eu estava tomado de angústia, era terceiro, quarto mês da pandemia, trancado em casa, isolado em casa, né? A gente, com uma série de sensações muito difíceis, aprofundamento do fascismo no nosso país. E então tinha uma angústia pessoal, de tentar reconstruir quais foram as condições de produção de uma tragédia, no sentido de tentar entender qual era o Brasil que propiciava que esse genocídio estivesse acontecendo, porque se o Brasil fosse outro, essa pandemia iria chegar, mas ela não ia ter a letalidade que ela teve e ela tem. Só tem por algumas circunstâncias históricas próprias do nosso país.

Tinha essa angústia, tinha uma segunda coisa que estava na minha cabeça, que era uma necessidade de tentar um pouco sistematizar os principais acontecimentos que tinham acontecido no Brasil, de 2013 para cá, porque a coisa, ela foi a roda da história, começou a girar muito rápido e eu tinha uma necessidade de dar uma sistematizada nos principais acontecimentos. E num terceiro momento, eu queria fazer um livro para quebrar dali. Eu estava cansado um pouco dos artigos acadêmicos, eu estava cansado um pouco das grandes teses ou mesmo dos manuais que chegam dizendo o que as pessoas têm que fazer. Queria fazer um livro fácil, de fácil entendimento, um livro rápido, de rápida leitura, um livro que tivesse um caráter de manifesto e um livro que apresentasse questões. “Quarenta ideias” é isso, quarenta ideias de periferia, história, conjuntura e pós-pandemia, são quarenta tópicos muito breve, cada um dos tópicos de muito fácil leitura e eu divido ele, mais ou menos, em três partes. Até o tópico oito, mais ou menos, é um pouco uma reconstrução de maneiras como a periferia foi enxergada por agentes externos, cheio de estigmatizações, depois, mais ou menos do tópico nove até o tópico vinte e oito, é uma reconstrução dos principais acontecimentos, de 1980 até hoje, no Brasil, e como que isso foi impactando as quebradas. No final do livro, que é o do tópico vinte e nove até o tópico quarenta, aí eu trato especificamente da pandemia, o que aconteceu nas periferias, da pandemia, os últimos tópicos são alguns apontamentos para o futuro, necessidade de reorganização, organização popular, fundamentalmente a gente precisa se organizar enquanto população moradora das periferias, pensar o comum, que é uma coisa que o Outras Palavras pensa bastante… a gente aprende muito, produção econômica em comum, produção da vida em comum, hortas comunitárias, assembleias populares, se organizar de uma maneira mais autônoma e que pense o bem-estar.

Porém, Antonio, eu acho que aí vai ser um dos grandes desafios de uma nova geração, a gente não pode, neste momento, prescindir do Estado. A política pública, ela ainda continua fazendo diferença, e a gente precisa ser inteligente o suficiente para se organizar pelo bem comum mas, ao mesmo tempo, revisitar pautas que às vezes ficam esquecidas, lutar por transporte público de qualidade, lutar por educação de qualidade, defender pautas que ainda são responsabilidade do Estado, porque o Estado é o que concentra a riqueza produzida pela sociedade, que concentra os impostos que todo mundo paga. Porém, a gente não quer mais o Estado genocida, a gente não quer um Estado que só reprime, a gente não quer um Estado que é o braço armado da elite, a gente quer as política pública de qualidade, como um direito nosso.

A pandemia está aí para mostrar, quando chega uma pandemia no nosso país, é no SUS que a gente vai se referenciar.

Antonio Martins: Eu acho, tem muito diálogo para fazer com você e muito diálogo para fazer com essa concepção também. E, só para adiantar, nós concordamos totalmente com isso, nós somos a favor do comum, nós somos a favor de superar essa ideia da democracia liberal, segundo a qual o poder do cidadão se esgota no voto, mas de fato, e nós estamos vivendo justamente o declínio do neoliberalismo fiscal, pelo menos da ideia de que o Estado não pode, e a sociedade por meio do Estado, não pode desejar a sua transformação, porque tudo que a sociedade tem que fazer é respeitar a austeridade dos mercados financeiros. Isso vai dar muito pano para a manga, se tudo der certo, ou em 2022, ou antes um pouco, a gente vai se livrar do bolsonarismo… e nós vamos ter um país para construir, reconstruir. E reconstruir, em novas bases. E só para terminar e te agradecer demais – você, num dos seus textos que eu estava lendo aqui, antes da entrevista, você supera a ideia do lugar de fala, dizendo que todos nós temos que conversar sobre o mundo todo, a partir do nosso lugar, a partir do nosso ponto de vista, a partir da nossa perspectiva, que eu acho que esse cruzamento de perspectivas é uma coisa extremamente importante.

Eu te agradeço muito, o teu tempo, as tuas ideias, e eu fico muito feliz de o Outras Palavras ter te conhecido e quero – depois a gente conversa mais em detalhes – mas eu gostaria muito que você participasse muito ativamente da própria construção da ideia do Resgate.

Tiaraju D’Andrea: Perfeito, Antonio! Obrigado. Quem quiser, só para finalizar, “Quarenta ideias” está no site da Dandara Editora, se alguém se interessar, R$15, uma guerrilha aí no mercado editorial brasileiro, mantendo esse preço. E agradecer muito, Antonio, não só o convite, mas o trabalho que o Outras Palavras faz. Eu sou fã do Outras Palavras, eu sou cadastrado, então eu recebo no meu e-mail as notícias, eu acho muito bom o site, muito boa a proposta de vocês. É fundamental pensar esse resgate do Brasil, através dos doze pontos que vocês formularam, e um ponto específico, a gente pensar periferia urbana, na sua complexidade ideológica, simbólica, política e infraestrutura também, né? Às vezes a gente esquece que o problema da periferia é um problema infraestrutural também, um problema de infraestrutura urbana.

Antonio Martins: Com certeza.

Tiaraju D’Andrea: E penaliza essa população, que é a maioria da população, como você você bem pontuou. Podemos dizer que 70%, 80% da população brasileira vive em periferias urbanas.

Antonio Martins: Valeu! Muito obrigado, Tiaraju.

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