Hora de iniciar o Resgate

Potência e alegria dos protestos de sábado chocam-se com morte e devastação espalhadas pelo fascismo. Agora, é preciso voltar a energia das ruas para a reconstrução do país em novas bases. Outras Palavras inicia diálogos sobre o tema

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A apresentação do projeto (íntegra no vídeo acima) inicia a fase de Diálogos Preliminares do projeto Resgate. A série prossegue nos próximos dias, com entrevistas com Sônia Fleury (22/6) Eduardo Fagnani (23/6), Artur Araújo (24/6) e Tiaraju D’Andrea (25/6), sempre às 20h e no canal de Outras Palavras no Youtube. Você também pode ouvir a versão da apresentação em podcast, abaixo.

Sob o impulso das novas manifestações contra o bolsonarismo, que reuniram centenas de milhares de pessoas no sábado, Outras Palavras abre esta semana nova iniciativa editorial e política. Chama-se Resgate. Visa suscitar, no cenário político complexo que o Brasil atravessa, a reconstrução de um horizonte político de mudanças estruturais. Começa com quatro entrevistas essenciais. Nesta terça-feira (22/6), a cientista política Sônia Fleury relembrará a construção do SUS (da qual fez parte) e a importância de lançar, mesmo em tempos difíceis, o que transforma e desmercantiliza as relações sociais. Na quarta (23/6), o economista Eduardo Fagnani tratará de um possível Estado de Bem-estar Social brasileiro no século 21. Na quinta, o analista político Artur Araújo examinará em detalhes o caminho que nos separa de 2022, seus desafios e armadilhas. Finalmente na sexta, o sociólogo Tiraju D’Andrea apresentará seus estudos sobre os novos sujeitos sociais das periferias, a impotência do discurso tradicional de esquerda diante deles e a necessidade de dialogar com as comunidades em novos termos.

O Resgate parte de dois pontos de vista essenciais. É possível derrotar o fascismo; mais o day after não pode ser a mera volta ao “velho normal” – porque foi ele que nos projetou no caos. Às vésperas de completar 200 anos, o Brasil vive sua crise mais dramática e profunda. As 500 mil mortes da pandemia são a face aparente e mais funesta, mas não a única. A economia vive a fase mais aguda de uma reprimarização que se arrasta há quatro décadas. A participação brasileira no PIB mundial, que chegou a 4,4% em 1980, despencou para 2,5%. O país voltou ao mapa da fome da ONU e está, mais uma vez, entre os dez mais desiguais do mundo, em distribuição de renda. O aumento da miséria escancara-se nas ruas coalhadas de famílias sem teto ou abrigo. E o desastre de hoje agrava o de amanhã. Segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, divulgada hoje (21/6), 47% dos jovens entre 15 e 29 anos, de todas as classes sociais, deixariam o país, se tivessem condições de fazê-lo. Afirmam já não suportar o desaproveitamento de suas capacidades, a tacanhez e negligência dos que têm poder, o apagamento das esperanças.

A novidade é que, após este longo pesadelo, tornou-se possível despertar. Num movimento ainda pouco examinado e compreendido no país, uma das pilastras do projeto que produz nossa ruína está desabando. O neoliberalismo fiscal – ou seja, a ideia de que as sociedades e Estados precisam curvar-se aos desígnios dos mercados financeiros e, assim como as famílias, “só gastar aquilo que arrecadam” – já não se sustenta. O declínio deste tabu é uma história longa e fascinante, mas terá de ser narrado em outro momento. Mas as consequências práticas da queda são reais e impressionantes. Os Estados Unidos estão lançando, há seis meses, uma série de programas trilionários para salvar as famílias atingidas pela pandemia, reconstruir sua infraestrutura em bases limpas e renováveis, resgatar os estados e municípios afundados em dívidas, oferecer cuidados gratuitos às crianças e idosos. Ao fazê-lo – ou seja, ao colocar as necessidades sociais à frente dos interesses dos rentistas – eles apenas repetem o passo dado muito antes por um conjunto de países asiáticos, a começar pela China. Os conceitos que hoje dominam o debate econômico brasileiro – “austeridade”, “ajuste fiscal”, “cortes de gastos” tornaram-se anacronismos esdrúxulos. O slogan-símbolo do neoliberalismo, cunhado por Margaret Thatcher, – “não há alternativas” – faz agora parte do passado.

Mas o Brasil ainda vagueia num vastíssimo deserto de falta de horizontes e de imaginação política. As causas desta secura também serão tratadas em outro momento. O importante é saber que ela pode passar. O Resgate propõe-se a contribuir com isso. Ao longo dos próximos doze meses, Outras Palavras abrirá diálogos sobre 16 ideias-forças para mudar o país. O primeiro roteiro do percurso, que ainda está em construção, pode ser visto em breve.

Não se trata de um programa, algo mais típico de partidos políticos. São visões dos pilares que podem permitir a construção de um novo país. Cada um deles relaciona-se, simultaneamente, com dois movimentos: a) correspondem as necessidades óbvias das maiorias; b) desafiarão, caso implementados, as estruturas que submetem o Brasil à desigualdade colonial, à mercantilização da vida e à ditadura financeira.

A partir deste roteiro, Outras Palavras debaterá, ao longo dos próximos 12 meses, um feixe de ideias perigosas. E se o país constituísse uma rede de serviços de excelência, de maneira que a melhor escola e o melhor rede de assistência à saúde fosse a pública? E se iniciássemos

uma Virada Socioambiental, que limpasse nossa matriz energética (a fonte solar tornou-se há pouco a mais barata) e restabelecesse uma rede de ferrovias? E se lançássemos um grande programa de transformação das metrópoles, com a construção de metrôs, a reurbanização das periferias e áreas centrais degradadas, a priorização dos equipamentos públicos em relação à cidade com cercas? E se abríssemos um processo de transição do modelo agrícola baseado no agronegócio para a Agroecologia? E se reconstruíssemos a indústria nacional, partindo do atendimento às necessidades (Saúde, Educação, Transportes, Comunicações) criadas pela garantia de serviços públicos de excelência? E se oferecêssemos, para atingir todos estes objetivos, empregos dignos a todos os que o desejassem? E se…

A construção de um novo horizonte político tornou-se possível, com a crise do neoliberalismo fiscal. Nada será fácil, num país devastado. Mas caiu o muro que impedia pensar a transformação. Esta queda abre dois novos sentidos ao período decisivo que se estenderá até 2022. Aos milhões de brasileiros que desejam derrotar o fascismo, abre-se um caminho para participação política intensa, para que as eleições não se reduzam a depositar um voto em urna (eletrônica). Reconstruir o país exige mobilizar a inteligência e capacidade de formulação e debate coletivos, ultrapassando em muito os limites estritos das estruturas partidárias. Mas exige, ao mesmo tempo, repolitizar as eleições. Ao contrário do que querem os fascistas, elas deixam de ser uma mera disputa de dois grupos pelo poder; um confronto em que não há futuro coletivo em debate, em que os programas se assemelham e em que, portanto, valem todos os golpes, as mentiras e as baixezas. Torna-se possível mostrar às maiorias que há uma ideia de país a ser reconstruído; há caminhos reais para fazê-lo; e há aqueles que desejam bloquear este caminho.

Num país entristecido e apequenado há anos, as manifestações de sábado foram um sinal de possível revivência. Elas mostraram que centenas de milhares de brasileiras e brasileiros não se renderam à morte e à devastação nacional. O Resgate é um convite à mobilização da inteligência desta maioria. Esperamos que você aceite.

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