Fagnani expõe três décadas de atraso e patifaria das elites

O esforço em que se lançaram desde 1987, para inviabilizar os direitos sociais previstos na Constituição, paralisou o país. Agora, a crise do neoliberalismo fiscal deixou-sas mancas – e é possível retomar a luta por um Estado Social no século 21

Eduardo Fagnani, entrevistado por Antonio Martins

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> O texto a seguir foi construído a partir de entrevista com Eduardo Fagnani, que está transcrita ao seu final. Acesse também as versões em vídeo (link acima) ou podcast (abaixo)

> O projeto Resgate, por meio do qual Outras Palavras quer debater ideias-força para a reconstrução do Brasil em novas bases, pode ser conhecido aqui

Em 1987 não havia nem celulares, nem internet. Ayrton Senna não passava de uma jovem promessa da Fórmula 1. A União Soviética rivalizava com os Estados Unidos como primeira potência econômica e militar do planeta. A China, rural e desindustrializada, era oito vezes mais pobre que o Brasil, em termos de PIB per capita. No dia 24 de novembro, o presidente José Sarney alertou, em entrevista coletiva prestigiada pela mídia, que o país poderia se tornar “ingovernável” caso a Assembleia Constituinte insistisse em reconhecer direitos sociais “exorbitattes”. O economista Eduardo Fagnani, professor da Unicamp e coordenador da Plataforma Política Social, lembrou-se vivamente desta fala, ao ser entrevistado, ontem (23/6), nos diálogos preliminares do projeto Resgate, iniciado por Outras Palavras.

A “advertência” de Sarney é um marco da história recente do Brasil, segundo Fagnani. Ela registra o início de uma sabotagem sistemática das elites à emergência dos trabalhadores e das maiorias, que fora o fato mais destacado da década anterior. Este boicote jamais cessou, desde então. A narrativa é retomada a cada nova investida em favor da destruição do pacto social de 1988 e da conservação dos privilégios. O resultado é que estas três décadas e meia coincidem com o maior período de estagnação da história brasileira. Ao sabotarem a construção de uma democracia social e econômica, as oligarquias quebraram as pernas do país. Agora, finalmente, algo está mudando.

A entrevista de Fagnani é, muito mais que uma análise econômica, uma aula sobre a história das disputas sociais no Brasil, nos últimos noventa anos. Assumindo o risco das simplificações exageradas, penso poder sistematizá-la assim:

1. As primeiras tentativas de fazer valer os direitos políticos, civis e sociais das maiorias dão-se a partir de 1930, após a queda da República Oligárquica. As lutas operárias haviam eclodido antes, e um de seus marcos é a greve geral de São Paulo, em 1917. Mas eram fenômenos localizados. Herança da colonização e do escravismo, o Brasil era um país de população rural e analfabeta. A modernização getulista deixa a maioria de fora: exclui os trabalhadores do campo e, mesmo nas cidades, contempla apenas as categorias sindicais mais organizadas, visando cooptá-las. A tentativa de aprofundar o processo, na luta pelas “reformas de base” do início dos anos 1960, resulta na reação virulenta dos poderosos, e no golpe de 1964.Durante a ditadura, houve uma “modernização conservadora”. Em síntese, o aparato institucional e financeiro foi ampliado, mas não houve distribuição da renda. Pelo contrário, à despeito do crescimento da economia a concentração da renda aumentou para patamares incivilizados na comparação internacional.

2. A Constituinte de 1986-88 é o segundo marco. Ela foi precedida por algo inédito: a emergência de uma onda de lutas trabalhistas e sociais, agora generalizadas (ao contrário de 1917) e autônomas (à diferença de 1930). A ditadura brasileira fora, do ponto de vista econômico, desenvolvimentista e industrializadora. Por volta de 1974, passada a fase mais terrorista do regime, começara um longo processo, em que uma nova classe trabalhadora exigia seus direitos e era apoiada por parte importante das classes médias urbanas. É neste período que surge, por exemplo, a luta pela Reforma Sanitária, narrada ao Resgate por Sônia Fleury. Dez anos depois, forma-se uma avalanche de lutas democratizantes, que sela o fim do reinado militar e exige a Constituinte.

3. Mas todo este processo é atropelado, no plano internacional, por uma onda muito maior: o neoliberalismo. Ela irá lançar-se contra o Estado de Bem-Estar Social na Europa e Estados Unidos e ameaçar os esforços de modernização em curso na periferia do Ocidente. Brasil, México e o precoce Chile são casos típicos. O paradoxo é que a esquerda formulou um projeto de transformação em meados dos anos 1970, inspirando-se nos “anos gloriosos” do pós Segunda Guerra. Mas, quando a Constituição de 88 foi aprovada, suas ideias estavam na contramão da doutrina neoliberal dominante.

4. A “advertência” de Sarney em 1987 não é um raio em dia de sol. Ela expressa a formação de uma aliança antipopular, que reúne as oligarquias históricas e a “nova” burguesia – industrial ou financeira – com recalques coloniais. O Centrão constitui-se nesta época, com o propósito de frear a democratização social e econômica ensaiada na Constituinte. E aqui, Fagnani concorda com Sônia Fleury. O que caracteriza os 33 anos seguintes não é a “conciliação de classes” – mas um esforço permanente da aliança antipopular para inviabilizar os direitos descoloniais reivindicados pelas maiorias. Este processo produz a ruína atual do Brasil. Em sintonia com a grande maré neoliberal, ele reduz o país – à época, a economia mais moderna do chamado “terceiro mundo” – à reprimarização, a um território crescentemente rebaixado a produzir apenas minérios e commodities agrícolas.

5. O conflito não está resolvido. Do ponto de vista conservador, resta muito por destruir. A célebre fala em que Bolsonaro sustenta, nos EUA, ser preciso “desconstruir muita coisa” no Brasil é um eco deste desejo de morte. Também o são a tentativa de liquidar a Petrobrás, a Eletrobrás, o Banco do Brasil e os Correios; ou de liquidar o SUS (substituindo-o por vouchers para compra de serviços privados) e – conforme frisa Fagnani – de revogar benefícios sociais constitucionais que ainda asseguram algum sustento a 120 milhões de brasileiros. Na visão neoliberal, eles devem ser jogados à própria sorte, para alimentar a fornalha do capitalismo de bicos. No início do século 21, o mantra do “país ingovernável” lançado por Sarney, transformou-se no mito de que “as demandas sociais da democracia não cabem no orçamento”. Em outras palavras é preciso tirar o pobre do orçamento e destruir, de vez, a proteção social conquistada tardiamente. Sem destruir o pacto social selado em 1988, a economia não irá crescer, afirma-se; os investidores não virão para o país; e o Brasil continuará “ingovernavel”; Em última instância o projeto das elites nacionais e internacionais, acalentado desde 1989, é implantar no Brasil o modelo chileno. No exato momento, aliás, em que este país está se livrando de tal projeto – o que dá ideia de nosso atraso…

6. Em contrapartida, a luta por um Estado Social Brasileiro no Século 21 tornou-se, ao mesmo tempo, mais necessária e mais possível. Do ponto de vista dos direitos, ela terá de abranger muito mais que os trabalhadores formalizados e que cumprem jornadas regulares. Terá de acolher e reconhecer os direitos do contingente cada vez mais numeroso que alguns autores têm chamado de emprecariado (e Miguel Lago, num artigo particularmente feliz, trata como Batalhadores do Brasil). Ou seja, se bem travada, a luta pelo Estado Social Brasileiro pode tornar-se universal. Porém, ela precisa ser acompanhada por um novo enorme esforço de modernização econômica – que agora já não se confunde com a mera industrialização. Há um vastíssimo trabalho de garantia de serviços sociais de excelência e de renovação de infraestrutura, em bases limpas, pela frente. Ele poderá oferecer ocupações dignas às dezenas de milhões de brasileiros hoje desaproveitados, por desemprego ou desalento.

7. E se surgirem, na sociedade brasileira, sujeitos sociais dispostos a travar estas lutas, eles serão favorecidos por um cenário internacional em rápida transformação. Quarenta anos depois, o neoliberalismo fiscal está desabando. A Ásia (particularmente na China) rechaçou-o durante estas quatro décadas, obtendo com isso notáveis resultados econômicos, sociais e, mais recentemente, ambientais. Nos Estados Unidos, Joe Biden não cessa de rechaçá-lo, ao lançar programas gigantescos de socorro às famílias, recuperação da infra-estrutura, conversão para energias limpas, estímulo ao desenvolvimento tecnológico, cuidado com crianças e idosos.

Trinta e três anos depois, ainda estão rolando os dados. E a luta por reconstruir o Estado Social Brasileiro no século XXI, da qual Eduardo Fagnani é um arauto, será, nos próximos meses, uma das ideias-força essenciais do Resgate.

Eis a transcrição do diálogo:

Antonio Martins: Olá! Boa noite, eu sou Antonio Martins, editor do Outras Palavras. Esse é o segundo programa do Resgate, é o projeto que a gente está iniciando agora e vai durar, aproximadamente, um ano, para discutir o Brasil, a luta para superar o fascismo e, em especial, a luta para que o day after da queda do fascismo, para a qual nós queremos contribuir, não seja a volta ao velho normal. O velho normal é que nos trouxe aqui, o velho normal dos 500 anos de colonialismo, o velho normal das últimas 4 décadas de projeto neoliberal.

É com uma satisfação muito grande que a gente ouve, hoje, o Eduardo Fagnani. Eduardo Fagnani é economista da UNICAMP, professor da UNICAMP, mas ele é articulador de um projeto que é menos conhecido do que deveria, a Plataforma Política Social. A Plataforma Política Social reúne algumas dezenas, ou talvez centenas, de pesquisadores que estão envolvidos na reflexão sobre o Brasil, mas que não se limitam a isso, provocados pela plataforma, eles procuram intervir na conjuntura brasileira, intervir nos grandes temas.

A Plataforma e o Fagnani, em especial, tiveram um papel muito destacado na luta contra a contrarreforma da previdência. Há três anos fizeram estudos de enorme importância e e repercussão, ao final. E também a luta em favor da Reforma Tributária, também com muito diálogo, com diálogo com os movimentos sociais e muita incidência na conjuntura.

Boa noite, Fagnani!, Como é que você está?

Eduardo Fagnani: Boa noite, Antonio! Prazer estar aqui. Parabéns pelo Projeto Resgate.

Antonio Martins: Obrigado e estendo a você também, Fagnani. O Fagnani é, junto com a Sônia Fleury, junto com Arthur Araújo, uma das pessoas que estão ajudando a construir toda essa pauta do Resgate, que é um trabalho duro, são muitos temas, há necessidade de dialogar com muita gente. Mas nós estamos nas preliminares do Resgate e o Fagnani tem uma contribuição que é crucial, O Fagnani é um dos defensores, é o defensor de uma tese muito cara a essa ideia do Resgate, que é a proposta do Estado Social Brasileiro do século XXI. A gente vai ouvi-lo sobre isso, hoje. Essa ideia do Estado Social Brasileiro parte de uma avaliação do que foi o liberalismo brasileiro, os 400 anos escravidão, depois completados por um estado liberal que excluía 90% da população. A formação, sob Getúlio, do embrião de estado social, a CLT, mas a proteção parcial que a CLT ofereceu, tudo isso ele estuda. O esforço depois, na luta para superar a ditadura, as reformas de base antes, mas são derrotadas, tem a ditadura, os retrocessos, o esforço, sob a ditadura, de retomar uma luta redistributiva. A Sônia Fleury falou muito, ontem, de toda a história do SUS, que é muito bonita… mas isso chega na Constituição de 1988 e aí é uma longa história que o Fagnani vai contar para a gente, nesse bate-papo.

Por onde começamos, Fagnani? Você é um estudioso de como começou a surgir o estado social brasileiro, lá nos anos 1930. Você não quer contar um pouquinho? É muito longa, tudo que a gente tem. Muito longo, não, mas é complexo. Vamos dividir em etapas, aqui. Conta pra gente um pouco dessa sua pesquisa e desse seu interesse e envolvimento nesse debate.

Eduardo Fagnani: Está bem, ótimo! Acho que é uma discussão bem interessante. Enfim, há um certo consenso que o estado social brasileiro ele surge, com força, a partir de 1930, né?! Mas é interessante a gente perceber que é no Brasil, em 1930, né? Quer dizer, é um país com talvez mais 80% da população morando no campo. Estamos falando de menos de menos de 100 anos atrás, né? A maior parte da população morando no campo, acho que 90% da população. A maior parte da população é analfabeta, o legado do regime colonial, além de ser um sistema escravagista, é uma sociedade sem direitos, sequer os direitos civis existiam no Brasil. A gente sempre pensa na Inglaterra, com os direitos civis surgindo no século XVIII, indivíduos políticos no século XIX, nos direitos sociais do século XX, né? O Brasil, no século XX, sequer tinha, no início do século XX, sequer tinha direitos é civis, porque sequer o direito à vida era garantido, Naquele começo de século, com os resquícios da escravidão.

Então, para sintetizar o período, acho que quem melhor sintetiza é o Vanderlei Guilherme dos Santos – falecido recentemente, um grande intelectual brasileiro – é que ele tem a ideia, quer dizer, a ideia que as movimentos sociais saíram na frente, mas saiu na frente na ditadura, no estado novo… mas a ideia básica é a ideia da cidadania regulada – isso é uma coisa importante. E o que é a cidadania regulada? O Estado dizia quem era cidadão. E quem era cidadão? Desde logo não era os rurais, portanto já excluía 80, 90% da população. E desde logo não eram todos os trabalhadores urbanos.

Antonio Martins: Só um parêntesis, Fagnani, essa exclusão dos rurais implica um pacto do Getulismo com as oligarquias agrárias, não?

Eduardo Fagnani: Sim, mas além disso você vai ter o que? É o início da industrialização, quer dizer, a chamada industrialização restringida, que é 30-55, e tem a ver com com os movimentos sociais do começo do XX, né? A greve de 1917, o papel dos anarquistas, papel do movimentos social, sindical, que crescia, naquele momento. Então, na verdade, você tinha que dar uma resposta a isso. A cidadania regulada é isso, você só inclui as categorias profissionais mais organizadas politicamente, né? Então exclui todos os rurais e todos os urbanos. Então, a cidadania regulada é isso. Quem tinha direito a CLT? Quem tinha direito o instituto de aposentaria e pensão, que é a previdência da época, mas quem que tinha direito? Seis categorias profissionais: os comerciários, industriários, os trabalhadores das companhias de transporte, os estivadores, tá certo? E, depois, mais tarde, os funcionários públicos. Então, só essas 6 categorias profissionais, é que tinha o direito à cidadania, à carteira de trabalho, os direitos trabalhistas, enfim, toda toda essa questão. O que é interessante, quer dizer, nesse percurso que você está propondo fazer, a ideia da universalidade – os direitos sociais são universais pra todo mundo – só surge em 1988. É a primeira vez que, por exemplo, o trabalhador rural tem os mesmos direitos do trabalhador urbano e a mesma previdência do trabalhador urbano. Mas é um longo percurso.

O segundo momento é a ditadura militar – tratando aqui de forma bem simplificada – onde essa ideia da cidadania regulada se expande um pouco, mas continua regulada, você continua excluindo os rurais e, na área urbana, você só atende – não mais as seis categorias profissionais – os trabalhadores do mercado formal, quem tinha carteira assinada. Então, por exemplo, para você ter acesso à saúde – saúde, naquela época, a Sônia deve ter falado isso – o SUS surge como uma crítica e uma alternativa à política da ditadura, o que você tinha era, o estado praticamente não prestava serviço, ele contratava empresas privadas, hospitais privados. Então, esses hospitais privados, laboratórios, etc., faziam um convênio com, no início com o NPS. E se você ficasse doente, você podia ir num hospital desses, mas você tinha que levar tua carteira de trabalho assinada. Então, se você estivesse trabalhando e contribuindo você tinha acesso, se você estivesse desempregado ou não tivesse carteira de trabalho, você não tinha acesso.

Então, essa ideia da cidadania regulada permanece, praticamente, até 1988. Não sei se você quer… você quer que eu dê um passo além?

Antonio Martins: Quero sim. Em 1988 tudo muda, mas é importante porque muda também a partir de um enorme ascenso do movimento social, né, Fagnani? É o ascenso que em 1978 toma a forma das greves operárias, é um sujeito novo que o movimento operário, o movimento sindical, movimento dos trabalhadores em geral… que surge de uma forma muito mais autônoma do que sob o getulismo, e é um conjunto, são movimentos sociais de base. A gente estava falando, ontem, dos movimentos pela saúde, que existiam na periferia de São Paulo, por exemplo, que são quase desconhecidos do pessoal que tem menos de cinquenta e poucos anos… E também dos movimentos de reflexão sobre o Brasil, o movimento da Reforma Sanitária é um forte exemplo, mas eu lembro que, como diretor da UNE, participante do movimento estudantil, e no fim da década de 1970 existia uma imensa reflexão sobre a crise da educação brasileira, sobre a educação, coisa que a gente tem menos, talvez, hoje. Então, 1988 é o cúmulo de um processo que vem, sei lá, desde que começa a ressurgir, depois do AI5, depois que termina a fase mais dura da repressão, da vitória eleitoral do MDB, em 1974, então se combina movimento social com conquista de espaço na institucionalidade e, e digamos assim, se a gente pega de 1974 para 1988, são 14 anos de ascenso do movimento social e de recuo da ditadura, né? E aí chega em 1988 e tem isso que você conta, que é tentativa de virada histórica, essa história você conta melhor que ninguém.

Eduardo Fagnani: É, você tem toda razão, quer dizer… a constituição de 1988 foi forjada durante a ditadura militar, pelas forças políticas que lutavam pela redemocratização. Necessitou aí o papel do MDB, quer dizer, essa essa luta ganhou força quando os brasilianistas divulgaram os dados sobre a concentração da renda. Então assim. se vivia aquela ideia do “milagre econômico”, o “Brasil é uma ilha de prosperidade”, que os militares sempre divulgavam, mas os brasilianistas disseram “cresceu, mas concentrou a renda brutalmente”. Então, você tem essa discussão, especialmente, sobre a distribuição da renda. Você tem a revolta dos usuários dos dos transportes públicos… incêndios, queima-queima, quebra-quebra de trens de subúrbios, de ônibus, etc., pela má qualidade de serviços. Isso em 1971, 1973, 1974… vai pipocando coisas desse tipo, em plena ditadura.

Você teve uma epidemia de meningite, aqui em São Paulo, que matou milhares de crianças. E você tinha dados sobre a fome, a primeira ENDEF, que é de 1973, atualmente é a POF, Pesquisa de Orçamento Familiar, mostrava em número que uma grande maioria das crianças brasileiras, dos brasileiros, não consumia a quantidade de caloria, de proteína, que se exigia, daí você tem as distorções de peso e idade, pessoas com maior idade, enfim, e que tinham uma estatura pequena, bem menor, enfim, é uma série de manifestações que vão ocorrendo.

Depois a vitória do MDB, em 1974, que foi um alinhamento extraordinário, então o bonde desse processos todos, os diversos movimentos sociais que existiam, como o movimento sanitarista, que você conversou ontem com a Sônia, que eram críticos à política de saúde da ditadura… mais à frente, vem o novo sindicalismo, com o Lula. Mais à frente, também, vem a reorganização da CONTAG, ainda não existia o MST, era a CONTAG que lutava pela reforma agrária.

Você tem os movimentos da educação, da assistência social, você tem, no final dos anos setenta, a história da crise do BNH, as pessoas não conseguiam mais pagar as prestações do BNH, então você tem um movimento em torno do BNH, os municípios se unindo contra o PLANASA, que era a política nacional de saneamento, que era extremamente concentradora de poder e de recursos… enfim, é uma série de movimentos sociais que vão surgindo, a partir de meados, durante meados dos anos setenta, isso… depois você vai ter o projeto do Geisel, de abertura política. Então, qual que era a ideia dele? De dividir a esquerda e unificar a direita. Ele faz anistia, voltam todos anistiados e acaba com o bipartidarismo. Então você vai ter, além do MDB, você vai ter o PDT, o PTB, enfim, vários partidos da esquerda, mais a frente o PT. Mas qual era o objetivo? O objetivo era as eleições para governadores, 1982. E quando tem as eleições de governadores, em 1982, em estados-chave, como São Paulo e Rio, por exemplo, ganha… quem é que ganha? O Brizola, né? Fizeram o golpe, em 1964, acho que o maior inimigo era o Brizola, e na primeira eleição que ele volta, ele ganha, no Rio de Janeiro.

Em São Paulo era o Montoro, que tinha sido ministro do Jango, ministro do trabalho do Jango. Então, aí você vai ter um outro movimento importante, que é, quer dizer, se durante – eu acho que a ditadura teve vários momentos – um deles é entre sessenta e oito e setenta e três, quando, a partir do AI5, você tem a ditadura recrudescida, e o milagre econômico, o Brasil crescia 13% ao ano. Então, esse é um momento auge da ditadura.

Mas o que você tem entre 1980-84? Uma recessão econômica brutal, não é? Brutal! O Brasil volta ao FMI e a reorganização da sociedade civil, que acaba fazendo com que contribua para o fim, para o esgotamento do regime autoritário. Mas eu estou dizendo tudo isso, para dizer que as eleições dos governadores e a recessão, todos esses movimentos, proporcionaram, essas lutas populares que estavam ocorrendo, um dos maiores movimentos sociais – acho que – até então, da história, que foi um movimento pelas “diretas já”, então foi um movimento extraordinário.

De toda forma, no bojo desse processo de reorganização da sociedade civil, dos movimentos sociais, os setores progressistas fazem um projeto de transformação. Esse projeto de transformação tinha três pilares: o primeiro pilar era economia crescer, distribuir renda; o segundo pilar era a redemocratização do país; e o terceiro pilar é um novo modelo de proteção social. O que unia todo mundo, todas as forças, inclusive as forças mais de centro e mais de direita, era a redemocratização do país. Eu tenho cá para mim, que as conquistas sociais de 1988, vamos dizer assim, elas foram os efeitos colaterais não desejados, sabe? Quer dizer, o que se pretendia realmente era a redemocratização, mas o movimento social quer construiu uma agenda tão poderosa e, junto com esse movimento pela redemocratização, que acabou constituindo no, Brasil, um esboço de um estado de bem-estar social inspirado na experiência europeia, do Pós- Guerra.

Antonio Martins: Fagnani, deixa eu te interromper um pouquinho, porque, aqui, a gente entra num tema em que a Sônia Fleury deu, ontem, uma contribuição polêmica e e importante. Porque as novas gerações cresceram formadas segundo a ideia de que, a partir de 1988 até 2016, quando se dá o golpe, houve uma espécie de pacto, o pacto da nova república. Ela estava lembrando, ontem, que essa história está mal contada, porque não há propriamente um pacto, há uma resultante – ela é lembra – é aprovada a Constituição e o Sarney, que é o presidente conservador na época, que foi quem convocou a constituinte, mas ele está ligado ao centrão – o centrão surge na constituinte, muita gente não sabe, e a aliança entre os neoliberais e a direita surge na constituinte, também – e o Sarney diz: “esse país ficou ingovernável”.

Então isso entra aqui no seu ponto central, porque segundo a Sônia Fleury, queria que você comentasse isso – e já desenvolvesse, em relação ao Estado Social – a constituinte aprova o capítulo dois da constituição, que é totalmente ligado aos direitos sociais – e você desenvolve isso também, já em outras conversas já falou – mas desenvolve uma ordem econômica neoliberal e não oferece, para o Estado, bases seguras de sustentar as políticas públicas necessárias para garantir aqueles direitos sociais, ou seja, a hipótese da Sônia, que eu queria que você comentasse, assim, é que essa ideia, essa palavra “pacto”, sugere que as forças populares que desembocaram na constituinte, e as forças liberais que que começam a ter influência maior, também, a partir, mais ou menos, desse período.

É o período em que o Roberto Campos tem enorme destaque no debate político nacional – é como se elas tivessem feito um acordo e o que a Sônia está levantando é que essa história está mal contada, porque não há um acordo, há uma divergência, há uma constituição que tem que ser escrita e que tem elementos das duas tendências, mas a constituição não abre um período de acordo, ela abre um período de dissenso, que vai criar todas as turbulências e instabilidades do Brasil, que vão desembocar em em 2016. Mas ela diz: “essa história não está terminada, os dados ainda estão rolando”. Que que você acha disso?

Eduardo Fagnani: Olha, eu concordo, mas a minha visão é a seguinte… nós – primeiro deixa eu falar nesse pacto aí, não é? Bom, primeiro eu queria dizer o seguinte, é importante a gente está falando isso para as novas gerações, porque nós estamo falando de um contexto de ditadura, e como o movimento social se reorganizou, e fez a redemocratização, escreveu a Constituição. Então, é um pouco um alento para o momento que a gente vive hoje – que nós não vivemos numa ditadura, mas vivemos numa fase de destruição desses direitos – na importância do projeto Resgate, o que cabe a nós, agora, é apontar caminhos para a reconstrução do que está sendo destruído. Então, eu queria fazer primeiro esse parentes.

O segundo ponto, que eu quero dizer, é o seguinte: olha, a esquerda fez um projeto, um projeto de transformação. Esse projeto – até nas aulas eu sempre digo isso – quem quiser ter uma uma visão desse projeto, tem um documento de 1982, do MDB, que chama “Esperança e Mudança”, está tudo lá. Quem que escreveu esse documento? Não foi ninguém! O pessoal sanitarista, escreveu o capítulo da saúde; O pessoal dos arquitetos e urbanistas, quer dizer, um evento sindical, enfim… ali, quase como uma junção desse projeto de nação e reconstrução do país.

Muito bem, só que o que aconteceu? Aconteceu o seguinte, o projeto que teria dado certo, no plano interno, se em 1984 nós tivéssemos a eleição direta, mas não tivemos. A eleição foi pelo pelo colégio eleitoral do regime militar. Nesse contexto, aí você tem um pacto, o pacto do MDB, mas não do Ulysses Guimarães, o Tancredo Neves. E com os dissidentes do PDS, que vão formar a frente liberal, que depois deu no partido da frente liberal. Então, Tancredo presidente, Sarney vice, e o Tancredo morre.

Então você tem uma transição democrática, que foi impulsionada pelas forças progressistas que tinham o projeto de país e que passou a ser coordenado por um Presidente da República que tinha sido Presidente da Arena, né? Então, do ponto de vista interno, esse é o problema. Mas eu acho que o problema maior na minha avaliação é o outro O problema maior é o seguinte, é que quando nós começamos a pensar esse projeto de país, em 1975/ 76/ 77/ 78, o neoliberalismo ainda não tinha aparecido com toda força. Então, a referência que os nossos reformistas tiveram é a experiência da social-democracia do pós guerra. Aí, o que acontece em 1988, quando a Constituição é aprovada, esse ideário, essa doutrina, estava na contramão do mundo, tá certo?

Então, a minha interpretação é a seguinte, você tem essa famosa frase do Sarney, quer dizer, além disso, nos anos 1980 nós temos o fim, ou a crise do estado nacional desenvolvimentista, né?

Antonio Martins: E a ditadura das finanças, ele sucumbe porque ele é sufocado pela dívida externa, na época.

Eduardo Fagnani: Pela dívida externa, na época, aí o Brasil faz a opção com o Collor, né? Já no governo Sarney, mas mais leve, mas no Collor, faz a opção pelo neoliberalismo, o Consenso de Washington, essas coisas todas. Então, vejam, a gente faz uma agenda, ainda na vigência, enfim, do pacto, da social-democracia europeia, etc., quando a Constituição é aprovada ela está na contramão do paradigma dominante.

Então, é aí, é mais ou menos nessa época, que o Sarney diz essa frase. Essa frase, na verdade, ele falou em julho de 1988, é a última etapa do projeto, do processo constituinte. Ele vai para a televisão, cadeia nacional de televisão – eu assisti na minha casa, sentada no sofá – dizendo o seguinte: “senhores constituintes, senhores, vocês têm a última chance de mudar essa Constituição, se os senhores aprovarem esses direitos sociais que estão na Constituição, este país será ingovernável”. Essa era a senha – eu quero fazer um paralelo com o que está acontecendo hoje – o que está acontecendo hoje é esse mesmo morte que o Sarney disse em julho de 1988.

O que você tem a partir de 1988, 1989, que é uma tentativa de acabar, acabar antes de implantar, de desfigurar, a constituição de 1988. Então, o que eu digo, o que eu tenho trabalhado, nessa ideia, é o seguinte, desde 1988, 1989, até hoje – a elite brasileira que é extremamente retrógrada, que não aceita sequer conquistas mínimas, mínimas, da social- democracia, que é uma forma de humanizar o capitalismo, a constituição 1988 não tem nada de revolucionário, tá certo? Mas a nossa elite não aceita sequer algumas medidas para humanizar o capitalismo. Então, desde aquela época, eles querem destruir esse pacto social de 1988, desde aquela época, tá certo?

E tem várias etapas disso, várias etapas. E o que eu vejo, o que está acontecendo hoje, é que a partir do golpe parlamentar em 2016, a mudança na correlação de forças, as elites ganharam força, ganharam peso político, para concluir um projeto que eles tentam implantar desde 1988. Quando você vê, em 2016, aliás, 2015, antes do impeachment, é quando o Temer lança o programa de governo dele, em setembro de 2015, a Dilma caiu em maio de 2016, chamado Ponte Para o Futuro. O que é Ponte Para o Futuro do ponto de vista do que nós estamos analisando aqui? É uma redição das teses do Sarney, né? Que é que a ideia de implantar, no Brasil, um ultraliberalismo. Que eu não acho que a Constituição fez isso, que na área econômica esse ultraliberalismo foi feito nos anos 1990. Todas as reformas presentes no Consenso de Washington, na área econômica, foram implantadas nos anos 1990, tá certo? Abertura financeira, abertura comercial, privatização, concessão, tripé macroeconômico, meta de superávit primário, câmbio flutuante, etc., etc., etc., Banco Central independente, que só agora se tornou de fato, mas já estava lá. Então na área econômica conseguiu fazer tudo.

Antonio Martins: Deixa eu te interromper um pouquinho, porque isso que você está falando é de enorme importância, porque isso mostra – a gente se lembra e é preciso retomar essa história – que esse discurso que justificou, entre aspas, a contrarreforma da previdência, era um discurso, já então em 2018, velho de 30 anos. Eles diziam eles diziam que desse jeito não vem investimento, que era lanterna na popa, falava que o Brasil estava voltado para trás. Há 30 anos eles desenvolvem um discurso que nunca dá resultado e ele é sempre renovado, é o discurso da cenoura na frente do burro, é o discurso que diz: “assim não, você tem que abrir mão de mais direito, você tem que fazer mais concessões, você tem que oferecer mais regalias pra quem já tem privilégios, porque desse jeito o Brasil vai se desenvolver e, desde 1989, quando Collor assume, o Brasil vive, talvez, desde o início do século passado, o período de maior estagnação econômica.

E agora eu te pediria, só porque, duas coisas… uma, eu acho que isso reforça um pouco a hipótese da Sônia, segundo a qual não houve, na verdade, pacto. Tem um pacto na hora de assinar a Constituição, mas assim que a Constituição está assinada, o Sarney diz que o Brasil se tornou ingovernável, e há 33 anos, agora as elites estão atacando a Constituição, atacando esse projeto que foi… ou seja, não há um pacto, há um pacto naquele momento e, depois de 30 anos, há um pacto de um dia que é, digamos assim, sabotado, durante 30 anos nessa sequência.

Mas eu te pediria um pouquinho de esforço, eu acho que isso aqui está se transformando numa verdadeira aula sua, eu queria que você detalhasse um pouquinho as conquistas sociais de 1988, da Constituição, o que elas exigiam de financiamento público, num certo sentido, os meios de financiamento que foram adotados lá e como eles foram corroídos, em seguida, por aquilo que você falou que é o o Consenso de Washington, que entra com força total logo depois que é assinada a Constituição.

Eduardo Fagnani: Eu vou te responder isso, mas deixa eu fazer só uma observação, assim, teve um pacto político na transição democrática, transição da ditadura para um regime democrático, teve esse pacto total, o pacto foi selado, tá certo? O MDB, Tancredo e Sarney, frente liberal, esse é o pacto, né? Mas os embates em torno dos direitos ocorrem na Assembleia Nacional Constituinte – você mesmo diz – em 1987 surgiu o centrão, em 1987, o que o centrão queria fazer? Ele queria mudar as regras da Constituição, no 1987, está certo? Então, por isso eu digo que tinha um pacto pela redemocratização, com determinados setores, depois teve que ser de se associar aos interesses, com a base política da ditadura, tá certo? Para quê? Para redemocratizar o país, por aí você já vê que a coisa é complicada, tá certo?

Agora, além disso, você vai ter essa mudança. O setor progressista, eles pensaram no projeto, naquele momento, mas no momento seguinte, quando você assina a Constituição, ele está na contramão do mundo. Quer dizer, então você vê, eu vejo cinco períodos diferente, eu chamo isso de tensões, entre 1990 até hoje, nós temos tensões na área social, nós temos porque, eu estava dizendo que, na economia, eles fizeram todas as reformas dos anos 1990, mas na questão social fizeram parte das reformas. Por quê? Porque o movimento social conseguiu, pelo menos até 2016, resistir bravamente, tá certo?

Então, veja, na área social não, na área social, entre 1990 e até hoje, você tem tensões entre paradigmas, entre paradigmas do Estado de bem-estar social e o paradigma do Estado mínimo. Isso é fortíssimo, entre 1990-1993 e continua entre 1994-2002. É ambíguo no período de 2003-2006, 2005, é ambíguo, tá certo?

Antonio Martins: Que é o primeiro governo Lula, né? Só para situar.

Eduardo Fagnani: Isso! Depois você tem uma fase de destensionamento, entre 2006 e 2007, até 2013, tá certo? E daí você volta com essa tensão máxima, de uma forma antidemocrática. Quando você mencionou lá Roberto Campos… Roberto Campos, em 1988-89-90, neste livro que você citou, “lanterna de coco”, ele diz assim, a Constituição é uma coleção de anedotas, o último canto do cisne do desenvolvimento, é a tentativa de de fazer uma Constituição sueca com o PIB africano, quer dizer, ele foi um dos maiores críticos da Constituição, porque é essa coisa liberal, mas depois ele tem os filhotes dele, que nos últimos 30 anos cumpriu esse papel.

Então, eu estava dizendo para você que quando você tem, em 2015, a Ponte para o Futuro, Ponte para o Futuro não tem novidade nenhuma, tá certo? É uma das diversas versões, ao longo desses 30 anos, da ideia do país é ingovernável.

Qual é a última agressão que a Ponte para o Futuro faz? É uma invenção, uma invenção de três economistas, o Mansueto Almeida, do Samuel Pessoa e o Marcos Coimbra, né? Que escreveu um artigo na ilustríssima da Folha, em 2015, por aí, que é o seguinte: “as demandas sociais da democracia não cabem no orçamento”. É a mesma ideia da governabilidade, é a mesma ideia que a constituição é uma coleção de anedotas, né? Agora eu te digo mais – só pra terminar essa parte e passar por outra coisa – o objetivo desse pessoal todo, e aí você faz esse terrorismo que se faz normalmente aí, a gente está cansado disso – é implantar no Brasil um modelo chileno. É isso, esse é o projeto que vem sendo perseguido desde 1989 e, só pra concluir essa parte, eu te digo mais, a Constituição – para terminar – o pacto dos constituintes, está numa disposição transitória, diz assim: “essa constituição será revista daqui a 5 anos por maioria simples”, e essa revisão constitucional aconteceria em 1993. Eu vivi 1993, eu estudei em 1993, e eu garanto para você que se tivesse tido a Reforma Constitucional, em 1993, eles tinham implantado no Brasil um modelo chileno, eu te garanto isso, podemos discutir, mas eu garanto isso para você, tá certo?

Até porque, naquele momento, o movimento social, de certa forma, já tinha se frustrado. Era esperança e mudança, a esperança e mudança deu no Sarney, quer dizer, houve uma frustração muito grande, enfim, tem várias outros motivos. Mas o objetivo, continuou sendo perseguido nos governos Fernando Henrique Cardoso, uma certa dignidade no primeiro Lula, não vamos esquecer que no primeiro Lula o secretário do tesouro é o Joaquim Levi, o ministro era Palocci e o secretário política econômica era o Marcos Lisboa, tá certo? A coisa só muda quando o Guido Mantega assume, em 2005, no final do ano em 2005, começo de 2006, a coisa vai para um outro sentido, e aí é um momento que a distribuição de renda, com extensão social, etc., e depois você tem essa fase de novo… Sarney e depois Bolsonaro… que não tem nenhuma novidade, é implantar um modelo chileno, aliás, Paulo Guedes estudou na escola de Chicago, na época que o Milton Friedman estava ajudando o Pinochet a implantar esse modelo chileno, né? Pra que isso fosse um paradigma para os países subdesenvolvidos. Talvez até, eu não sei, talvez ele tenha participado disso, ele era jovem, até ter ido lá para o Chile.

Antonio Martins: Ele foi para o Chile e ele disse, numa entrevista, que não tinha outra escolha porque ele ia ganhar muito dinheiro ajudando…

Eduardo Fagnani: Então, esse é o projeto dele.

Antonio Martins: Só antes de você… porque você tocou num assunto interessante, que eu acho que é importante também, didaticamente. É, 1993, quando houve a tentativa de revisão constitucional, você estava falando, o movimento social estava enfraquecido e há um processo aí, e é importante a gente resgatar, a espinha dorsal do movimento social, desde 1978 até a constituição, é o movimento sindical.

Eduardo Fagnani: Claro!

Antonio Martins: E com Color há um choque e o movimento sindical é completamente devastado, ele perde, praticamente, toda a capacidade de mobilização, porque há uma onda gigantesca de desemprego, começa a desindustrialização, muito fortemente, no Brasil. É completamente impossível fazer greve porque, se você faz greve, vai ter dois ou três querendo pegar o seu lugar, no dia seguinte. Então, isso, eu acho que é uma coisa pouco lembrada hoje, mas é isso que você está falando, a reestruturação do mundo, segundo as bases neoliberais, mina também as forças do principal movimento social brasileiro e isso tem uma enorme importância até hoje.

Eduardo Fagnani: Foi muito muito bem colocado. Eu não pude entrar em detalhes em função de que estou tentando responder a outra pergunta que você fez.

Antonio Martins: Mas vamos lá para essa pergunta, das tradições do estado do bem estar social brasileiro, com o seu financiamento precário.

Eduardo Fagnani: Então, eu sempre digo, quer dizer, você sabe, Antonio, você me conhece, eu sempre faço análises com base na correlação de forças, né? E eu procuro ficar muito com o pé no chão, e às vezes, enfim, acho que alguns autores que têm análises mais radicais, enfim, é o seguinte – como eu falei no início – há cem anos, o Brasil é um país que vivia sobre os resquícios da escravidão, população rural, analfabeta, tá certo? Então, se você pensar dessa perspectiva, quando você olha a Constituição de 1988, do ponto de vista dos direitos sociais, quer dizer direitos sociais, direitos civis, direitos políticos, eu a vejo, analisando o que é o Brasil, essas elites, enfim… esses fatores todos, tantos anos de escravidão… escravidão, analfabetismo, enfim, você faz uma sociedade de massas em muito pouco tempo… a população rural vem para a cidade, em 30 anos, entre 1950-1980 o Brasil inverte a pirâmide, enquanto outros países levam 100 anos. Então é uma sociedade – quem escreve sobre isso é o é o Fernando Novaes e o João Manoel – você cria uma sociedade de massas deseducada e, além disso, isso coincide com o autoritarismo e com o o monopólio da cultura, por um grande meio de comunicação. Enfim, tem diversos fatores aí que interferem. Eu, considerando tudo isso, eu considero a Constituição de 1988 um marco do processo civilizatório brasileiro, ao menos no plano das leis, está certo? Por quê? Porque é a primeira vez, em 500 anos, a primeira vez em 500 anos que o Brasil tem, ao mesmo tempo, no plano das leis, direitos civis, direitos políticos e direitos sociais. É a primeira vez, tá certo? Então, isso é importante. Quer dizer, isso é no no plano da lei, agora, como a gente finalizou anteriormente, para implantar isso, o ambiente era absolutamente hostil, certo? Nos últimos 30 anos foi absolutamente hostil, em função dessas outras razões que nós estamos falando. As pessoas falam, “pô, o SUS é bacana e tal, mas tem esse problema, esse problema…, eu digo “o SUS não foi implantado, não foi implantado, tá certo?

O que o SUS conseguiu fazer é uma coisa extraordinária, porque foi feito na contracorrente desse movimento mais geral, que queria destruir o SUS, como quer destruir hoje, a ideia é privatização do sistema de saúde, como o Chile fez, está certo? Agora, o que a Constituição fez? A Constituição fez algumas coisas elementares, não tem nada de revolucionário, mas que teve um impacto extraordinário, tá certo?

Primeiro, a primeira vez que você tem o direito de greve, né? Autonomia sindical, redução da jornada de trabalho, quarenta e oito horas para quarenta e quatro, é alta, mas era quarenta e oito. Direito a salário maternidade. O SUS, o SUS é inspirado nas ideias do Beveridge, da Inglaterra, o Plano Beveridge que deu no sistema nacional de saúde inglês. Depois do sistema italiano, canadense, enfim… a ideia que a saúde é um direito, um direito universal. Os princípios gerais da Constituição são importantes, são os princípios do estado de medicina social europeu, do pós-guerra. A ideia é que questões desse tipo são direitos, não são caridade, isso não é pouca coisa… a ideia é que esses direitos são universais, é pra todo mundo. É agora que a gente rompe a ideia da cidadania regulada, a ideia de que você tem que criar um sistema de seguridade social.

O que é a ideia da seguridade social? Seguridade social é um pacto social. Todo mundo está disposto, naquele país, naquela nação, naquele momento, que todas as pessoas tenham direito ao mínimo, mesmo aquelas pessoas que não podem pagar, né? Como é que os estados de bem-estar social europeus fizeram? Bom, quem vai pagar a parte de quem não pode pagar? O sistema tributário. Então você taxa o rico e transfere a renda para financiar a saúde, o sistema de saúde público universal e gratuito, para todo mundo, por exemplo, tá certo?

A ideia da seguridade, está na Constituição brasileira, só que nós não conseguimos fazer a reforma tributária progressiva. Estado de bem-estar social e tributação progressiva são irmãos siameses. Então, essa é uma primeira lacuna do nosso estado de bem-estar, nós não construímos mecanismos de financiamento que fossem progressivos e adequados para enfrentar essa direita, porque nós não fizemos a reforma tributária naquela época, enfim. Tem o estatuto da criança e do adolescente, na questão da assistência social, tem o benefício de prestação continuada. Que é o benefício de prestação continuada? É o benefício da assistência da social. É o seguinte, toda pessoa que tem 65 anos ou mais, com renda per capita de até um quarto do salário mínimo, que aos 65 anos não conseguiu contribuir com a Previdência, ou é portadora de deficiência, essa pessoa tem direito a um salário mínimo, isso é um benefício típico da seguridade social.

Quer ver um outro benefício típico de seguridade social? É a previdência rural. O que é a previdência rural? Previdência rural é o seguinte, 1988, o trabalhador rural não tinha direito trabalhista, não tinha direito sindical, não tinha carteira de trabalho, só que você tinha um monte de trabalhador rural que tinha 60, 65 anos e estava sem renda. Então, os constituintes falaram “o que a gente faz com esse pessoal? Deixa na na rua pedindo esmola ou vamos dar um salário mínimo pra ele? Vamos dar o salário mínimo pra eles. Ah, e como é? Quem vai pagar isso daí? Vamos fazer reforma tributária? Vamos! Ah, mas não deu para fazer reforma tributária. Então, vamos fazer assim, vamos criar duas contribuições sociais para financiar o Benefício de Prestação Continuada, Previdência rural e o SUS.

O que o SUS é? Um outro benefício típico da seguridade social. Todo mundo tem direito, mesmo quem não pode contribuir e, aliás, ninguém contribui. Então criaram o COFINS. O COFINS, para quem não sabe, chama-se Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social, isso que significa Cofins. Criaram a contribuição sobre o lucro líquido dos bancos… uma parte do PIS-PASEP passou parte para financiar o seguro desemprego. O Brasil não tinha seguro desemprego. Há quarenta anos existia seguro desemprego e aqui não tinha seguro desemprego. Então, aí tem essa discussão, como é que eu digo? É uma discussão bizarra, é bizarra, me deixa sem paciência, né? “Porque é o déficit da previdência”. O déficit da previdência! O que é o déficit da previdência? É uma interpretação inconstitucional de que o benefício, a receita da previdência urbana tem que pagar a previdência urbana e a previdência rural. Isso não está escrito no artigo 294 e 295 da Constituição, tá certo? Por que a previdência rural é financiada pelo COFINS, pela contribuição sobre o lucro líquido, tá certo?

Se eu puder fazer uma síntese, eu vou te dizer o seguinte: o que seria o Brasil sem a Constituição de 1988? Primeiro ponto, SUS, cerca de 180 milhões de brasileiros só têm como possibilidade de serviço médico, o SUS, 80%, é quase 80% dos brasileiros. Não vou falar aqui das virtudes do SUS na questão da… é uma excelência em vacinação, excelência em transplantes, excelência em programa de AIDS, é uma coisa extraordinária, mesmo construído na na contramão do mundo. Então, o que seria do Brasil se 180 milhões de brasileiros não tivessem acesso ao serviço público de saúde? É uma pergunta que eu deixo pra você.

Segundo, o que seria do Brasil se nós não tivéssemos as transferências de renda da seguridade social? Eu sempre gosto de mostrar esse número, porque acho que faz uma síntese do que é a constituição 1988. É o INSS urbano, mais ou menos, 25 milhões de pessoas que se beneficiam e INSS rural, mais ou menos 12 milhões de pessoas que se beneficiam. Benefício de Prestação Continuada, mais ou menos 6 milhões de pessoas que se beneficiam. Seguro desemprego, mais ou menos 5, 6 milhões de pessoas se beneficiam disso. Somando isso, dá 40, 45 milhões de pessoas. Sabe quanto as pessoas recebem em média, Antonio? Em média, o benefício é de 1200, 1300 reais. Agora, veja bem, se você tem 40 milhões de pessoas que recebem esse benefício e cada uma dessas pessoas tem mais 2 membros da família, nós estamos falando de 120 milhões de pessoas, são 120 milhões de pessoas que se beneficiam direta ou indiretamente daqueles 1.200 reais.

Você acha que o grande colchão de amortecedor dessa crise da pandemia foi o auxílio emergencial? Até que foi, para uma grande parte da população, mas a maior parte da população conseguiu sobreviver graças aos recursos do INSS, porque o recurso do INSS, ao contrário do que as pessoas dizem, não é para o velho, tá certo? É pra família, tá certo? É para pagar as contas de luz, de água, telefone, é para pagar a conta de supermercado, é para ajudar o filho, é para ajudar a nora que está desempregada, tá certo?

Então eu te deixo só essas duas perguntas, quer dizer, para tentar responder essa tua questão, num período tão curto, o que seria – para as pessoas pensarem – o que seria do Brasil, hoje, com a crise da pandemia, se 170, 180 milhões de brasileiros não tivessem acesso ao serviço de saúde público, universal e gratuito? E o que seria desse país se 120, 130, 140 milhões de pessoas não tivessem direta ou indiretamente uma renda de 1.200 reais por mês, que é o dobro, é o dobro do antigo auxílio emergencial e, hoje, deve ser 5 vezes mais, 6 vezes mais do atual auxílio emergencial. Quer dizer, o que seria do Brasil se você não tivesse 120, 130, 140 milhões de pessoas que, direta ou indiretamente, tem aquele 1.200 reais para não passar fome, para não morrer de fome? O que seria do Brasil?

Então, eu destaco pelo menos esses dois pontos da Constituição de 1988, que eu acho que são fundamentais. Você viu que eu comecei essa conversa calmo, falando num tom assim acadêmico, bem tranquilo, mas quando você me provoca para eu falar determinada coisa, eu fico tão irritado com o que eu vejo no debate, que eu acabo me exaltando, peço desculpas a você e a quem está nos ouvindo.

Antonio Martins: Não, essa indignação é muito parte do que a gente precisa hoje, no Brasil. Eu te faço uma última pergunta, porque eu falei no início, vou repetir, o Fagnani é uma das pessoas que mais tem contribuído para botar de pé essa ideia do Resgate, dando ideias sobre os temas a discutir, corrigindo as formulações iniciais, sugerindo nomes. E um dos eixos dessa ideia do Resgate é o estado de bem-estar social no século XXI, que a gente vai discutir ao longo de um conjunto de ideias-força, a ideia-força dos serviços públicos de excelência, a ideia-força da reforma urbana e da habitação, a ideia-força da educação. É um tema muito constante nesse projeto. Eu queria só te provocar em cinco minutos, já que nós estamos há 55 minutos já, mas essa conversa é realmente uma aula. Que você dissesse como você enxerga as bases daquilo que a gente vai desenvolver, ao longo desse próximo ano, mas que você antecipasse, muito sumariamente, as bases de um estado social no século XXI. Em que que ele difere do estado social Getulista? Do estado social da própria Constituição de 1988? E quais as formas, os eixos da construção desse estado de bem-estar social, muito sumariamente, se você puder, aquilo que a gente vai desenvolver ao longo dos próximos meses?

Eduardo Fagnani: Tá. Olha só, é muito simples a ideia, a ideia é assim… eu falei no começo que quando os nossos reformistas, enfim, começaram a pensar numa agenda democrática, nos anos setenta, meados dos anos setenta, a referência era primeiro, quer dizer, além da referência ser a chamada “os trinta anos de ouro do capitalismo regulado”, lá da Europa, a referência é o seguinte, a gente estava passando da segunda e para a terceira revolução industrial, quer dizer, você tinha aquelas chamadas linhas de produção fordista, quer dizer, um monte de gente para você produzir um automóvel… precisava, sei lá, de duzentos trabalhadores. Hoje, você constrói um motor com alguns robôs, a indústria 4.0, né? Então, quanto mais pensamos na cidade de bem-estar social, lá nos anos setenta, a gente vive essa etapa do capitalismo. Então, qual é a consequência?

Primeira consequência era o seguinte, que a Constituição protege, essencialmente, o trabalhador do mercado formal, porque se acreditava no papel do sindicato, no crescimento do sindicatos. O crescimento do emprego, no crescimento do emprego formal, com carteira assinada, etc., é um pouco, tá bom? A gente estava olhando pelo retrovisor, não sabia o que ia acontecer pela frente. Então, por exemplo, quem tem direito a seguro desemprego é o trabalhador, né? A previdência, quem tem direito à previdência? Em tese, todo mundo, mas na prática só consegue ter acesso à previdência quem contribui durante 15, 20, 30 anos e, se você não tiver, no mercado de trabalho formal, você é descontado na fonte, tá certo? Se tiver com um trabalho informal, você não paga a previdência, provavelmente, você não vai ter o benefício no futuro, né? Então, o que que aconteceu de lá pra cá?

Uma transformação brutal, a terceira revolução industrial, quarta revolução industrial, automação, indústria 4.0, globalização, as cadeias produtivas mudam espacialmente… E processos enormes de flexibilização, no mercado de trabalho, essa era a agenda do neoliberalismo, a agenda hegemônica do neoliberalismo, que surge já a partir dos anos final dos dos anos setenta, no mundo, flexibiliza, quer dizer, facilita a forma de contratar e demitir. Eu demito com facilidade e contrato facilidade. Redução de direitos trabalhistas. As empresas dizem assim: “eu só vou para o país que não tem direito trabalhista, tá certo?” Então, você tem toda essa mudança.

E, aqui no Brasil, você teve essa reforma trabalhista que o Temer fez, que retorna os direitos trabalhistas e sindicais, porque aí sim você destrói os sindicatos, tanto pela via do financiamento, como pela ideia da não participação deles, a ideia é que o negociado vale mais que o legislado, ou seja, o que você negocia na hora vale mais do que a constituição. Então, essa mudança toda, no mercado de trabalho, foi brutal. E agora, com a pandemia, e isso, pós-reforma trabalhista nós já tínhamos uma situação no mercado de trabalho em que uma parcela enorme estava desempregada, uma parcela grande era desalentada e a grande parte, cerca de 40 milhões de pessoas, estava num trabalho informal. Você já tinha uma parcela enorme da população desprotegida.

Com a pandemia, esse quadro chegava muito, quer dizer, não preciso dizer aqui, porque vocês devem saber disso, mas com a pandemia você teve uma queda de quase 8 milhões de empregos, a população em idade ativa caiu 8 milhões. Significa o seguinte, quem é a população em idade ativa? É a população que tem entre 14 a 65, tem uma queda de 8 milhões. Hoje, no Brasil, você tem, na população em idade ativa, tem menos pessoas trabalhando do que não trabalhando, tá certo? E os empregos que foram perdidos, em geral, tem os dados aí que foram fechados, mais de 1900 empresas, em geral pequenas empresas, essas pequenas empresas são as que mais empregavam, e uma pequena empresa, quando quebra, dificilmente vai voltar. Provavelmente, nesses setores, você vai ter uma uma superconcentração de capital, setor de serviço, comércio, né?

E empresas grandes, que contratam menos e usam mais tecnologia, então nós temos uma situação no Brasil por agora e para o futuro, da falta de emprego e falta de renda, tá certo? Então, nós temos que reforçar o nosso estado social para proteger essas pessoas, através de um programa de renda básica que seja permanente. Que, do meu ponto de vista, tem que ser um, as bases disso já estão colocadas pela assistência social brasileira, a assistência social brasileira tem mais de 40 anos de evolução. O Bolsa Família foi criado em 2003, o Cadastro Único foi criado em 2004, um pouquinho antes disso, tá certo? Nós temos tecnologia, nós temos programa, quer dizer, é melhorar esse tipo de coisa. Então, esse é o primeiro grande desafio, viu Antonio?

O segundo grande desafio é superar o segundo limite da Constituição de 1988, como eu mencionei, nós não fizemos a reforma tributária né? Que taxasse os super-ricos e esse dinheiro financia esses programas, por exemplo, um programa de renda básica. Só uma política só, que não é mais importante que as outras, imposto sobre grandes fortunas. Que é grandes fortunas na proposta que nós fizemos aí, que os partidos da oposição fizeram, a FENAFISCO, e outras instituições fizeram. Quem tem renda, quem tem patrimônio de mais de 10 milhões. Então, quem tem patrimônio de mais de 10 milhões, por exemplo, você que tem até 10 milhões, não paga nada, se tiver 12, paga meio por cento sobre esses dois milhões. Quantas pessoas tem um patrimônio superior a dez milhões de reais? Segundo os dados da receita, cinquenta e nove mil pessoas, cinquenta e nove mil pessoas. Quanto dá o imposto sobre grandes fortuna, qual é a estimativa? 40 bilhões de reais. Sabe quanto custa o Bolsa Família? 30 milhões de reais. Sabe quanto o Bolsa Família beneficia? Cerca de 40 milhões de pessoas, tá certo?

Veja, com esse imposto sobre grandes fortunas, que eu digo, não é a mais importante, a coisa mais importante é o imposto de renda, mas o imposto sobre o ganho de fortuna é taxando mais, um pouquinho, mais o patrimônio de 59 mil pessoas, tá certo? O programa Bolsa Família custa 30 bilhões por ano, o imposto sobre grandes fortunas pode ter uma estimativa recente de 40. Será que essas 59 mil pessoas não poderiam contribuir um pouquinho? Para que a gente duplicasse o Bolsa Família? É uma pergunta que eu deixo aqui pro ar.

Então, são esses dois grandes desafios e, para terminar, Antonio, eu queria dizer o seguinte, nós andamos conversando sobre o projeto Resgate, a ideia é sua, eu fui um um entusiasmado de primeira hora. O que eu acho importante, para vocês que estão nos ouvindo, o que está sendo proposto é o seguinte, é um projeto de país. Porque não adianta, eu não vou resolver a questão da saúde, se eu não mudar a macroeconomia, se eu não mudar a política, embora a gente, Antonio, vá tratar dessas questões de um modo setorial, porque pedagógico, para tratar. No fundo, o que está sendo pensado é o projeto de transformação, quer dizer, eu não vou conseguir enfrentar a questão da desigualdade, a questão da fome, a questão da pobreza, que está aumentando, a desigualdade está aumentando, a fome… 116 milhões de brasileiros passam algum tipo de carência alimentar… 20 milhões têm fome, tá certo?

Eu não vou resolver o problema da saúde, não vou resolver o problema da educação, se eu não mudar o sistema político, é impossível um sistema político que não represente a sociedade, mas represente o interesse de algumas corporações. Eu não vou mudar se eu não mudar a matriz macroeconômica, se eu não rever, enfim, todas as amarras fiscais. No Brasil nós temos várias amarras fiscais, lei de responsabilidade fiscal, teto do gasto, regra de ouro, meta de superávit fiscal, meta de inflação, meta disso, meta daquilo, você criminaliza uma política fiscal anticíclica, como você deveria fazer agora. Nós temos que superar a austeridade econômica, olhar o exemplo dos países capitalistas, não são nenhum bolivariano, feito por governos liberais, como por exemplo Biden, né? Que é o plano Biden? É estado na veia, é gasto fiscal na veia, é aumento da dívida, na veia, é aumento na tributação progressiva na veia, tá certo?

Então, nós temos que superar essas amarras todas na questão econômica, nós temos que rever a questão política, tem que pensar num desenvolvimento de uma outra forma, é uma ideia que a Mariana Mazucato é uma especialista muito competente, na ideia de missões. E o exemplo mais claro disso, para vocês entenderem, é a ideia do complexo industrial da saúde, e o que é a ideia das missões? Missões sociais e ambientais. É uma forma de você, você constrói uma base industrial no Brasil, a partir das carências sociais, que nós temos, as carências ambientais, por exemplo, o SUS é o maior sistema de saúde do mundo, como eu disse, mais de 180 milhões de pessoas usam o SUS. Vocês imaginam, vocês já imaginaram a quantidade de medicamentos, de fármaco, de instrumentos, que precisa ser comprada todo dia, todo dia, todo dia?

Por que a gente importa? Por que nós não construímos uma indústria nacional que forneça esses insumos pro SUS? Essa é a ideia do complexo industrial da saúde. Tem sido defendida há anos pelo pelo Gadelha, que é um pesquisador da Fiocruz. E assim como a a saúde, nós podemos fazer isso na educação, no saneamento, na mobilidade, na questão ambiental, etc. Enfim, falei demais, mas em suma, falei demais para que vocês acompanhem o projeto Resgate, coordenado e idealizado pelo Antonio, não é? Que vocês tenham essa visão, quer dizer, quando eu falo do novo estado social do século XXI, vocês precisam ter clareza, e eu tenho essa clareza, que eu não vou conseguir implantar essas medidas se eu não pensar num novo Resgate mesmo, pensar num novo projeto de transformação do Brasil. Eu acho que é um pouco essa ideia do Resgate, se eu não estiver correto você me corrija, Antonio.

Antonio Martins: Pronto, agradeço muito, tudo que você falou é só um aperitivo do que o Resgate vai tratar ao longo dos próximos meses, nós estamos nesse projeto com a ideia de que é difícil, de que num certo sentido o Brasil perdeu o costume de imaginar o seu futuro. Foram 4 décadas de crença de que o Estado, de que a sociedade e o Estado precisavam essencialmente cumprir a disciplina imposta pelos mercados, nós não podíamos fazer nada que os mercados não autorizassem e nós estamos, subitamente, diante do colapso, num certo sentido, dessa ideia, e da possibilidade de olhar de novo para o futuro. E tudo que você falou vai se desdobrar nos próximos meses, e gostaríamos muito de ter você aqui novamente, várias vezes, e ter as várias pessoas que você tem indicado.

Você é uma pessoa essencial aqui, nesse projeto do Resgate. E eu, antes de terminar, eu convido você que está nos assistindo, algumas pessoas que inclusive se comunicaram, o Gerson, a Maria de Fátima, a Caia Fitpaldi, grande tradutora e construtora de rede de tradutor.

Eduardo Fagnani: Manda, queria dar um abração, sou um admirador dela há mais de trinta anos.

Antonio Martins: Isso. A Elisabete, o Arthur. Mas quero contar para vocês que amanhã estamos marcando, sempre esse horário, às 20 horas, estaremos aqui com Arthur Araújo, discutindo a conjuntura, os novos sinais de enfraquecimento do Bolsonaro, sinais, inclusive, de que setores neoliberais estão jogando pela queda dele. O que isso representa, inclusive, para a construção de um novo projeto de país.


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