“Falta densidade à conduta tática da esquerda”

Para Artur Araújo, chances de derrotar ultradireita crescem – mas a própria natureza do governo e a pandemia tornam percurso até 2022 incerto e perigoso. Por isso, é preciso ampliar as “pautas do povo” – como os R$ 600 e a denúncia da carestia

Entrevista a Antonio Martins

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> O texto a seguir foi construído a partir de entrevista com Artur Araújo, que está transcrita ao seu final. Acesse também as versões em vídeo (link acima) ou podcast (abaixo).

> O projeto Resgate, por meio do qual Outras Palavras quer debater ideias-força para a reconstrução do Brasil em novas bases, pode ser conhecido aqui.

As últimas semanas foram alvissareiras. Duas grandes jornadas nacionais de protesto cravaram a volta da oposição às ruas, superando de longe os atos de apoiadores do regime. A CPI da Covid parece conduzir Bolsonaro a uma sinuca difícil, ao demonstrar que, sempre contrário às vacinas, ele comprou sem hesitação as que têm cheiro óbvio de superfaturamento. Uma sondagem eleitoral divulgada ontem (24/6) sugere que Lula venceria já no primeiro turno, com mais do dobro de votos do “capitão”. Mas o ânimo dos que lutam pela democracia tem oscilado demais. Quem não se perturbou com os atos golpistas diante do STF, a recusa do Exército a punir a indisciplina do general Pazuello ou a resiliência do apoio ao presidente, quando o número de mortes provocados por sua negligência sanitária não parava de crescer? Que explica esta conjuntura caótica, cujo ponto de referência parece às vezes oscilar como pluma em meio a tormenta?

O analista político Artur Araújo julga que falta à esquerda um prumo: o da ligação com as angústias e o sofrimento das maiorias. A certa altura da entrevista ao vivo que concedeu ontem a Outras Palavras, no âmbito dos diálogos preliminares do projeto Resgate, ele provocou: “quem dos que nos assistem acompanha a tramitação da Medida Provisória 1039?”. O ato legislativo não está nem no radar, nem no discurso da oposição – mas sua importância é capital. Foi por meio dele que o Palácio do Planalto reduziu, dos R$ 600 de 2020 para os míseros R$ 250 de agora, o Auxílio Emergencial pago durante a pandemia. O Congresso tem pleno poder de alterar a medida – reintroduzindo, por exemplo, o valor original. O Palácio do Planalto e as bancadas que o apoiam, previsivelmente, esperam que o tema jamais venha a luz. Os presidentes da Câmara e Senado estão sentados sobre a MP. Mas o espantoso, aponta Artur, é que a esquerda também se cale – ao invés de buscar, por todos os meios, colocar o assunto no centro pauta nacional e promover intenso debate sobre ele.

A mesma omissão se dá, segundo Araújo, em relação a um leque de outros temas muito sensíveis. A alta da inflação de alimentos. O desemprego. A vacina. Perde-se oportunidade, diz, de “formar opinião pública”. E fica-se sujeito às grandes incertezas provocadas pela pandemia e pela presença da extrema-direita no poder. Bolsonaro tentará um golpe? Apelará para um bolsa-família reforçado, na tentativa de recuperar a popularidade perdida? Para todas estas hipóteses, prossegue o analista, há respostas possíveis – desde que a oposição ligue-se às maiorias e seja tida, por estas, como aliada.

Quais as causas do atual afastamento? Araújo está convencido de que ele se relaciona a uma certa miragem estatista. A esquerda governou o Brasil entre 2003 e 2016. Nesse período, apenas arranhou o poder de Estado. Jamais teve maioria em qualquer Legislativo, foi sempre marginal no Judiciário, está ausente nas Forças Armadas. Seu acesso às mídias (tradicionais e em rede) é muito limitado. Ainda assim, desenvolveu-se, nestes treze anos, a ilusão de que a presença no governo dispensaria a mobilização popular. Jamais se buscou pressionar as instituições – tensioná-las, deslocá-las de seu conservadorismo colonial e de sua ligação com o poder econômico. Esta ausência abriu espaço para o golpe de 2016. Desligado das maiorias, o governo de esquerda foi derrubado sem resistência alguma.

Araújo está esperançoso com o papel de Lula. Ele vê, na reaparição do ex-presidente, depois de reabilitado pelo STF, sinais claros de ligação com a “pauta do povo”. Ao ressurgir, Lula sacudiu o cenário político, precisamente por falar de pandemia, vacinas, pobreza, desemprego e cuidado. Desde então, a vida de Bolsonaro transformou-se em tormento. Mas é preciso um passo a mais – e é nesse ponto, talvez, que a análise aproxima-se mais dos objetivos do Resgate.

Falta reconstituir um horizonte político; imaginar e propor o que pode ser o Brasil, em algumas décadas, se outras políticas prevaleceram. É isso – não uma culpa moral – que poderá aproximar a crítica ao capitalismo da vida e dos anseios das maiorias. Os repetidos apelos à “volta ao trabalho de base” não passarão de lamentos melancólicos, se não houver um novo objetivo à frente. Araújo pensa que há uma brecha para isso. Após 40 anos, as leis de ferro do neoliberalismo fiscal se romperam. A ideia de que os mercados podem conduzir as sociedades a um futuro melhor está desmoralizada. Na pandemia, os Estados foram essenciais tanto para evitar que as economias entrassem em colapso total quanto para financiar as pesquisas que levaram às vacinas.

E surgiu algo mais contra-hegemônico: a ideia de que, sob certas condições políticas, o poder de emissão de moeda dos Estados possa ser empregado não para salvar a oligarquia financeira – mas para atender necessidades sociais. Serviços Públicos de excelência. Cidades habitáveis. Reconstituição da infraestrutura. Transição ecológica. Reindustrialização. Ocupações dignas, para as pessoas dispostas a participar deste esforço.

Como pensar tudo isso, nas condições brasileiras atuais? Como combinar defesa das “pautas do povo” com a reconstrução de um horizonte político? Será preciso muito esforço para encontrar as respostas. Mas, segundo um ditado árabe, tudo começa com a formulação das perguntas certas…

Eis a transcrição do diálogo:

Antonio Martins: Oi gente, boa noite, eu sou Antônio Martins, editor do Outras Palavras. Esse é o Resgate. É a terceira conversa preliminar do Resgate, que começa, oficialmente, no dia oito de julho. O Resgate é um esforço para debater projetos do país, para debater, em especial, a ideia de que é preciso derrotar o fascismo, é preciso somar muitas forças pra derrotá-lo, mas o day after não pode significar uma volta ao velho normal.

O Brasil vive quase quatro décadas de retrocessos, após a constituinte de oitenta e oito houve uma sabotagem, sem tréguas, das elites, as velhas elites e as novas elites, contra os direitos sociais conquistados na constituinte, e isso provocou um período intenso de turbulências que terminou no no golpe de dois mil e dezesseis e depois na eleição, evidentemente irregular, do Bolsonaro. Portanto, nós não podemos simplesmente voltar ao que nos trouxe para esse desastre que nos trouxe para o fundo do poço, e o o Resgate procura dizer que esse processo de luta por mudanças profundas na sociedade brasileira, essa tentativa de refletir sobre o Brasil e de imaginar, de recobrar, digamos assim, a imaginação política a a o horizonte político. Horizontes utópicos concretos que possam ser conquistados mobilização, com ação popular, com jogo político, com alianças, tudo isso precisa marcar esse processo novo que a gente vai viver.

Hoje nós temos a satisfação de conversar com Arthur Araújo. Arthur Araújo é um militante político de várias décadas, a gente se conhece desde 1979, mais ou menos, e atua em inúmeras frentes da luta pela transformação do Brasil. Em muitas frentes de mobilização social e muitas frentes institucionais também. Hoje ele é consultor da Fundação Perseu Abramo, consultor político da Fundação Perseu Abramo e da Federação Nacional dos Engenheiros. O Arthur vai conversar com a gente. Esse é um debate preliminar do resgate e nós estamos querendo discutir a conjuntura política, o que vai nos levar até 2022… e a hipótese do Arthur é a de que não haverá 2022 sem 2021… É mais do que uma hipótese Acaciana, o que ele quer dizer com isso é que nós não podemos simplesmente nos dedicar aos cálculos eleitorais, às alianças políticas, nós vivemos uma fase de imenso sofrimento da população, provocado pela pandemia, provocado pelo empobrecimento das maiorias – a gente vê isso ao caminhar pelas ruas, provocado pela carestia – e que é preciso ter um processo de diálogo com esse sentimento da população.

Isso (que é preciso ter um diálogo com a população) tem bastante a ver com o Resgate, porque o Resgate, evidentemente, não é indiferente às eleições, nada do que o Resgate vai propor poderá ocorrer se o fascismo continuar governando o Brasil, a partir do ano que vem, e além de tudo o Resgate parte da ideia de que é preciso ou é desejável criar condições pra que a vitória sobre o fascismo conhecida também com o processo de mobilização popular, de reflexão sobre os problemas do país, de retomada da formação política. Então nada mais nada mais importante pra discutir o futuro, o pós-queda do fascismo, do que pode nos levar até a queda do fascismo. Quais são as condições pra isso? É pra isso que a gente está aqui com o Arthur e ele vai fazer uma fala inicial e depois a gente vai dialogar e você pode mandar as suas questões também pelo chat.

Boa noite, pessoal! Boa noite, Arthur! Muito bem-vindo – Oh, Arthur? – eu esqueci e é indispensável apresentá-lo. Assim, o Arthur é uma das pessoas que está ajudando, mais diretamente, na construção do Resgate. Desde o início do processo ele está dando eco – Arthur – porque você está nos nos dois lugares ao mesmo tempo, junto com a Sônia Fleury, que a gente ouviu na segunda na terça-feira, e junto com Eduardo Fagnani, que ouvimos ontem. É uma das pessoas que tem ajudado a debater as ideias-força que fazem parte do projeto, os nomes que poderão conversar com a gente a partir da semana que vem, espécie de um comitê criador do Resgate, do qual o Arthur faz parte e isso enriquece muito o nosso projeto. Boa noite, Arthur!

Artur Araújo: Boa noite, Antonio, muito grato pelo convite! Boa noite a todas e todos que nos ouvem. Primeiro explicar que eu estava com um um olhar meio assim tortuoso porque eu estava numa briga para tentar passar do celular o notebook, que ficava um pouco mais fácil de trabalhar, finalmente consegui. Então, agora, a parte técnica foi sanada, eu queria, antes de entrar diretamente na discussão da conjuntura, eu queria resgatar duas coisas sobre o Resgate, que eu acho que são muito importantes, eu acho que é necessário a gente frisar, e são dois aspectos que me empolgam muito no projeto.

O primeiro, você tocou, é o Resgate da constituinte de 1988, esse é um resgate fundante pro Brasil. 1988 marcou uma dada opção nacional, não era uma opção unânime, era uma opção de franca maioria que foi a tentativa de se construir algo semelhante a um estado de bem-estar, algo semelhante a um capitalismo com regulação séria, com a ideia de função social da propriedade, não de liberdade absoluta da propriedade, quer dizer, 1988 desenhou um tipo de Brasil, e esse tipo de Brasil, como você frisou, veio sendo atacado desde 1988. A constituição, que não cabe no orçamento, o excesso de direitos, ganhou uma história longuíssima, desde aquela época de não conformismo das minorias em relação àquele modelo e que, obviamente, quando a gente chega a 2016 há um golpe fortíssimo, e pela primeira vez, desde 1988, se consegue realmente um ataque num conjunto de frentes. Haviam sido tentados vários, quer dizer, a gente teve disputas, sobre a constituição, várias vezes ao longo da história brasileira e inclusive momentos muito interessantes de reafirmação dos princípios, das ideias que estão na Constituição de 1988, particularmente o período que vai de 2003 a 2016. Mas eu acho que esse é um resgate fundante, é um resgate de um tipo de nação que nós buscamos ser e que tivemos esse processo interrompido e, quando nos aproximamos de ser isso, os resultados foram extremamente favoráveis pra maioria dos brasileiros.

O segundo resgate, que eu queria fazer, é que nós não podemos correr o risco de ocorrer, na saída dessas crises simultâneas que a gente vive, crise sanitária, crise econômica, crise social, crise política, crise ideológica, o que você quiser, não podemos viver algo semelhante ao que aconteceu de 2009 e 2010 pra diante. 2008 marcou uma crise generalizada do capitalismo, no mundo, de proporções equivalentes, ainda que menores, à crise 1929. Teve efeitos muito minorados, em relação à 1929, porque houve uma antecipação do New Deal para essa nova versão, ou seja, não houve o que aconteceu no mundo em 1929, de assistir à crise e esperar que ela se sanasse por si mesmo, como na grande depressão. Mas assim que passado os efeitos mais brutais da crise e a adoção de remédios intervencionistas e estatal, rapidamente se abandonou aquele arsenal todo.

Então, aquilo que foi utilizado, pra enfrentar a crise, foi largado e veio a criar, em vários outros momentos, crises semelhantes e que obrigaram a recorrer mais uma vez às velhas receitas. Eu acho que isso precisa ser resgatado, essa experiência negativa não pode ser repetida, nós temos que responder à crise presente de uma forma que não viabilize o retorno ao mais do mesmo, que é um criador de crises contínuo, que a gente já experimentou. Eu só queria – não vou me estender nesse tema – mas eu queria esses dois resgates – eu acho que são muito importantes – o resgate da constituição e o resgate do erro do retrocesso pós-crise de 2008.

Acho que são dois pilares que valeria muito a pena a gente explorar ao longo das conversas do projeto. Indo pra conjuntura, é muito comum a expressão, usou muito, era o próprio Keynes, que a natureza do futuro é ser opaco, isso é uma quase que tá tautológico, a gente não conhece o futuro porque o futuro não aconteceu, mas eu acho que a gente vive, hoje, em particular no Brasil, um futuro ainda mais opaco do que a opacidade com a qual nós estamos acostumados, pela convergência de dois fatores inusitados, duas singularidades, eu diria, a singularidade de um governo do extrema direita, um tipo de linha política, um tipo de arranjo político inusitado, na história brasileira – ao qual se somou algo inusitado – uma pandemia com as características da pandemia que nós vivemos agora.

Então, nós trabalhamos com duas novidades e incógnitas que normalmente não entravam nas nossas equações. Com isso, eu quero dizer que não dá pra gente raciocinar com os modelos que eram bastante válidos para as condições normais de temperatura e pressão. Nós vivemos no Brasil, essas duas singularidades, cuja a conjunção torna o futuro muito mais difícil, em termos de análise, em termos de previsão, a um conjunto de desconhecidos muito fortes! Nós não sabemos qual será a evolução da pandemia, nós não sabemos qual será a evolução do governo que hoje está plantado em Brasília e vamos ter que conversar aí, projetar, analisar e propor, com esse grau brutal de opacidade. Acho que é uma, é a primeira característica da conjuntura – que eu queria muito ressaltar e, portanto, eu sou extremamente cético com quaisquer previsões altamente pessimistas, altamente otimistas e sensatas… ou quaisquer outras que sejam, porque eu acredito que os elementos com que a gente pode contar hoje, para a projeção do futuro, mesmo o futuro de mais curto prazo, estão bastante prejudicadas.

O outro fator que acontece e aí, essencialmente, a pandemia que é a causadora. Houve uma mudança na nossa escala de tempo, os fatos se precipitam com velocidades completamente inusitadas em relação, digamos, ao que seria o tempo comum da política. Eu costumo brincar que nós teremos eleições no século que vem, para mim, 2022, olhando hoje, no Brasil de hoje, para mim é século que vem. É absolutamente impossível querer desenhar o que quererão os brasileiros em outubro de 2022. Porque nós não temos a mais leve ideia de como será esse país no próximo semestre. Quanto mais 3 semestres adiante.

Claro, existem determinados indicadores e, principalmente, existem tarefas a serem cumpridas, mas daí que a minha preocupação central é pensar no hoje e agora, não por uma despreocupação com 2022. É por uma certeza, a única possibilidade de se ampliar sensivelmente as probabilidades de vitória, contra o Governo de extrema direita, é a criação de uma sólida onda oposicionista da maioria dos brasileiros. Hoje, falta na conjuntura brasileira um elemento determinante: o povo.

O povo brasileiro, particularmente, por ser uma vítima brutal da pandemia, está ausente como ator político. E eu não estou dizendo que é um ator político, que de repente o Brasil vai se transformar num caldeirão de mobilizações contínuas, num clima de… não é isso, mas uma opinião pública. Todas as grandes viradas brasileiras foram precedidas de uma mudança do espírito das multidões, da vontade das multidões, mesmo que isso não significasse gigantescas mobilizações de rua, ou que as mobilizações de rua fossem marcadamente algo das camadas médias, das camadas mais intelectualizadas, sempre que as transformações ocorreram é porque havia mudado a vontade do povo, ela se expressava das mais diversas formas, na forma das pesquisas, na forma das conversas, no bate-papo de bar, na forma de voto… e eu sinto que hoje, o grande desafio, ainda é, para as oposições, a criação desse jeito de ser, desse espírito, desse clima no Brasil, em que a grande maioria dos seus cidadãos, dos seus eleitores, esteja fortemente convencida de que o governo Bolsonaro não é uma alternativa para sua vida, ao contrário da aposta que esses mesmos eleitores, por maioria, fizeram, em 2018.

Ou seja, que eles percebam, que eles notem, que os seus interesses não serão por esse tipo o governo e, simultaneamente, ganhem em confiança de que as oposições têm um caminho alternativo real, factível, que atende aos seus interesses. Daí que eu brinco sempre, não dá para querer discutir 2022 sem discutir o que fazer, a quem convencer e como convencer, em 2021, ou seja, concordando que 2022, é absolutamente decisivo e essencial – e aí eu concordo com todos que vêm o objetivo de 2022, como o objetivo central – eu acho que a gente não pode fazer a operação mecânica. Já que 2022 é central, vamos cuidar de 2022 agora, por quê? Porque o elemento que pode permitir vitória em 2022 é o convencimento de maioria, e eu não creio – e acho que a realidade tem mostrado isso pra nós – que esse convencimento das maiorias se dará meramente propagandeando 2022, meramente falando de 2022, ou meramente – e aí eu vou ser propositalmente radical na forma – falando de política. Entendida a política como a ação em relação às instituições de Estado, em relação às eleições. É essencial falar, hoje e agora, da vida das pessoas, o grande desafio, para que se consiga ter força eleitoral em 2022, é esse convencimento que eu falei, que a grande maioria dos brasileiros se convença de que o governo Bolsonaro não é uma boa alternativa para si e, simultaneamente, se convença de que um projeto das oposições é uma boa alternativa para o atendimento dos seus interesses.

Creio que se nós não nos dedicarmos a esta tarefa, ou seja, a essa relação com a maioria dos brasileiros, no sentido de desmanchar o vínculo e a confiança na alternativa da direita, e criar o vínculo e a confiança com a alternativa progressista, nós podemos correr o sério risco de chegar a 2022 com um governo em posição muito melhor, porque hoje há uma enorme janela de oportunidade pra tratar dessas contradições dos interesses das pessoas com o governo. É um governo que não cuidou da pandemia, deixou as pessoas morrerem, é um governo que não cuida do emprego, é um governo que não cuida do salário, é um governo que não cuida do auxílio, é um governo que não cuida do custo de vida e é um governo que gere uma crise econômica continuada.

Mas a crise não vai continuar para sempre, a pandemia, mais cedo ou mais tarde, vai sendo resolvida pela vacinação. Portanto, a janela de oportunidade – e com isso eu concluo essa minha intervenção para a gente bater bola em seguida – a grande janela de oportunidade, que existe no Brasil, para a criação desse vínculo firme, esse vínculo sólido, esse vínculo de confiança, da maioria com a oposição, é agora, quando as contradições estão extremamente visíveis e aguçadas. Este é o momento em que esse laço tem que ser formado, de sorte a que resista, inclusive, ao uso de melhorias que acontecerão, a probabilidade maior é que elas aconteçam, particularmente no campo da economia, mas também no campo da pandemia, evitar com que a operação política do governo sobre essas melhorias, ou até com a parada da “pioria” – se é que essa palavra existe – se transformem em voto para o governo.

Então, acho que o desafio do 2021 está na frente, não só no calendário, mas tem que estar na frente da nossa cabeça, porque 2022 está na nossa frente é um 2022 ainda envolto em Brumas e que, portanto, a construção de 2022 é obrigatoriamente uma tarefa de falar com as pessoas, agora, sobre aquilo que as pessoas têm como preocupação o interesse agora. Agora vamos para o bate-bola.

Antonio Martins: Duas observações, Arthur. Achei muito interessante porque no debate político que se faz, em geral em círculos pequenos da esquerda, mas que acabam influenciando esses círculos, tem surgido uma polarização que me parece meio artificial. Nós vamos fazer uma frente de esquerda, nós vamos fazer uma frente ampla, nós vamos fazer uma frente popular. É, isso resgata um debate que houve lá nos anos trinta e que talvez tenha pouca relação com a realidade que a gente está vivendo agora, e você vem com essa fórmula, a sólida onda oposicionista da maioria dos brasileiros. Então, eu concordo com isso, queria que você desenvolvesse um pouquinho e, em especial, que você desenvolvesse – evidentemente, se você fala que nós precisamos tratar dos temas que afligem a maioria dos brasileiros, é porque você acha que eles não estão sendo tratados – quais são esses temas?

E de que forma aquelas forças em que a gente confia para ganhar as eleições, para superar, eu gosto de chamar, o fascismo – porque nós não estamos num Estado fascista, mas nós estamos lidando com forças no governo que tem cara claramente intenção fascista. Então, como que essas forças, que pretendem e que podem nos ajudar a superar o fascismo, podem também, desde já, criar uma agenda de debate das condições de vida concreta, do sofrimento da população.

Artur Araújo: Eu vou inverter, eu vou começar pelo fim, o que se está falando ou não com as pessoas sobre aquilo que são seus interesses. Depois vem para o debate de com quem andar e a quem combater. Óh, eu faço uma pergunta muito objetiva pra quem está nos assistindo. Quem sabe o conteúdo da MP 1039? Eu duvido que tenha havido um grande número dos nossos espectadores que tenham tido essa resposta na ponta da língua. A MP 1039 foi a que instituiu o auxílio merreca, o auxílio de 150, 225, esse auxílio que é um atentado à vida dos brasileiros e é a fórmula objetiva de impedir o isolamento social, porque obriga as pessoas irem para a rua, buscar dinheiro e buscar trabalho.

Essa MP foi enviada para o Congresso e mofa no congresso, se já não educou, está pra caducar e em momento algum as oposições fizeram qualquer batalha a sério para que ela fosse pautada e, em sendo pautada, se transformasse num debate nacional, a volta do auxílio de 600 reais. As oposições não mexeram um dedo em relação a isso, não foram aos cidadãos dizendo “tem que voltar aos 600 e o jeito de voltar aos 600 é obrigar o Presidente da Câmara a pautar a MP 1039. Isso, para mim, é o exemplo mais claro e objetivo de oposições que estão descoladas do interesse imediato, objetivo, material das pessoas. A falta dos 600 reais é um crime, é um crime contra a vida, por impossibilitar o consumo de alimentos, e é um crime sanitário, porque a falta dos 600 reais inviabiliza você poder tomar medidas de isolamento, conforme elas sejam necessárias a cada cidade, a cada região, pelo país inteiro, seja o que for.

Da mesma forma a nossa ação em relação aos preços dos alimentos, aos preços da cesta básica é pífia Eu me lembro que temos 45 dias, um pouco mais, atrás, foi lançada uma campanha fantástica que era do “Bolsocaro”, era um troço brilhante de design de ideia, era… não sei se todos viram, ela copiava esses anúncios de liquidação de supermercado, de lojas e tal e trabalhava, lá, a denúncia do estouro de preços dos itens de consumo, em particular gás de cozinha, que é uma coisa criminosa que está fazendo as pessoas cozinharem com lenha, com álcool, com gasolina, as coisa mais insanas que se possa imaginar.

Muito bem, que essa campanha tinha uma enorme capacidade de se transformar em algo popular, ser um start de uma ação contra os preços, de exigência de segurar os preços da cesta básica, de retomar a política de estoques reguladores, que foi abandonada. Não! A campanha foi lançada, as oposições não lhe deram o menor suporte, ela durou, sei lá, duas, três semanas e caiu no vazio, sumiu. Quem lançou não aguentou fazer sozinho, viu que não estava convencendo ninguém. São esses dois exemplos, para mim, Antônio, que mostram claramente que, infelizmente, a cabeça do comando das oposições está naquilo que se convencionou chamar política, ou grande política, sem entender que nada é mais político, hoje, nada cria mais oposição ao governo de extrema direita fascista.

O nome, cá entre nós, tanto faz, não é um problema! Porque nós não estamos aqui num debate de qualificação sociológica e política dele, mas esse governo tem um enorme calcanhar de Aquiles nesses dois assuntos, e não são assuntos que nós exploramos. Aí, para mim, surge a pergunta de qualquer um comum do povo, “esses caras estão tratando de quem?” “Do interesse deles ou do meu?”. “As coisas que me afligem, hoje: eu não consigo comprar gás, eu não consigo comprar comida, eu não acho… eu estou desesperado e esses caras não falam do preço da comida, não falam do preço do gás, não falam do auxílio”. Ou, quando fazem, colocam lá a frase, mas estão preocupados é com outra rota, estão preocupados com a composição eleitoral ou estão preocupados com a tais das frentes. Isso inibe qualquer diálogo. Por que que eu me sentirei representado por oposições que não cuidam dos meus interesses imediatos e que são interesses brutalmente sensíveis, interesses ligados à sobrevivência, não tem nada mais basal do que isso, né?

É quase que “eu vou sobreviver eu não vou?”. Vou sobreviver à doença, vou sobreviver à fome ou não vou? E aí vou entrando no seu segundo ponto da discussão, das frentes. Eu confesso uma enorme preguiça com esse debate, enorme preguiça! Acho que ele tem uma marca de academicismo terrível. Eu acabei aprendendo, com um amigo em comum, que nós temos, o Leidiano, que criou uma fórmula que eu passei a usar mais de um ano e me a mim serve, que é a chamada frente de geometria variável. O que que eu quero dizer com isso? A grosso modo, dois grandes campos de oposição ao campo é o campo da democracia, é o campo dos direitos, é o campo dos valores, esse campo permite um enorme aliança de forças sociais, políticas, partidárias a uma grande gama de pessoas, partidos, organizações, movimentos

No Brasil que se contrapõe ao Bolsonarismo, nesses campos na defesa da democracia, na defesa da regra do jogo, na defesa do dos processos legais normais, na defesa dos direitos civis no combate ao racismo, no combate ao machismo, no combate à homofobia. É enorme o contingente de forças que podem convergir na oposição ao bolsonarismo, nessas pautas, e aí eu sou altamente favorável que todos marchemos completamente juntos nesses assuntos. Eu não vejo nenhuma razão para eu querer ter menos força. Quanto mais a gente tiver defendendo isso, melhor para o Brasil.

Primeiro, porque é um obstáculo maior para que o Bolsonaro não tente as aventuras que ele sempre tem no bolso do colete. Claro que ele nunca vai abandonar a ideia dum golpe, ele nunca vai abandonar a ideia de afirmar suas políticas, a despeito de eleições, seja onde for. Então, de cara é uma barreira maior se muita gente defende isso. Segundo, porque cria uma posição maior, mais gente que não tem vida política cotidiana é convencida disso.

Agora, um outro campo, que é o campo econômico social, e aí eu resgato aquilo, aquele resgate de 2008, eu acho que nós devemos defender claramente, para os brasileiros, que o liberalismo econômico não é uma solução para o país e, aí, nós não temos convergência com todos que defendem a democracia. Aí, entre os defensores reais da democracia há vários liberais, há vários que defendem o modelo econômico, muito semelhante ao que o Guedes está praticando, mesmo tendo divergências no campo das relações políticas, das relações sociais. Então, o que acontece?

Para esta pauta nós vamos nos juntar com aqueles que defendem esse caminho não liberal, que defendem que não se repita o que aconteceu depois da crise de 2008, que passa a crise a gente passa também uma borracha,e some de novo o Estado, sobe de novo com a regulação, sobe de novo com a busca das políticas sociais. E isso vai coexistir. Como isso se refletirá em candidaturas? Que é outra questão que é um passo que só vai se definir lá para o primeiro, final do primeiro semestre do ano que vem. A composição eleitoral propriamente dita, quais as chapas e o programa das chapas.

Volto a dizer, minha preocupação é com hoje e hoje eu vejo essas duas frentes de ação, uma grande, necessária frente, de ação da defesa da democracia e dos direitos sejam sociais ou sejam civis. E uma frente e todos aqueles que defendem uma alternativa não liberal para o Brasil, até pela prova contínua de que as alternativas liberais dão com os burros n’água se você pensar do ponto de vista da população, da maioria da população que, com quem você quer o diálogo. Aí que vem a brincadeira, é na verdade uma frente de geometria variável, a cada pauta concreta, a cada luta, a cada reivindicação, a cada movimentação, a cada composição, eu tento juntar o mais de gente que converge naquela pauta… na pauta seguinte eu vou tentar o máximo daquela pauta. É uma operação que exige inteligência, exige sagacidade, exige não ser sectário. Compreender que, você marcha junto num assunto e briga no outro assunto. Mas eu acho que a única forma objetiva da gente demonstrar para a população brasileira que – aí pensando do ponto de vista das forças de esquerda, pensando do ponto de vista de onde eu estou raciocinando, é exatamente ter a clareza de associar a da democracia e dos direitos a defesa de um arranjo econômico e social que signifique a retomada, com velocidade da construção do Estado de bem-estar no Brasil.

Antonio Martins: Vou te dar um exemplo concreto para você dialogar com esse exemplo que acho que tem muito a ver com o que você tá falando. Eu queria falar do Lula. O Lula passou quase dois anos preso, voltou da prisão e ficou mais de um ano como uma personagem de pouca expressão, basicamente se defendendo… e, num certo sentido, ao se defender, ao concentrar a sua fala, o seu discurso, em sua defesa, ele incorria nesse erro que você está falando, de olhar, essencialmente, para a disputa do poder. Porque o que estava em questão era o seu direito a se candidatar. De repente, logo depois que o STF o livrou, ele faz uma fala que imediatamente transforma a conjuntura. É impressionante! Até a fala do Lula e a conjuntura depois da fala do Lula, é uma mudança brutal, e a característica dessa fala do Lula é que ele toca nesses temas que você está falando, você está falando, ele toca, essencialmente, na pandemia… e toca no empobrecimento do povo.

Mas, desde então, as aparições dele são muito esporádicas. Eu queria comparar isso com o período que nós vivemos e que muita gente, que está nos ouvindo, não viveu – mas que sabe que é o período que a gente estava conversando com o Fagnani, ontem, e com a Sônia Fleury, anteontem – que é o período que leva à Constituição de 1988, que leva à queda da ditadura e que leva a uma série de conquistas que a direita, até hoje, está brigando pra pra derrubar. Aquele é um período contrário a esse e, talvez, seja bom – contrário ou diferente desse – reavivar e lembrar para as pessoas mais jovens. É um período de intensíssima mobilização social, é um período de surgimento de uma classe operária e de um conjunto de categorias assalariadas que se espalha por todo o país, e isso está acompanhado com uma série de outros movimentos… O movimento contra a carestia, que tem enorme repercussão, o movimento pela reforma sanitária, o movimento dos estudantes, o movimento dos professores, ou seja, o Brasil é, naquela época, um cadinho de lutas pela mudança social, contra o projeto de concentração de riqueza, pela cidadania, pelos direitos políticos, pelos direitos sindicais, pelos direitos sociais…

E isso acontece, também, em outros países, hoje. O caso mais concreto, que a gente tem, é o do Chile, que viveu tantos anos num atraso e, de repente, está hoje num processo de constituinte, mas o processo constituinte não saiu da luta pela constituinte, ele saiu de uma série de batalhas pela previdência, pela água, pela universidade gratuita. O que nos levou a regredir tanto, do ponto de vista da mobilização, de a gente ficar esperando o Lula defender essas ideias, mas não vê-la naquilo que foi o que impulsionou o Lula 30 trinta anos atrás, aquilo ter desaparecido. O que aconteceu com a esquerda?

Artur Araújo: Bom, isso dá tese, né? Se eu tivesse a solução pronta, para isso… Mas, Antonio, acho que alguns aspectos são muito marcantes. Primeiro, evidentemente, no processo pré-constituinte, não só havia toda essa efervescência que você cita, ela era real, as pessoas estavam envolvidas nela, elas eram de massa, realmente. Você tinha setores das classes dominantes brasileiras apostando num tipo de projeto que envolvia o estado de bem-estar – para mim o MDB, PMDB da época, é a marca registrada disso. Você tinha, voltado ao apoio daquele projeto, setores industriais, setores de serviços, da imprensa, da intelectualidade, quer dizer, você tinha um caldo de cultura da época que era favorável à formação desse projeto policlassista que surge desse pacto, que surge da Constituição de 1988.

De lá pra cá houve uma enorme mudança na forma de pensar, da esmagadora maioria das classes dominantes no Brasil, isso aí é uma coisa que a gente tem que constatar no campo das classes dominantes brasileiras, o liberalismo teve uma vitória moral e intelectual gigantesca. A ideia de que não há alternativa, a ideia de desaparecer com o Estado, a ideia da competição livre e sem sem freios como um mecanismo de progresso, esse conjunto de ideias se transformou realmente em ideias arraigadas nas classes dominantes.

Então, essa é uma mudança de qualidade e que significa que as forças populares não contam mais com essa convergência de interesse, com o que contaram na constituinte. Agora, o segundo ponto é o mais trágico, né? É engraçado porque a esquerda é, marcadamente, como defensora do Estado, e eu também o sou, mas acho que fez uma aposta um pouco excessiva no Estado, porque passou a achar que tendo acento nas estruturas formais do estado, você prescinde da mobilização social, que você não precisa mais cuidar das suas relações com as pessoas porque via o Estado você fará tudo.

Então, o que a gente vive, particularmente no Brasil de 2003 para adiante, é uma ideia de que pela via do Estado você fará todo o processo sem necessidade de trazer a situação de trazer a multidão com você. Não há uma preocupação nossa, ao longo de todo aquele período de governos, de soldar uma relação com a população. É como se nós oferecemos a partir do Estado, vocês ficam contentes aí na ponta de vocês, tudo que eu quero de vocês é o voto. Basta o voto! Vocês me reelegendo continuamente, está tudo de bom tamanho.

O que era uma dupla falácia, primeiro porque não estava de bom tamanho porque os limites da institucionalidade foram visíveis, a quantidade de coisas que os governos do PT e seus aliados não puderam fazer, porque não tinham força para fazer, foi enorme. Bastava ver a composição do Congresso, a esquerda chega ao executivo, mas a esquerda nem de longe chega ao legislativo, a esquerda é francamente minoritária no legislativo. A esquerda é quase inexistente no judiciário, a esquerda não tem presença nas forças armadas, a esquerda não tem grandes aparatos de comunicação, portanto, você contar com a força popular e com a mobilização da sociedade, em defesa de projetos, enquanto você era governo e, muito particularmente, em defesa do governo, quando tentam derrubar – e nós não tivemos isso.

Então, eu acho que houve um excesso de confiança no poder de Estado, ainda por cima no poder do Estado profundamente parcial, como um mecanismo de transformação, por si só, acho que mostrou-se completamente equivocado, não houve uma fidelização das bases sociais àquele projeto, ele foi derrubado com o sopro, a verdade é essa. Não houve possibilidade de avançar mais porque não se criava força social e, eu acho que acabou criando um cacoete e é aí que eu queria chegar. Eu acho que hoje nós temos o cacoete de desprezar a necessidade de conversar com a maioria das pessoas, convencer a maioria das pessoas e levá-las a, conosco, reivindicar, lutar, exigir, ter opinião.

Acho que nós estamos, a duras penas, tendo que reaprender isso – e nas piores condições – ter que fazer isso com um governo autoritário, com um governo que dificulta o que for possível, em termos de relações sociais. Temos uma mudança no mundo do trabalho, em que muitos trabalhadores não têm mais local de trabalho, estão deslocados, portanto, nós vamos ter que reaprender a fazer trabalho de bairro, trabalho de território, porque é lá que as pessoas estão. Mas, basicamente eu acho que houve essa grande ilusão, de que é possível, exclusivamente a partir da presença eleitoral em parte do aparato do Estado, tocar um projeto transformador. Ficou evidente que é necessário você ter força social ativa, organizada e contínua, sob pena de você não realizar o próprio projeto, ficar travado na capacidade e ser muito fácil de ser derrubado, porque, no fundo no fundo, como você não criou essa relação biunívoca, com a população, na hora em que o Governo está ameaçado, a população não vê aquele governo como o seu e não vai pras ruas, não vai para a gritaria em sua defesa.

Antonio Martins: Artur, eu queria ver até que ponto você acha que isso está relacionado, também, com a ausência de um horizonte político. Eu vou te relatar – eu acho que na conversa dos dois últimos dias, com a Sônia e com o Eduardo Fagnani, surgiu uma hipótese que acho que vale a pena ser considerada. Ao contrário do que se tornou corrente dizer, tanto a Sônia quanto o Fagnani acham que a marca principal do período de 1988, Constituição, até 2016, não é a conciliação de classes, eles dizem que a conciliação, se há, é um fenômeno pouco relevante. Mas, esse período é marcado, essencialmente, por uma intensíssima disputa de classes, uma intensíssima disputa do do que eles chamam – e principalmente o Fagnani – uma aliança antipopular que pega desde a elite, mas é isso que você estava falando, desde a elite mais rural até os industriais que deixam de ser industriais, que passam a ser rentistas, até os banqueiros, os rentistas tradicionais, esses estão empenhadíssimos em lutar contra os direitos sociais alcançados na Constituição, seja quando eles estão no governo, seja quando a esquerda está no governo, e é muito interessante que – Fagnani estava lembrando – em 1987 ainda, a constituição não está escrita, e o Sarney vai para televisão e diz, esse país vai ficar ingovernável. Isso que nós estamos vivendo, há 33 anos! No ramerrão de que esse país vai ficar em governável e a gente tem que tirar direitos.

A pergunta é: como é que esse discurso pode se sustentar por tanto tempo? Ele não se sustenta pela ausência de outra grande visão de futuro? Não está faltando – eu acho que isso dialoga com o que você diz, da falta de estar com o povo, mas só está com o povo quem tem projeto para o povo, projeto de futuro – e, num certo sentido, isso não tem a ver, também, com uma tentativa de pensar por fórmulas? Então, ao invés de ver saídas concretas em relação ao neoliberalismo, a gente fica raciocinando “é reforma ou revolução?”, que é um debate completamente fora do… mas é um debate que marca os ambientes de esquerda e se criam imensas polêmicas em torno disso. E, só pra emendar, nós estamos vivendo uma mudança no cenário internacional, essa mudança é a crise, digamos assim, da ideia do neoliberalismo fiscal. De que forma isso abre novos horizontes para reconstruir um, abre caminho, para reconstruir um horizonte político oposto ao do um neoliberalismo e ao do fascismo também.

Artur Araújo: Vamos lá! Começando por uma negação, eu tenho total indisposição com o debate sobre conciliação de classes, qualquer governo, no capitalismo, é um governo de conciliação de classes, enquanto ele admite a propriedade privada dos meios de produção. Houve conciliação de classes, o interesse histórico do proletariado, dos trabalhadores, é eliminar propriedade privada dos meios de produção e o interesse histórico dos capitalistas é manter a propriedade, logo, qualquer governo do capitalismo, por definição, é um governo de conciliação de classes.

Aí, nós podemos discutir que tipo de programa, que tipo de acerto, de até onde você vai na composição com o capital e até onde você tromba com o capital. É isso que se diz. Agora, o conceito de conciliação de classe, para mim, vira um conceito moral, não é um conceito político porque, se você for levá-lo a ferro e fogo, todo governo ou o capitalismo é de conciliação. Bom, agora vamos para o concreto, vamos lembrar que o PT foi, para o governo brasileiro – no fundo no fundo – sem um programa da onde queria chegar e, eu não tenho a menor – eu sou petista há muito tempo – e não tenho a menor dúvida em afirmar que o PT não tinha um projeto de como gerir o capitalismo brasileiro, não tinha.

O seu programa histórico, chamado Programa Democrático Popular, era excessivamente avançado pra correlação de forças que estava construída, ou seja, não não havia possibilidade de estatização do sistema financeiro, não havia a possibilidade de você reverter a fundo as relações de propriedade no Brasil. Então, mais sabendo dessas limitantes maiores e sabendo, inclusive, das limitantes externas da força do imperialismo, no que ele impõe de dinâmica para os países periféricos, o PT foi criando o seu programa de mudanças, no Brasil, conforme foi governando. Essa que é a verdade! Então, de cara você tem esse problema, você vai na base da tentativa e erro e, aí, você pode acertar ou errar, conforme o aumento, e você vê essa essa curva.

O PT entra governando, do ponto de vista da economia, com o programa totalmente liberal, programa do Palocci, que era reforçar o tripé, reforçar toda a concepção macroeconômica, herdada do governo Fernando Henrique, herdada do consenso de Washington. Quando ocorre a crise de 2005, uma saída, uma das várias saídas da crise que se encontra, é romper com isso, e tem um efeito extremamente positivo. O período que vai de 2006 para diante, é capaz de enfrentar, por exemplo, brilhantemente, a crise mundial de 2008, porque ai se adota um partido, uma concepção de como gerir o capitalismo brasileiro, que não estava mais prisioneira de todos aqueles aspectos. Rompeu com o liberalismo por completo?

Não! O Banco Central ainda era gerido com cabeça liberal, mas, na soma, foi construído um início de rompimento com o liberalismo, e deu resultado muito positivo, aí, quando chega a 2015, uma virada de barro, de repente, se muda 180 graus de novo, a concepção de como gerir parte para o fiscalismo mais aberto, que resulta num pulo do desemprego, que resulta no mais terrível, que é perda de base social. Não traz as classes dominantes para o apoio, apesar de estar cumprindo um programa que eles pregavam e, ao mesmo tempo, perde as bases populares, porque você a sacrifica, você reduz o emprego delas, você mete tarifaço em cima delas, você tem subida de redução de programas sociais, redução de investimentos.

Então, sempre houve esse problema, aí eu concordo muito com a ideia de que é necessário, sim, ter uma ideia do que fazer na gestão do capitalismo brasileiro! Você, chegando ao Governo, para você não se embananar, por um lado, e por outro lado – pelo que você falou, que é vital – se você não convencer as pessoas, se não convencer os cidadãos de que você tem um projeto inteiro, você quer construir um determinado tipo de país e, portanto, você vai ter, enfim, nas batalhas, e que você vai precisar daquelas pessoas te apoiando, você nunca vai construir condições de força para fazer qualquer mudança, aí sim você vai estar prisioneiro, na prática, de um pior tipo de conciliação de classe que existe, que é o de quem não têm força, tem que se submeter e governar para os outros, e não consegue fidelizar a sua base social, porque, a cada aperto, responde ao aperto com a política do outro.

Então, esse desafio, para mim, é fundamental! Nós temos que clarear, tanto para nós, para sabermos o que pretendemos, até onde queremos chegar, mas principalmente para os brasileiros, que tipo de país queremos. Não é nenhuma coisa rebuscada, são determinadas diretrizes que a gente espera que aconteça. A gente espera que a vida das pessoas chegue a que ponto? A gente quer chegar a que objetivo de renda? Aqui objetivo de emprego, aqui o objetivo de salário, aqui o objetivo de educação, aqui o objetivo de saúde, já tem o objetivo de transporte, que tipo de país a gente quer? E ao empolgar as pessoas com isso, é quando se constrói as condições de força para ir fazendo os contínuos desempates, nos embates que acontecerão.

Se as classes dominantes – é uma verdade o que você falou – e inclusive parcelas das camadas médias, passaram trinta e tantos anos gritando contra a Constituição de 1988, partindo de um momento em que, aquelas ideias eram fortíssimas na sociedade, tanto que foram aprovadas, imagina agora, em que as ideias dominantes são muito diferentes das ideias de 1988. Então, mais do que nunca, é necessário essa capacidade de você convencer pessoas e transformar a sociedade num instrumento de força.

Claro que para nós é fundamental a revisão que está sendo feita em vários países centrais, não tenho a menor dúvida disso. Se para alguma coisa a pandemia serviu foi para desnudar o quanto o Estado é necessário, o quanto uma série de mitologias sobre finanças públicas foi varrida, o Estado gastou como um doido e não aconteceu nada do que era previsto, nenhuma explosão de juros, explosão inflacionária, países quebrando, não aconteceu nada, nada, nada, nada disso, muito ao contrário, resistiu-se aos impactos que a pandemia colocava e se evitou que a mortandade e o desastre fosse muito maior. Então, há uma revisão no início, ela será uma batalha, como foi uma batalha quando o Roosevelt propôs o New Deal, aquilo não foi aceito de de bom grado. Houve, inclusive, outras alternativas em disputa, nazismo e o fascismo eram outras alternativas que foram colocadas e foram vitoriosas em vários países.

Agora, com certeza, e para concluir, abriu-se o debate de que o liberalismo tem falhas muito sérias, tem muitas falhas para a sociedade e tem até falhas para o próprio capital. O liberalismo é um produtor de crises contínuas, a falta de regulação absoluta e completa leva a problemas contínuos de acumulação e realização de capital. Então, eu acredito que se abre uma possibilidade mundial e, portanto também aqui, de não se repetir a saída de2009, 2010, de não haver um retorno à fórmula liberal e haver a possibilidade de transição para um regime mais semelhante ao que foram os trinta gloriosos, ao que foi o período da concepção do estado de bem-estar.

Antonio Martins: Artur, a gente podia continuar conversando horas aqui e enriqueceria muito esse preâmbulo aqui do Resgate. Infelizmente, nós vamos ter que terminar. Eu vou ler duas perguntas das pessoas que estão participando do debate e fazer uma última, e você responde e faz as as tuas considerações finais.

O Gerson Neto pergunta que papel podem ter os partidos, nesse futuro? Eles perderam a liderança da política, especialmente o PT, o sacrifício que o Lulismo fez para proteger o governo… culpa-se o partido junto com a campanha do lava-jatismo, enfim… é possível os partidos, principalmente o PT, se renovarem? Eu perdi um pouquinho o o fio da da meada do que o Gerson escreveu, mas é isso, há ainda solução para os partidos?

Josafá diz: “o futuro para o Brasil é investimento em educação, políticas educacionais que reforcem ao povo que a luta de classes existe desde que o mundo é mundo”. E eu te diria o seguinte, dentro – você é um, mesmo não sendo economista, você é um entusiasta da teoria monetária moderna. Que papel a teoria monetária moderna pode ter nessa recomposição de um horizonte político de transformações no Brasil? Vamos lá! Eu continuo achando que partidos políticos são instrumentos fundamentais, eu acho que é necessário você organizar pessoas que tenham ideias sobre como deve ser a sociedade, numa forma desenhada para a disputa do poder de Estado, e é isso que é partido político, e não creio que esteja superada a forma partido.

Outra coisa, bastante distinta, é o que fazem os partidos, e aí sim o PT tem um enorme desafio pela frente, o PT, se não mudar- claro, isso é a minha opinião – não significa que é algo já totalmente aceito, mas, na minha opinião, o PT tem que voltar a ser um partido, na concepção de partido que eu acredito correta, que não é uma legenda eleitoral, é um partido que também se prepara para os embates eleitorais, mas essencialmente é um partido que tenta dialogar, apresentar alternativas e dirigir a vida social cotidiana.

Este é um desafio para um partido, como eu concebo que é um partido necessário, que possa, aí sim, gerar transformações, porque eu não acredito em transformações que não sejam fruto de uma ação da maioria das pessoas querendo aquelas transformações… esse é o desafio, não é um ato de vontade do partido político ou da sua direção, porque ele considera a mudança da sociedade necessária, então ele a conquistará, sabe-se lá, por poder divino ou meramente pelo voto. Se você não tem a sociedade querendo aquelas transformações, você está morto. Então, acho que esse desafio, sim, acredito que se o PT não se renovar, nesse sentido, tenderá a fenecer, como muitos partidos de esquerda já passaram por isso, no mundo, e vieram a ser substituídos por outro. Ficou um vazio de longo prazo. Esse é o desafio, se não houver essa transformação de concepção, se não retornar com as características de hoje, as ideias fundadoras do PT, ou seja, um instrumento de disputa das instituições, mas essencialmente um instrumento de organização da vontade coletiva e de defesa de projeto e de ideia de como deve ser a sociedade, eu acho que a gente vai morrer na praia.

Quanto à educação, eu acho que a gente tem que quebrar um único mito, tá? Educação formal é absolutamente necessária, fundamental, deve ser prioridade de qualquer governo progressista, não há a menor dúvida sobre isso, mas ela jamais substituirá a educação concreta da vida e da luta de classes. Não creio que, meramente com investimentos na rede educacional de um país, você resolva por completo o problema de formação das ideias, o problema de formação de consciência.

Ter meios de comunicação é algo fundamental, e este convívio pedagógico e continuado, inclusive é via de mão dupla, você aprendendo com o povo e o povo aprendendo com as ideias que você está tentando transmitir, é um instrumento essencial para a transformação. Então, se por um lado, o investimento na educação formal, nas estruturas de educação, como a gente conhece, é fundante, é necessário, é também fundante o papel pedagógico, o papel educacional, que um partido político tem que exercer na sociedade. O sistema educacional não substitui por completo um partido político pra essa tarefa.

Por fim, sobre teoria monetária moderna. Sim, eu sou entusiasta e acho que a grande contribuição que a teoria monetária moderna traz não é como tocar e operar a economia, acho que aí até ela é uma teoria razoavelmente falha em vários aspectos, mas ela tem uma coisa que é fundante, acabar com os mitos sobre o que é o dinheiro e sobre o que são as finanças estatais. Enquanto vigorar a ideia de que governo fica sem dinheiro, que governo quebra na própria moeda, de que você precisa tributar para gastar – eu não vou entrar aqui, evidentemente, num debate sobre a teoria – mas eu acho que o grande potencial que ela tem é de demonstrar como funciona, de verdade, as finanças públicas, portanto o que que é possível e não é possível fazer, tirando todo um emaranhado de mitologia que se criou, particularmente, uma horrorosa… de que um Governo que emite moeda é igual às famílias, é igual às empresas e é igual a unidades que não emitem moedas. É um erro crasso, mas que tem grande uso para o capital.

E aí, dentro do que é o dinheiro. O que que é o dinheiro? Acabar com a ideia de que o dinheiro é uma coisa. Não é! O dinheiro é uma relação social. E que o Estado que emite moeda tem um grau de liberdade para fazer isso e é totalmente distinto daquilo que se convencionou. Nós não temos moeda padrão ouro, nós não temos problema de quantidade de moeda na economia. Então, acho que o grande mérito da teoria monetária moderna é permitir, cientificamente, tirar da frente esse entulho todo para ir ver muito bem… se é assim que é dinheiro, se assim é que funciona as finanças públicas, vamos ver como usá-las em direção aos objetivos políticos, sociais que nós temos no país.

Antonio Martins: Artur, muito obrigado pela sua contribuição aqui. Pelo que você falou, fica muito mais claro ainda que você vai ser uma pessoa muito essencial tanto na construção de bastidores do conjunto de ideias-força aqui do Resgate, quanto participando nesses diálogos, aqui, comigo e com o pessoal que acompanha o Outras Palavras. Muito obrigado por enriquecer esse nosso debate sobre o Resgate do Brasil.

Arthur Araújo: Eu que agradeço muito a oportunidade, e dizer que a gente só consegue ser criativo na presença de gente criativa, então, na verdade, quem vai aproveitar muito os debates do Resgate serei eu mesmo. Agradeço muito a oportunidade e agradeço a todos que tiveram a paciência de me ouvir por essa hora. Um grande abraço, um grande abraço para todo mundo. Boa noite!

Antonio Martins: Boa noite, pessoal! E até amanhã, também às 20 horas, com o Tiaraju D’Andreia, que vai nos falar sobre a formação dos sujeito social periférico e o que ele diz das nossas ideias da política. Boa noite, gente!

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