Um coro de tradutores para o Ulysses de Joyce

No centenário de um dos mais celebrados – e temidos – romances, nova edição distribui seus capítulos a 18 vozes tradutoras, acentuando sua multiplicidade intrínseca. Nessa entrevista, o idealizador convida a degustar a obra

Imagem: AnneHeffernanDesign
.

Por Henrique Piccinato Xavier em entrevista a Maurício Ayer 

Passados cem anos de seu lançamento, o romance Ulysses, do irlandês James Joyce, continua sendo um livro que mete medo em muita gente. É um catatau de mais de 1.000 páginas, a depender da edição, mas o tamanho não é nem de longe o que ele tem de mais assustador ou, no mínimo, desafiador. Tomando como estrutura de referência a Odisseia de Homero e seus episódios, Joyce escreveu um romance em 18 episódios ou capítulos, cada um eles com um estilo, uma técnica, e uma série de outros parâmetros que tornam cada um deles muito diferente dos demais. Em um desses episódios, a própria língua do texto se transforma, emulando várias etapas da história da língua inglesa até chegar na língua do início do século XX, ou seja, a língua do próprio Joyce. Outro, é todo construído como uma peça de teatro. E assim vai. E tudo isso para narrar um dia na vida de um homem, Leopold Bloom, em Dublin. 

Foi para explorar o caráter múltiplo do Ulysses que o filósofo Henrique Piccinato Xavier concebeu um projeto de tradução singular, em comemoração ao centenário da obra: se cada capítulo tem um estilo tão radicalmente diferente, mobilizando questões de linguagem, repertório literário e vocabulário, entre outras, tão distintas, como se fossem escritos por 18 autores diferentes, por que não fazer um projeto de tradução que reúna um tradutor diferente para cada um desses capítulos? Para o capítulo que tem como tema a música, por que não chamar um compositor para recriá-lo em português? O capítulo que narra o enterro de um amigo de Bloom, por que não entregá-lo para traduzir por um escritor que tem como tema de aprofundamento, justamente, a morte? Assim nasceu o projeto Ulisses a 18 vozes, que deverá ser publicado no ano que vem, pela Ateliê Editorial.  

Foi para conversar sobre esse projeto singular e denso que realizamos essa entrevista, na manhã de 17 de novembro de 2022. Henrique explicou que sim, é verdade que o Ulysses ainda mete medo, mas isso também tem a ver com o fato de que, embora tremendamente experimental, o romance também diz muito sobre o nosso mundo contemporâneo, e este mundo realmente é muito assustador. De modo que o que faz dele assustador é também algo que pode nos interessar encarar. Muitas das inovações do livro são hoje mais acessíveis, não porque tenham sido incorporadas à linguagem corrente, mesmo literária, mas porque temos mais facilidade de encontrar os recursos para decifrar cada uma de suas partes.

Outros aspectos do livro não só não envelheceram como rejuvenesceram com o passar das décadas. Conforme explica Henrique, o romance confronta três conceitos/instituições que no tempo de Joyce eram profundamente opressoras: Deus, Família e Pátria. Num país que vive um profundo conflito religioso entre católicos e protestantes, Joyce escolhe como herói um judeu – aliás, um judeu dúbio, como descobrimos ao longo do romance. Também desvenda o casamento, e faz o romance girar em torno de um caso de adultério, vivido, no entanto, de maneira impressionantemente liberta de convenções que ainda hoje permanecem num horizonte convencional. Finalmente, Joyce, por meio de seus personagens, em especial Stephen Dedalus, consegue, sem deixar de repudiar o colonialismo inglês, guardar distância do nacionalismo irlandês e seus pressupostos sectários. Capta, inclusive, a imbricação desse nacionalismo extremado com o antissemitismo, cuja história na Europa conhecemos bem, mas que ainda daria seus piores frutos – não custa lembrar que Ulysses é lançado no ano em que Mussolini ascende ao poder na Itália.

Mas o livro vai muito além. Bloom é um personagem que não obedece aos padrões de masculinidade de seu tempo, e se coloca em atrito ou mesmo confronto com isso em diversas situações. Num momento de sonho ou delírio, vemos uma cena em que ele se vê transformado num ser híbrido, transexual, e é submetido a um exame ginecológico e meio a um tribunal. Caberia, sugere Henrique, empreender uma leitura queer do Ulysses.

Sobre o projeto, Henrique compartilhou a gênese do projeto e um pouco do trabalho de curadoria. Ele enfatiza que o Brasil tem três traduções, todas elas excelentes, o que faz do país a comunidade literária que mais traduziu o Ulysses, e que há muitas décadas se interessa imensamente pela literatura joyciana. Esta tradução, aliás, integrará a coleção “rolarriuana”, totalmente dedicada a obras de Joyce e a estudos sobre o autor, que Henrique coordena na Ateliê Editorial.   

Assista à íntegra da entrevista. 

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *