Êxtase: A micropolítica do corpo anoréxico

Entre documentário e ficção, filme autobiográfico aborda distúrbio alimentar como um sintoma das lógicas individualistas e da sociedade do controle. Linguagem imersiva aproxima o espectador da experiência da anoréxica. Leia diálogo com diretora

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Por Moara Passoni em entrevista a Maurício Ayer

Após passar por mais de 30 festivais internacionais, entre eles o MoMA Doc’s Fortnight nos Estados Unidos, o Visions du Réel na Suíça e a competitiva oficial do CPH:DOX Awards na Dinamarca – que chamou a diretora brasileira Moara Passoni de “um dos grandes nomes do cinema da atualidade” –, o filme Êxtase estreia nos cinemas a partir do dia 1º de dezembro (quinta-feira). Estreia oficial acontece com projeção gratuita às 19h, no Espaço Itaú Frei Caneca, em São Paulo, seguido de debate com a diretora Moara Passoni, a produtora Petra Costa, a psiquiatra Ligia Florio e a psicanalista Luciana Saddi.

O longa, que conta com delicadeza e sensibilidade a história de uma menina que desenvolve anorexia durante 10 anos, entra em cartaz nos cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Salvador e Palmas.

Você pode acompanhar a programação de projeções e debates pelo perfil do filme Êxtase no Instagram.

A seguir, leia entrevista concedida por Moara Passoni a Maurício Ayer, que também é co-roteirista do filme.

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Êxtase: A micropolítica do corpo anoréxico

Diálogo entre a diretora Moara Passoni e o co-roteirista Maurício Ayer

Maurício Ayer – Moara, eu me lembro com muita força da primeira conversa que tivemos lá no início do processo desse filme, você estava começando a mexer nas questões da anorexia e eu, pesquisando Marguerite Duras. A gente teve uma espécie de epifania, numa mesa de café: parecia que alguns paradoxos da Marguerite davam a chave para entrar de um outro jeito no universo da anorexia. Por exemplo, a famosa frase do filme O CAMINHÃO (1977); “Que o mundo rume à sua destruição é a única política possível”. Tinha também o personagem do Vice-cônsul em INDIA SONG, um homem virgem, fisicamente fechado para o Outro e o mundo, e que atira sobre os leprosos que se amontoam às margens do rio Ganges e berra o seu amor pela esposa do Embaixador da França, deflagrando todo o horror que a sociedade colonial tenta esconder de si mesma. O Vice-cônsul também atira nos espelhos. 

Moara Passoni – Eu diria que essa aproximação com a Marguerite Duras me fez ver que a anorexia é um grito, um grito do corpo. É primeiramente um grito contra o mundo opressivo que a invade, mas tão radical que coloca o mundo e o próprio corpo da anoréxica no rumo da autodestruição. E também é um espelho, que mostra para a sociedade o que ela é. Sinto que a anorexia é uma resistência ao padrão de consumismo e acumulação por um lado, e também uma versão intensificada da destruição, alienação e individualismo que o sistema prega. Então é como se você reproduzisse em seu corpo os padrões opressores do nosso mundo contemporâneo.

Mas ÊXTASE é um filme que mergulha e reflete sobre a anorexia longe dos estereótipos. Ele penetra na intimidade mais protegida do protagonista para revelar um universo que é, por um lado, desconhecido e, por outro, estranhamente familiar.  Fazendo esse filme eu tive a clareza de que vivemos em um mundo brutalmente anoréxico. As pessoas pensam que têm que se contentar com a solidão. A anorexia, aqui, é vista como um sintoma do nosso tempo: pensar que não se precisa de nada nem de ninguém para sobreviver.

MA – ÊXTASE é uma fusão intrincada de ficção e documentário. Tenho a impressão de que, sem os recursos da ficção, você teria muita dificuldade em abordar justamente as questões mais centrais que fazem desse filme um documentário. Ou seja: a intimidade, o ponto de vista imersivo e sensível, a experiência da anorexia, que em geral a gente não acessa. A imagem do corpo da anoréxica é muito impactante, e muito sedutora. O que você pensa disso? 

MP – A primeira coisa a dizer sobre isso é que o filme realmente não tem a intenção de se definir entre o documentário e a ficção. Na verdade, acho que o filme se estrutura em pelo menos duas tensões. Uma delas é justamente entre o delírio e a realidade. O filme só existe nessa fronteira: misturar ficção e documentário me permitiu colocar a realidade do corpo anoréxico contra a abstração da anorexia, que muitas vezes é totalmente delirante. A anorexia é essa fronteira. ÊXTASE é uma imersão cinematográfica na história de uma menina que luta intensamente com sua condição no mundo. À medida que entramos no mundo de Clara, o filme pulsa cada vez mais entre sua realidade concreta e sua paixão delirante, sua loucura. E uma dor ausente, que, no entanto, a persegue.

A outra tensão é a pulsação entre controle e desejo. É só quando Clara – para a sorte dela – não dá mais conta de controlar seu desejo, que ela começa a superar sua anorexia.

MA – ÊXTASE, como um filme de “não-ficção”, parece realizar no cinema o que na literatura tem sido chamado de “autoficção”. Pois a história que você conta através da personagem Clara é em grande medida a sua história. Quanto desse filme é autobiográfico?  

MP – Originalmente, concebi o filme inteiramente como resultado de minha própria biografia, mas logo percebi a necessidade de entender o sofrimento da anorexia além de mim e da minha experiência pessoal – e para além do corpo anoréxico espetacularizado. Para mim, era essencial que o filme surgisse de um encontro, livre de preconceitos, com outras mulheres com anorexia, que fosse capaz de transmitir sua experiência. E também revelar algo sobre nossa sociedade. Algo que é muito mais central do que pode parecer à primeira vista. 

Para isso, iniciei um projeto de pesquisa com terapeutas e pacientes nos dois maiores centros de tratamento de anorexia do Brasil. Alguns dos médicos e médicas me apresentaram a pacientes que queriam contar suas histórias e algumas mulheres me deram acesso aos seus diários. Vários trechos desses diários se tornaram cenas do filme.

Uma dessas mulheres, hoje com 47 anos, com anorexia desde os 17, participou ativamente da produção do roteiro. Juntas, decidimos que era importante filmar o corpo anoréxico; que era preciso contrastar o êxtase abstrato, estético e delirante da anorexia com a realidade de um corpo emagrecido até o limite da sobrevivência. Foi também por causa dela que surgiu a ideia de Clara ser arquiteta. Esse encontro – com essas mulheres e também com minhas colaboradoras do filme – me permitiu ter um distanciamento necessário em relação à minha própria experiência de anorexia. E essa distância foi crucial para me permitir fazer o filme.

Mas o filme é todo construído em torno de uma questão que é minha, e como uma autobiografia a personagem principal é sujeito e objeto do discurso. Só que, mais que apresentar a personagem, o filme mostra o percurso de uma pergunta, como o diário de uma investigação: como a pergunta “que personagem é essa?” se transformou ao longo da minha vida.  

MA – Além dos diários dessas mulheres, você mergulhou também nos seus próprios diários. Como foi isso? Que importância teve esse trabalho de reencontrar o tempo e como você converteu esses rastros escritos em imagem e som? 

MP – Reler meus diários trouxe à tona novamente todas aquelas sensações e sentimentos que eu achava que estavam perdidos para sempre. A anorexia estava de volta, vibrando dentro de mim até os ossos. A mesma dor, o mesmo desespero. Essa sensação física me fez estremecer, e me vi revivendo a memória dos lugares em que me encerrei, onde me isolei, rompi, na medida do possível, todo contato material com o mundo. 

Neste filme, tento explorar essa experiência incomunicável de estar na pele de alguém que se recusa a comer. Por que eu tinha feito isso? Foi o que as pessoas me perguntaram na época e eu me pergunto hoje, embora na época a pergunta não fizesse o menor sentido, tão claro que tudo parecia para mim. Há uma certa incompreensão que sela o claustro que a anoréxica cria para si mesma.

O filme é um processo de investigação do corpo, da minha memória do meu corpo, um desvelamento das camadas enterradas da subjetividade, um reencontro com a experiência da anorexia através dos meus diários e de outras mulheres. Essa investigação dos mundos internos e das cicatrizes do sofrimento é feita em oposição ao espetáculo grotesco que nossa sociedade da imagem tende a criar em torno dos corpos magros das meninas anoréxicas.

O que o espectador vê no filme é fruto da minha própria reconexão com esses diários e, ao mesmo tempo, do meu reencontro com os lugares em que vivi aquela dor e me submeti a uma rotina ritualizada, uma obsessão por pesar e medir, tanto a mim mesma quanto aquilo que eu comia. Ou seja, toda uma vida de escassez e mutilação autoimpostas. 

Porque esses diários são cadernos que contêm anotações íntimas, feitas de mim para mim mesma, e que abrangem todo o período em que eu vivia a anorexia. Eles contêm escritos, tentativas de autorretratos, registros de minhas mudanças de peso corporal. São os mapas mais íntimos, e através deles pude tecer uma narrativa do emagrecimento gradual da Clara.

MA – Há um tipo de revisita de uma experiência inacessível que faz lembrar o Alain Resnais de Noite e Neblina. Ele filmou lugares de extremo sofrimento, os campos de concentração, sem ter como mostrar o que foi vivido ali. Então é através da palavra falada que ele chega nessa memória, ele faz ela sangrar de volta à vista nas paredes, nos objetos e nas paisagens. E há o trabalho com a memória que o Chris Marker faz em Sem Sol e Carta da Sibéria.

MP – Sim. Ao longo do processo do filme, outras referências ganharam uma importância enorme. Por exemplo, assim como o cotidiano ritualizado da anoréxica, que submete cada ação às mais estritas regras, as imagens do mundo delirante/imaginário da personagem são construídas com rigor matemático. Como em O Eclipse e A Noite, de Michelangelo Antonioni, também aqui as imagens objetivas, enunciadoras, definidas por um enquadramento geométrico de elementos e objetos só admitem relações de medida e distância (estou falando das imagens dos espaços inanimados e das coisas ).

Do Robert Bresson de Diário de um Padre e O Julgamento de Joana D’Arc e da própria Marguerite Duras, aprendi as possibilidades do som e da voz no cinema. Com Carl Dreyer em A Paixão de Joana d’Arc, aprendi a paixão e a intimidade com o personagem principal. Com Buñuel e David Lynch, aprendi sobre o sonho e o delírio nos filmes.

MA – Vendo o filme hoje, tenho essa forte impressão de que a anorexia aparece como uma experiência limite do corpo, que envolve o risco de vida e ao mesmo tempo explode uma densidade de questões sobre o nosso tempo, então me faz pensar no universo estético e político da performance. Como quando a Marina Abramovic segura um arco-e-flecha armado com uma flecha apontada para o próprio peito e mantém essa tensão até o limite da exaustão. Ou artistas que se ferem, se mutilam, como um modo de se apropriar do próprio corpo livre das regras sociais. Por isso talvez o título do filme seja tão perturbador. De que êxtase o filme fala? 

MP – Em uma conversa que eu tive com o [autor cubano] Edmundo Desnoes sobre dramaturgia cinematográfica, ele me disse que o cinema para ele é sempre uma investigação do corpo. Ele compartilhou comigo que uma de suas sobrinhas sofria de anorexia, e que na visão dele a “Anorexia cresce na forma de um êxtase, o êxtase de parar o tempo através do sofrimento”. Parar o tempo. Essas palavras me tocaram profundamente. O êxtase é esse limite, e se a anoréxica alcançar o êxtase ela simplesmente morre. Mas ela se mantém nesse “paroxismo cotidiano”, pra usar outra expressão da Marguerite Duras. Então tem essa relação muito forte com a performance, claro. 

Mas tem outro sentido também. No êxtase místico, as santas se abriam ao outro – Deus, Jesus Cristo. Na anorexia, ela está completamente involucrada em seu próprio narcisismo, fechada em si mesma. E por isso mesmo que eu vejo que o meu jeito de sair da anorexia foi abrir-me ao outro. 

Além disso, tem uma dimensão que é o reverso da estética. É o fato de que o tema é muito atual. A anorexia teve um boom durante a pandemia, e é algo que não é muito falado. Eu nunca fiquei satisfeita com os documentários que vi sobre anorexia. As informações não estão organizadas e acessíveis para um público mais amplo. Então eu procurei falar disso, da perspectiva mais honesta, talvez a única que eu conseguiria sustentar, que é a partir da minha experiência, mas tentando entender essas conexões com o mundo contemporâneo.

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Ficha técnica de Êxtase

Diretora, Roteirista, Produtora: Moara Passoni

Produtora: Petra Costa

Co-Produtora: Sara Dosa

Produtoras Executivas: Paula Pripas, Leda Stopazzoli, Emilia Ramos

Produtora Associada: Mariana Oliva

Editor: Fernando Epstein

Co-roteiristas e pesquisadores: Maurício Ayer, Daniela Capelato, Henrique P. Xavier, Martha Kiss Perrone

Diretora de Fotografia: Janice D’Avila

Música Original: Ismael Pinkler

Faixa sonora: David Lynch e Lykke Li

Desenho de Som: Cecile Chagnaud

Mixagem: Edson Secco

Produtora: Busca Vida Filmes

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