Manifesto pelo Partido da Cultura

Numa explosão gozosa, o novo livro de Renato Gonda propõe a criação do PACU, um movimento pela cultura única e múltipla – e libertação de consciências-corpos. Em poesia gráfica, aponta: “Acultura COMbate&Abate/ todASditaDURAS!”

Imagem: Pedro Neves
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Por Eleilson Leite, na coluna Literatura dos Arrabaldes

O poeta e artista visual Renato Gonda, radicado há décadas no Embu das Artes, acaba de tirar do forno o livro PACU – Manifesto pelo Partido da Cultura, obra independente que tem desenhos de Guto Miranda e para a qual fiz o prefácio que serviu de chassi ao texto que que aqui está publicado. PACU também está em AXÉ&ATÉ, obra coletiva que reúne 53 manifestos (todos com 2020 caracteres) escritos por poetas do Embu das Artes em um projeto realizado durante a pandemia do coronavírus e que está sendo lançado simultaneamente com este livro e outros nove títulos do autor. Gonda abriu as gavetas, trazendo a público uma produção literária e visual inédita e vigorosa que há muito pedia para ser exposta. E tinha que ser de uma vez só como uma explosão gozosa pós-pandêmica.

A capa do LP Todos os olhos, de Tom Zé, lançado há 50 anos, é toda preenchida com uma foto de um ânus no qual está encaixado uma bola de gude dando assim a impressão de ser um olho. E, dessa forma, aquela arte foi entendida por décadas. Não houvesse essa percepção, jamais teria sido liberada pela censura. O segredo só foi revelado anos mais tarde pelo músico David Byrne que, ao lançar o LP nos Estados Unidos no final do século passado, escreveu essa história na contracapa. O episódio, porém, é controverso.

O que se sabe é que o poeta e publicitário Decio Pignatari (1927 – 2012) é quem deu a ideia. “Se são todos os olhos, tem de incluir o olho do cu”, teria dito ele. Um fotógrafo da agência de Décio se prontificou a fazer a tal foto contando com a ajuda voluntária de sua namorada. Depois de muitas tentativas sem êxito, o casal teve a ideia de colocar a bola de gude entre os lábios da moça e assim ficou. Seja como for, o olho do cu se imortalizou no magnífico álbum do cantor baiano.

Relembro essa história para ressaltar o argumento do Pignatari que atribui metaforicamente ao cu uma capacidade de visão. Renato Gonda fala dessa atribuição pouco reconhecida de observar o mundo a partir do cu como centro das coisas, pois, no universo da cultura, alguém já falou, o centro está em toda parte. Que seja outorgado ao cu essa prerrogativa. O ânus tem uma condição privilegiada, pois não é meio, ele é fim, assim como a Cultura. E Renato refuta qualquer utilitarismo da cultura em seu manifesto PACU que defende o Partido da Cultura sem medo de explicitar o uso das letras C e U na sigla de sua agremiação que também faz uma homenagem a um peixe de rio tão popular no Brasil.

Gonda quer um partido que defenda a riqueza cultural dos povos. “A cultura é única e múltipla” defende o poeta, convocando em aliteração os partidários da cultura: “estejamos atentos, atuais e atuantes!” Na canção de Tom Zé que dá título ao LP citado, ele diz: “ De vez em quando/ todos os olhos se voltam para mim/ Mas eu sou inocente”. A letra se justifica pelo clima de perseguição política da época em que foi composta. Já Emicida, no rap quase homônimo Todos os olhos em nóis, fala da perseguição que é histórica e permanente para os negros e faz um alerta: “existem mil formas de prisão/ Mas só uma de liberdade”.

Renato se soma aos que são perseguidos estruturalmente ou conjunturalmente no Pretexto: “Quem cala & emudece a fala/ ñ somente consente/mas é conivente & comparsa”. Formulação poética que remete a Gilberto Gil: “quem rejeita + aceita = receita”. Um verso que tem muito a ver com o tempo em que vivemos. Tempo de eleição presidencial, contextualiza Gonda: “Viva o voto & viva o veto (….)/ Votemos e vetemos (sempre) os Retrocessos”. E a maioria votou pelo veto ao governo atual elegendo Lula presidente, cuja vitória possibilitará que a Cultura volte ao centro das políticas públicas.

Já no texto do manifesto propriamente dito, com o auxílio muito luxuoso do artista Augusto Miranda, Renato nos dá a narrativa da emancipação pela cultura. Ele parafraseia o Manifesto Comunista, de 1848, de Karl Marx (1818 – 1883) e Friedrich Engels (1820 – 1895): “Culturas de DtoDAS CULTURAS/uNIvos!” E também o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade (1890 – 1954) escrito 80 anos depois: “SÓaCULTURAnosUNE/ (&nos REune)/ SOCIALmente/ ÉCO(nomica)mente/ PHILO(sophica)mente”.

Aqui e em todo o texto fica evidente a forma como o autor lida com a morfologia das palavras criando silogismos e enfatizando graficamente por meio de poética visual o que ele quer transmitir: “Acultura COMbate&Abate/ todASditaDURAS!”.

O chamado do Manifesto é para a tomada do poder para libertar consciências-corpos. Para isso ele defende o Partido da Cultura como um movimento: “&Qestejamos NOcomando/ Qelejamos Acultura/ nossaDOUTRINA/ -&nosELEJAMOS!”. Podemos dizer que O PACU, já teve candidatos eleitos e eleitas em 2022. Terá seus representantes na Câmara Federal e em diversas Assembleias Legislativas: mulheres negras, indígenas, trans do campo progressista levantarão suas vozes “CONTRA asDEScomposTURAS/ asEScravaTURAS/asDESavenTURAS”. A cantora Margareth Menezes, se soma agora como ministra da Cultura.

Para todas as torturas, o remédio é a CULTURA, pois a Cultura, sendo política pública, “éRE-PÚBLICA”, ensina o multiartista.

Como todo bom Manifesto, PACU é ancorado numa narrativa de anunciação que eleva a estima dos que nele se identificam. Renato tem lugar de fala por meio do qual faz seu chamado pandêmico: “umaCONTRAdiçãoELÍPTICA/ numaTRAdiçãoPERFÉRICA”. O texto tem também um componente épico que coloca o leitor num estado de esperança ativa: “Acultura eVERTICaliza/ noHORIZONTE/ &nasc&REnas&sePÕE/ aCADAdia…”

PACU é um Manifesto para o século XXI. Tributário do Comunista, do século XIX e do Antropófago, do século passado, o poema de Gonda na sua forma e conteúdo, nos remete também aos manifestos do poeta Roberto Piva (1937 – 2010) publicados na década de 1980. Uma inspiração que reconheço no Manifesto Utópico-ecológico em defesa da poesia & do delírio que logo no seu primeiro parágrafo diz ao que veio: “Eu defendo o direito de todo ser Humano ao Pão & à Poesia”. Renato Gonda, com PACU estabelece um diálogo com outro manifesto de Piva chamado O século XXI me dará razão, porém, em um diapasão distinto, dado o niilismo que permeia aquele texto que antecipa muito do tempo em que vivemos: “suas fardas vitoriosas, seus cassetetes eletrônicos, sua gripe espanhola, sua ordem unidade, sua epidemia suicida (…)”.

Renato tem um anúncio libertário pela Cultura que está em todos nós. Estando em todos nós, ela está em todo lugar: doCENTROdaTERRA/ aoCUdoMUNDO!. PACU é o Manifesto do Cu do Mundo! Gonda ecoa Marx, Oswald,Pignatari, Piva, Tom Zé, Gil e Emicida. Está lançado aqui o manifesto do levante da cultura. E o chamado vem do Embu das Artes, território do autor, de Solano Trindade e toda sua linhagem, dos poetas da EMBUscadasARTES. “&éA-E-I O-U… VOTEnoPACU!”. Naquela cidade da Grande São Paulo, às margens da BR116, Gonda lançará PACU e outros 10 livros de sua autoria. O evento acontecerá neste sábado (17/12) a partir das 16h no centro cultural que fica na Praça Central onde rola uma antiga e agitada feira de artes.

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