Tortura: A votação

Em um conto de A cicatriz, livro recém-lançado de B. Kucinski, a atmosfera dos porões da ditadura. Os oficiais quebraram o cara. Ele nada delatou. Cederá alguma hora? Vale a pena mantê-lo vivo? Impasse será resolvido por uma estranha democracia

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A cicatriz e outras histórias – (quase) todos os contos de B. Kucinski. Publicado pela editora Alameda, pode ser comprado aqui. Neste livro, a trajetória contistica do premiado escritor, que estreou na ficção em 2011 e foi finalista dos prêmios Portugal Telecom e São Paulo de Literatura já no ano seguinte e, também, vencedor do Prêmio Jabuti em 1997.

A sala não tem janelas. É como um depósito. Entra-se por uma aber­tura tosca na parede do corredor. Uma lâmpada pende do teto por um fio descascado. Está acesa. O ar está viciado e fede cigarro. Sobre uma mesinha há copos, uma garrafa de pinga, outra de água mineral e um cinzeiro repleto. Numa pia dos fundos, um negro corpulento ensaboa as mãos. Junto à parede, num sofá desconjuntado, um mulato careca e gordo esparrama-se e fuma. Seu rosto é bexiguento, suas olheiras sugerem noite em claro. Numa cadeira, ao lado da mesinha, um magricela de cabelos escorridos e amarelados está sentado de pernas estiradas e abertas. Segura um copo com pinga pela metade. Também parece cansado. Os três estão de jeans e camisas amarrotadas.

— O chefe mandou limpar a meleca toda, diz o gordo em voz alta, dirigindo-se ao negro que lava as mãos sem lhe voltar o olhar.

— Acabamos de limpar, responde o negro.

— E os documentos dele, a papelada?

— Dei tudo pro chefe.

— Estou pregado, diz o magricela loiro.

— E eu, que trabalhei o cara a noite inteira, diz o gordo. Nesse momento, surge na abertura da parede um militar com a insíg­nia de coronel, alto, magro e ligeiramente estrábico.

— Mas trabalhou errado! – Diz o militar.

— Levamos um ano para identificar o cara e descobrir o endereço da família e na primeira noite vocês põem tudo a perder! E sem arrancar uma palavra!

— Que é isso, chefe!? O cara é foda! Tanto assim que deu a zebra que deu.

— Deu por culpa de vocês! Toupeiras! Quantas vezes expliquei que sem intervalo pode dar gangrena?!

— Mas o doutor liberou, disse que podia continuar.

— É outro incompetente. E relapso. Quando deu merda ele nem estava mais aqui.

Atrás do oficial surge um sargento:

— Coronel, tem uma pessoa no telefone querendo falar com o res­ponsável, é do hospital.

— O que ele quer?

— Diz que precisa de uma autorização.

— Deixa que eu cuido disso. O oficial sai. Passados cinco minutos, retorna, pensativo.

— O que foi, chefe? Pergunta o gordo.

— Precisa amputar a perna direita. A família têm que autorizar por­que ele está inconsciente. Deu gangrena, dizem que se não amputar não dura dois dias.

— O que o senhor acha, chefe?

— Vocês é que fizeram a cagada, vocês é que tem que achar. Se ele voltar, vocês garantem que fala?

Ninguém responde. O coronel repete:

— Eu fiz uma pergunta, quero que cada um de vocês responda.

O coronel fita o mulato careca que está esparramado no sofá:

— Você, Baiano, você primeiro, o que você acha?

— Acho que não adianta, depois de tudo o que fizemos, a noite intei­ra pendurado, não é agora que o filho da puta vai falar.

— E você, Tição, o que você acha? O negro corpulento terminou de lavar as mãos e está se enxugando numa toalha encardida, pendurada num prego.

— Talvez sem uma perna ele mude a ideia de tudo.

— E você, Picolé?

— Sei não, diz o magricela. O cara é durão mesmo.

— O Manga também trabalhou ele? Pergunta o coronel.

— Também.

— Veja se ele ainda está aí.

O magricela levanta-se de má vontade, larga o copo de cachaça na mesinha e sai pelo corredor. Em um minuto, ele volta com um rapaz mo­reno, de cabelo crespo, alto e encorpado, de torso nu e trajando calça de ginástica e tênis. Está suado e com uma toalha enrolada no pescoço.

— O que você acha, Manga?

— O que eu acho do quê?

— Do cara dessa noite, a merda que deu.

— Mais merda? Não tô sabendo de nada.

— Deu gangrena, o hospital diz que precisa amputar. Ou cortam fora a perna direita ou ele já era. Você acha que se pendurar de novo ele fala?

— Duvido, o cara é fita ruim, é mula.

O coronel medita um pouco. Depois diz, em tom resoluto:

— Três a um. Então, está decidido. Sargento, ligue de volta pro hospi­tal e diga que nem o nome dele nós sabemos, muito menos quem são os pais.

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2 comentários para "Tortura: A votação"

  1. Eduardo disse:

    Muito bom! Postem mais textos literários!

  2. Eduardo disse:

    Muito bom! Postei mais textos literários!

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