Poemas para suportar a dor da morte

Duas poetas da periferia, de uma geração anterior à explosão dos saraus. Pela filosofia ou memória, entre o caminhar e o cambalear, um acerto de contas com o passado e a morte — não como epitáfio, mas convite a enfrentar abismos fúnebres

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Compartilho neste texto a leitura dos livros de poesia Varal1, de Maria Vilani (2012, Editora da gente) e Rua de Trás2, de Sonia Regina Bischain (2009, Poesia na Brasa). As autoras pertencem a uma geração anterior à da maioria dos poetas que surgiram na cena literária periférica marcada pelos saraus no início do século XXI. Ambas viveram a juventude na década de 1970, no auge da ditadura militar. Vilani migrou para São Paulo naquela época, vindo da capital cearense e se estabeleceu no Grajaú, na periferia da zona sul. Já Sonia, nasceu na Brasilândia, bairro do extremo da zona norte em que mora até hoje. Os livros aqui comentados são as obras de estreia das escritoras, mas Vilani teve dois livros publicados na década de 1990 sob o pseudônimo de Vitória Regia. Sonia publicou mais quatro livros e Vilani outros três.

Os livros trazem, em comum, uma visão do passado em tom de recordação numa abordagem pessoal e, portanto, lírica, em que pese o viés mais filosófico de Vilani frente a um registro memorialístico de Sonia. Nessa busca, o tema da morte aparece como um aspecto relevante e que aproxima as obras. Até pelo fato de serem escritoras com idade mais avançada, é compreensível que o tema tenha forte presença, uma vez que a longa trajetória de vida as expuseram a diferentes situações de morte, incluindo de pai e mãe, conforme o caso de uma e de outra. Mas há registros de morte em decorrência de pandemias como a de meningite nos anos 1970 (que o governo tentou minimizar) ou de doenças como a AIDS que surgiu da década de 80, cujo desconhecimento, na época, gerou uma vasta boataria que estigmatizou seus portadores. O genocídio dos povos indígenas é mencionado, assim como as mortes naturais de pessoas queridas, sejam elas amigos, parentes, ou uma cantora famosa. A morte habita a poesia de Vilani e Sonia, mas isso não faz do livro delas um epitáfio. Não são obras que, lidas nos tempos atuais, nos arrastam para um abismo fúnebre. Diferente disso, os poemas das autoras, no contexto das obras, nos ajudam a suportar o genocídio com o qual passamos a conviver em virtude da pandemia do coronavírus.

Varal

O livro de Maria Vilani encerra um jejum de 12 anos da autora. Seu último livro, até então, foi uma obra infantil, O Reino de Roselândia, publicado em 1998. Antes dessa publicação havia apenas o livro de estreia: Cinco contos sem desconto e de quebra, dois poemas, lançado em 1991. Ambas as obras, porém, foram assinadas com o pseudônimo de Vitória Régia. Varal, portanto, acaba sendo o primeiro livro assinado, efetivamente, por Maria Vilani. Com 78 poemas, este livro faz um balanço da produção poética da autora que começou na década de 1980.

Varal tem um tom predominantemente reflexivo com poemas de elevadas formulações filosóficas, lastreado que é pela formação da autora, que tem graduação em filosofia e inúmeras especializações nesse campo temático, além de promover cursos e encontros filosóficos na ONG CAPS – Centro de Arte e promoção Social que criou em 1991. Identifiquei 53 poemas com traço reflexivo, o que corresponde a dois terços do livro. Isso não significa que o restante não tenha essa característica, por certo tem, pois, a poesia de Vilani é toda ela pensante, mesmo quando ela explora uma composição alegórica, aparentemente descomprometida de propósitos filosóficos.

Dentre os poemas com maior densidade de reflexão, 24 são acentuadamente metafísicos; outros 7 são de recordação; 12 tratam do tema da morte e 10 discorrem sobre a dor e a delícia de ser poeta, com ênfase na dor, invariavelmente. Quase todos os poemas são líricos, endossando a formulação de Anatol Rosenfeld: “expressão de emoções e disposições psíquicas, muitas vezes de concepções, reflexões e visões enquanto intensamente vividas e experimentadas”3.

Os demais poemas abordam a afirmação da mulher, discorrem sobre sexo, a Amazônia, a agitação urbana e o Nordeste de onde a autora veio. Em apenas um ela cita a periferia, mas para enaltecer o MOCAP – Movimento pela cidadania artística da periferia. Seu bairro, o Grajaú, ao qual costuma se referir como “meu país”, não aparece no livro, pelo menos diretamente. Seis poemas são alegóricos e outros 9 fogem à minha capacidade de classificação. Temos, portanto, uma obra de peso que corresponde a envergadura da autora que o escreveu. Maria Vilani, hoje com 70 anos de idade, tem muita experiência de vida, uma carreira dedicada ao magistério, intensa vivência espiritual, dedicação à família, engajamento político e cultural e vasta formação acadêmica. Varal faz justiça aessa bagagem e revela uma autora em toda a sua complexidade de pensamento e sentimentos.

Os poemas de reflexão são profundamente introspectivos como em Autoretrato, um texto coerente com o título no qual a poeta se mostra em três fases como se fosse a lua. As três estrofes começam com o verso que afirma: “sou assim”. No primeiro ser inteira e ser metade não parece ser uma oposição. Fica à vontade em ambas as situações em face de “qualquer besteira”. Na segunda estrofe, ressalta a fratura da alma: “bipartida em mim” e diz que se fragmenta “por qualquer desilusão”. Por fim, se diz “fragmentos de mim” que se juntam “por qualquer ilusão”. Na mesma linha é Sem perspectiva no quala lua está para seu olhar como o sol para seu mundo. Fala de “portas de entrada sem saídas e portas de saídas, sem entradas”.

Se sair não for possível, ela não entra; se ao sair não puder entrar, não sai. A impossibilidade do ir e vir configura uma situação em que “não me cabe/ não me acho/ não me sinto”.

Essa busca interior da autora, por vezes é perturbadora, como revela um conjunto de poemas como Indagações, uma sequência frenética de perguntas sobre viver e morrer; ser ou não ser; lucidez ou embriaguez; caminhar e cambalear; da vida e da morte. Já Rejeição é um poema de busca pelo prumo: “deixe-me só/preciso encontrar-me/ nesta estrada deserta/desertando da solidão”. Um traço recorrente da autora, o sofrimento que incide sobre o corpo, aparece: “talvez/ impulsionando o cérebro/ convulsionando o coração/ no terror de uma grande paixão”. Apenas uma pomba, por sua vez, é uma indagação sobre seu lugar no mundo: “sou terra/ Sou pedra/ mas um dia serei etérea”. A metáfora de voar, outra imagem recorrente, surge no poema: “eu queria/ ser apenas uma pomba/ sujar de barro os pés/ e alçar o infinito”. Por fim, Ah, se eu fosse etérea sintetiza a insustentável leveza do ser.

Outro conjunto de poemas de introspecção tem um traço delirante e soturno como Esquizofrenia: “pesa-me a alma, dói-me o corpo/arde-me em febre todo o ser/ invade-me uma tonelada de angústia/ tripudia-me o ânimo, um algoz”. Em Porão expressa bem esse universo metafísico: “preciso sair do porão da inexistência/ sair da realidade mística/ penetrar no mundo dos sonhos”… Anseios de liberdade também é uma construção no plano dos sonhos: “sonhei um dia ser livre”. Entendeu, porém, que a liberdade sonhada, “era a cadeia em que dantes vivia!”. No final, conclui que “só somos realmente livres/ quando obedecemos/ às leis da vida”. Em Tempo descontente há o impasse do querer e não poder: “voar e faltar asas/ beber e faltar sede/comer e faltar fome” Na estrofe seguinte: “tudo ter e não ter nada/ ter alma estagnada”.

A imagem do abismo, das profundezas, o imensurável é frequente na poesia de Vilani, especialmente nos poemas que seguem. Imensurável, uma divagação após despertar de uma noite insone: “dei as mãos ao tempo/ caminhamos, cavalgamos/ nadamos, voamos…”. E segue: “inclemente/nas asas da eternidade/partiu desvairado rumo/ ao palácio assombrado do imensurável”. Em Cosmo temos um poema evasivo, mas muito representativo do estilo da escritora: “era um gérmen errante/ no espaço terráqueo/ou numa galáxia distante…”, “e no espaço imensurável da vida/ tento encontrar razão de viver/ e na razão não encontro razão”. Faz, uma vez mais, uma reflexão sobre a vida em conflito com o passado: “e nos bosques floridos da juventude/escondi-me e protelei a partida….”.

Outra recorrência nos poemas reflexivos da autora é a questão do tempo. Essa temática aparece em vários textos, mas em cinco deles tem uma centralidade. Em Tempo biológico expressa a negação do tempo medido pelo relógio em face do tempo do corpo e da natureza. Declara: “eu sonho com o dia/em que eu possa ser como o tempo/escrava e senhora de mim”.

Em Fragmentos de uma vida, temos um poema curto e denso que trata do tempo como metáfora de prisão e se reporta ao passado: “causa do presente/perdida no passado/ prisioneira/ do maior cárcere:/ o tempo”. Finitude é uma reflexão angustiada sobre o tempo que é expresso como “carrasco! Corre mais do que eu”. No final, chega a uma conclusão etérea, digamos assim: “Na infinitude voam pássaros/felizes a cantar a sua eternidade/na finitude voam sombras, morcegos/carcaças dos desenganos”.

Já em O lago e o viajante, fazendo uso da metáfora do lago em meio à floresta, novamente faz uma reflexão sobre o tempo: “o lago mergulhou no tempo/sorveu a chuva/ignorou as aves e os ventos/ e tal qual uma ampulheta/ resignou-se a contar o tempo/ e quando o tempo/ de vento em vento passou/ o viajante voltou”. Por fim, no poema chamado Tempo, notamos que o tempo é uma instância na qual se vive a dualidade entre o bem e o mal: “o tempo que me viu sonhar/ é o mesmo que me viu acordar/para uma realidade cheia de espinhos”. E assim ela segue com o binarismo: lutar/desfalecer. No final vem o abismo do nada: “o tempo que me viu/ em busca do nada/ é o mesmo que me vê agora/ a dizer que o nada não existe”. Mas no tempo em que ela se perde, é também o que ajuda a se encontrar.

Dentre os poemas de recordação, a maioria tem um traço comum que é uma relação conflituosa com o passado relacionado a um amor que ficou na juventude. Em Varal, poema que dá título à obra, temos um processo de introspecção profundo: “abri a porta do meu eu/penetrei no âmago do meu ser”. A poeta identificou reminiscências do passado com roupas velhas das quais ela se livra, jogando-as “no lixo do presente”. Justifica tal ato ao fato de que aquelas roupas são incapazes de lhe trazer o passado de volta. E se indaga: “para que vestir as roupas/ que me fazem recordá-lo?”. A poeta parece se referir ao passado como algo indesejável, não por ser traumático, mas pelo contrário. Parece ser algo bom, associado às “relíquias”, mas que, justamente por isso, é um sentimento que refuta, posto que é inalcançável. Remeto ao seu conterrâneo Belchior: “o passado é uma roupa que não nos serve mais” (Velha roupa colorida). Mas diferente do cantor, que faz um movimento de recusa e superação: “no presente, a mente e o corpo é diferente”, a poeta demonstra resignação.

Guerra íntima, poema virtuoso, segue a mesma linha ao abordar o sentimento dilacerante da saudade incontrolável. Confusão de ideias remexe mais uma vez o passado num poema, aparentemente, como sugere o título, evasivo. Mas no final, o passado crava uma estaca: “roupas amassadas/ malas desarrumadas/ da minha mocidade/ meu coração em cinzas/ a remoer um passado/fardo do desalento”. Marcas da saudade é mais explícito ao recordar-se de um amor da adolescência: “recordo nossa adolescência/ quando de mãos dadas/ caminhávamos/ nas brancas areias/ dos verdes mares/ da nossa terra natal”, única referência no livro ao Ceará, ainda assim, de forma indireta. Por fim, em Saudade, discorre sobre a dispersão do dia. Nada lhe prende a atenção. Descobre que está com saudade do poeta Ronaldo Vilela, mas não sabe se o sentimento é sobre o poeta ou sobre o amigo.

Os poemas que tratam da morte, na maioria, abordam o tema como um dilema existencial. Em Falso mundo, ela faz uma reflexão sobre a morte que levou um ente querido: “depois você partiu/ a dor assumiu/o seu lugar/ na minha vida”. Parece desejar a morte: “quando a morte/arrebatar-me deste lugar/de pesadelos, mentiras/ hipocrisia e ilusão”. Ela se refere à vida por mais duas vezes com esse conjunto pesado de substantivos. Depois acrescenta uma culpa, expressa na metáfora da pena: “espere-me/ irei quando for possível/ quando terminar/ a minha pena”. Expressa um certo conformismo e anuncia que os que não aceitam a morte é porque “o medo de partir/dilacera os corações/ que amam viver/ envoltos em/ pesadelos/mentiras/hipocrisia/ e ilusão”. Em Plexo o tema da morte aparece de forma ainda mais abstrata: “a vida sangra no festim dos anos/ na barbárie complexa do plexo maior/a doença arrasta ao abismo em lodo/ atira do despenhadeiro o hospedeiro”.

Crepúsculo da vida é um poema curto sobre a iminência da morte desejando chegar ao crepúsculo sem sentir saudades da aurora da vida. Terminal da vida fala da angústia que sentirá quando sua hora chegar: “quanta lágrima/ represada por falsos sorrisos/ no terminal da vida”. Em Alienam-nos, a autora defende a necessidade de se viver o sofrimento, o luto, o pranto: “não demonstrando sofrimento, sofremos mais”. Em Alucinação discorre sobre a vida e a morte, especulando sobre uma existência em outra dimensão: “o arcabouço/ túmulo vazio/ não quero ir”. Almeja uma outra dimensão: “onde está a lógica de viver/ se depois tudo vamos perder/ e do outro lado tudo vamos viver?”. E nega o mundo em que vive: “quanta miséria/ num só mundo/ não quero passar por aqui/ mais de uma vez”.

Em Necrotério ela se volta contra os seres, ditos racionais, que matam os animais para se alimentar e saciar o paladar, transformando a terra em uma “verdadeira carnificina/ e os nossos corpos/ em cemitérios ambulantes”. Conclui: “estamos na era da animalidade/ revestida/ de película de racionalidade”. Em Ladeira, fala do encanto da vida e o desencanto da morte. Um tanto retórico: “ao nascer ganha-se a certeza de morrer/morrer não é empecilho à felicidade/ empecilho é viver sem felicidade”. Em Júbilo da razão faz um canto para morte, entendido como o ápice da razão, de existir.

A autora também, a exemplo de Sonia Bischain, trata da morte referindo-se a pessoas específicas. O obituário da autora, porém, é menor: tem apenas três nomes. Duas delas dão título aos poemas. Em Clara Nunes, ela faz uma homenagem póstuma à cantora mineira morta em 1980. Termina com uma paráfrase do verso de uma famosa canção do repertório da intérprete: “envio-te os meus pensamentos/ num soluço de dor”. No poema Pena fala da morte de uma pessoa identificada como referido nome. A partir desse acontecimento, faz uma reflexão que merece uma lápide: “E nós continuamos a caminhada/ caminhando, fazemos caminhos/ abrindo uma estrada em busca da vida/sulcando a terra, aguardando a morte”. Por fim, em Carta para o além, Vilani faz uma declaração de amor e saudade ao pai que morreu quando ela tinha apenas 8 anos. Ela escreveu o poema quando tinha 38, ou seja, 1988, conforme se deduz pelo que diz o primeiro verso: “hoje está fazendo trinta anos que você partiu”.

Nos textos sobre a condição de ser poeta, a autora condensa os temas aqui tratados: a vida, as recordações e a morte em um tom predominantemente melancólico. Em Sem destino apresenta aderiva de um poeta errante: “nas sombras as noites vazias/sigo vagando qual fantasma/em busca da vida!/ inconformada, seguindo eu vou”. No poema Refúgio compõe uma narrativa que se passa, mais uma vez na rua e na noite: “sai madrugada afora/ em busca de refúgio”.Já em Apenas escombro, o sentido de ser poeta é apresentado em três atos que correspondem ao ciclo da vida: nasce o poeta, foge o poeta, morre o poeta. Ao morrer o poeta, renasce o homem: “apenas escombro”. Em A concha e o poeta associa o poeta à concha de dentro da qual sai a pérola, cuja extração é dolorosa para a concha. No final, faz uso da metáfora do parto associado à concha: “o poeta é como uma mulher em trabalho de parto/ o obstetra é a inspiração que ao partejá-la/ extrai o poema; verdadeira pérola”. Por fim, no texto Ser poeta, a autora sintetiza: “Ser poeta é articular opostos: sonhar com flores/ e caminhar sobre espinhos (…) estar só na multidão”. E conclui: “ser poeta é ser tudo/ e não ser nada”.

Rua de trás

O livro de Regina Bischain tem 36 poemas com forte carga emocional, justificando o tom lírico de sua escrita, pois se ancora, predominantemente, no plano da recordação. Emil Staiger enfatiza a dimensão da busca do passado como uma forma fundamental da composição lírica: “o íntimo como algo recordado que não está no momento diante dos olhos”4. Essa característica da composição estética da autora ficará ainda mais evidente nas suas obras posteriores, curiosamente, todas em prosa (romances e contos). Diferente de Vilani, os poemas de Bischain nos conduzem para o lugar de onde ela mira o mundo: o bairro da Brasillândia e sua, ainda vasta, Serra da Cantareira que contorna quase toda a Zona Norte de São Paulo. Interessante observar que o título do livro aparece em três poemas: Rua de trás; Como era bela a rua de trás e A rua de frente e a rua de trás.

Em busca de estruturas, como é o procedimento de leitura que faço, nem sempre bem-visto pelos estudiosos da literatura, identifiquei quatro grupos temáticos no livro em função de certas recorrências. Um é o que articula as recordações com 5 poemas; como um subproduto deste primeiro, tem os que tratam da morte que somam 7 textos; depois vem os 8 poemas de protesto social. Por fim, um grupo muito instigante que reúne 7 poemas cujo tema é o sonho, um elemento narrativo que permanecerá na obra da autora, tendo sido título de seu último livro: Olhares que devoram sonhos, de 2019 que foi objeto de análise nesta coluna.

Já no primeiro poema do livro, Aqui começo, a autora apresenta o objetivo de que o livro seja um guardião da memória de um povo e de um lugar: “contar algumas histórias/ antes que se apague/ toda a memória”. Em À quem a história lembrará ela fala do sofrimento do trabalhador. Um clamor de luta: “tuas mãos fazem tua comida/ tua morada e tuas vestes/és o herói que a história esqueceu/ és o sinal de um futuro sem fel”. Datado pelo ano de 1975 (quando a autora tinha 18 anos), o poema parece se referir a um militante da luta armada que foi preso e torturado: “vai, retorna a tua casa/ na tua carne machucada/ na tua voz quase apagada/ está a força maior que o fuzil”.

Já em Duas mulheres, ela muda o contexto, reconstituindo histórias de vida. O poema que tem um gênero mais voltado para o épico, pois a poeta assume o lugar da narradora, apresenta a trajetória de duas mulheres pobres e lutadoras que viviam na periferia na primeira metade do século XX. Ambas perderam os maridos e seguiram adiante cuidando de suas crias. Uma filha de negro com índio, a outra de família espanhola. Ambas se encontraram na Brasilândia. E a poeta descendeu das duas: a negra, mãe de sua mãe e a espanhola, mãe de seu pai.

Os dois últimos poemas deste bloco memorialístico tratam de seu bairro. Um é Como era bela a rua de trás que fala sobre a vida rural da periferia em tempos idos na Serra da Cantareira que foi, gradativamente, tomada de casas, asfalto e desfez o ar bucólico e interiorano da Brasilândia. Em Simplicidade, Bischain faz uma declaração de amor ao seu território, sua rua e à diversidade de seus habitantes que correm atrás de seus sonhos: “sonhar que posso/ com a ponta dos dedos/ tocar meus sonhos”, o que denota a presença deste elemento de composição em outros poemas, para além dos que agrupei adiante.

O tema da morte na poesia de Bischain, não tem uma conotação filosófica como ocorre com a obra de Maria Vilani. A autora da Brasilândia faz um obituário, compondo um epitáfio para sete pessoas, incluindo seus pais. Há dois poemas para a mãe, pelo que entendi, porém, têm títulos com nomes distintos de mulheres, ambos datados: Vilma (2006) e Ana (dia das mães, maio de 2008). O primeiro narra a notícia da morte e o transe da poeta em face de tamanha tragédia: “não pensei na despedida/ em um momento foi só um medo;/ um pressentimento, que não levei a sério”. A poesia, porém, parece ser um recurso limitado de expressão para todo o seu sentimento: “as palavras fogem/são apenas palavras/ incapazes de descrever a dor/daquela manhã de segunda-feira”, mas serviu como registro não de óbito, mas de luto. Já em Ana, ela se aproxima do corpo falecido da mãe: “fecho os olhos e ainda a vejo/silenciosa/derradeiro olhar/derradeiro toque/ derradeiras palavras/a despedida/a filha inerte”. Em um poema curto, mas imenso em amor ao pai, os versos estão impressos sobre uma foto de um homem idoso, supostamente o próprio pai da poeta, que está andando, de costas, numa rua arborizada e florida, dando a impressão de que seja uma homenagem póstuma.

Três amigos da autora tiveram suas mortes lembradas no livro. Carlos (1974) é um poema em prosa que conta a história de um colega da escola, jovem, pobre, negro, órfão. Morreu vítima da meningite. Havia um surto da doença naquele ano, mas o Governo Militar censurava as informações. Djalma (2005) é um réquiem para um amigo em seu leito de morte. E Leandro (1988) é sobre um rapaz de 28 anos homossexual que contraiu a AIDS, doença não mencionada no poema, mas identificada pelos sintomas e que, na época, era muito desconhecida e sobre a qual pesava um forte preconceito.

Por fim, em Protejo aqui seu nome, temos um poema narrativo ou uma crônica em forma de poema que traduz a banalização da morte. Conta a história de um homem de 55 anos que, a caminho do trabalho teve um mal súbito. Foi acudido por uma vizinha enfermeira que constatou um infarto. O Resgate foi chamado. A vizinha teve que pegar o ônibus para o trabalho sob pena de se atrasar. O homem ficou na rua. No dia seguinte a vizinha foi buscar notícias. Ninguém sabia o paradeiro do homem que foi identificado uma semana depois por ter sido enterrado como indigente.

Os poemas de protesto têm duas características. Ou incidem sobre o território da autora na sua microdimensão: a rua e o bairro, ou é genérico e difuso, um tanto retórico na denúncia da devastação do planeta em decorrência da exploração capitalista. Entre um e outro, há um texto em defesa dos povos indígenas do Brasil frente ao histórico genocídio que os penalizam. Vamos ficar com dois exemplos de cada, começando com os de território. Rua de trás parece se referir a uma rua na beira do córrego, junto do barranco sob “risco de desmoronamento e de inundações”. Mas não se trata, pelo menos aqui, de uma rua específica, mas um recurso de representação da precariedade urbana. Nesse sentido, é “o nosso lado da história”, diz a poeta. E completa dando a georeferência: “a história do lado de cá do Tietê”. Já em A rua da frente e a rua de trás, fica mais explícito o espaço de que se trata. O poema expõe o contraste entre a rua da frente (uma avenida) e a rua de trás (um beco). Na rua da frente o povo passeia, na de trás, as pessoas agonizam no vício, na violência. Os da rua de trás, quando passam pela rua da frente, é para cobrar viciados devedores, expondo meninas que oferecem seus corpos para sanar dívidas contraídas na rua de trás. “Na rua de trás/ o medo cala a voz de seus moradores/ na rua da frente/ o mesmo medo faz as pessoas acreditarem/ que tudo isso só acontece/ na rua de trás”.

Resgate é um poema desesperado e cético que manifesta uma profunda insatisfação com a realidade, constatando que os que lutaram em tempos atrás chegaram no poder: “o poder nos engana/ confisca a esperança, o riso/ o brilho do olhar torna-se traiçoeiro”. Denuncia a traição e o egoísmo dos que encastelaram. Desenha o abismo social nos versos: “construímos um planeta sem futuro;/ uma juventude sem esperança;/ destruímos a inocência da infância”. Próximo do final, modula o tom: “perdemos tantas coisas pelo caminho/mas acho que o tempo ainda não destruiu/ o desejo de procurá-las”. Em Valores inversos, a autora compõe um vasto repúdio à miséria causada pela ambição dos homens, seja na Ásia, África ou na Amazônia. Exposto o terror da falência da humanidade, a poeta retrai o tom no final do poema enaltecendo os homens que “ainda sonham com justiça/ ainda mantém a dignidade”… “Estes homens, juntos, quebram paredes/ derrubam muros e cercas/ e constroem pontes”. A autora aqui surpreende com o uso do termo “homem” para designar a humanidade, algo que não só caiu em desuso, mas se tornou inapropriado em face dos movimentos de afirmação de gênero tão característico da militância contemporânea.

Entre os poemas que têm o sonho como elemento central, dois discorrem sobre as utopias e a esperança que delas vicejam. Um dia (1988) poema de mulher adulta, politizada e engajada, fala do sonho socialista. De sonhos em sonhos é sobre os sonhos que movem os homens e o mundo: “segue o homem/ adiando seus sonhos/ pisando seus sonhos/ esquecendo seus sonhos/ seguem os sonhos, teimosos/ abrindo caminhos/ encantando e conquistando/ novos homens”. Nos demais, o sonho aparece como uma extensão do corpo, uma força que sustenta a existência. Vejamos também dois deles. Em Sonhos, a autora divaga sobre os sonhos que são entregues a alguém que a ela procurou com ansiedade. Sonhos ao vento é um poema que tem a volatilidade que o título sugere e denota uma leveza de espírito: “rejeitando o medo/ semeando palavras/ indiferente ao perigo/sigo/ renovando sonhos”.

No passado eu sou

Os livros aqui comentados fazem um balanço da vida das poetas, publicados que foram na fase mais madura de ambas. Obras encharcados de recordações que se tornam um instrumento de memória ao mesmo tempo que organizam o passado das autoras em face de suas trajetórias e conflitos pessoais. Dito isso, o fato de as duas terem um poema com o nome de autorretrato não chega a ser surpresa. No texto de Bischain, ela tece comentários a respeito de sua personalidade indignada com as injustiças. Respeita a Deus, mas não as religiões e que ensina os filhos a terem sempre disposição para aprender, ouvir e ter visão ampla das coisas. No poema de Vilani, ela faz um scanner da alma e se revela em fragmentos que se juntam diante de promissores sentimentos que, por charme de poeta, ela chama de “ilusão”.

Outra característica comum, do ponto de vista formal, entre os dois livros é que ambos têm um poema de prelúdio e outro de epílogo. Esse recurso confere um sentido de ciclo fechado. As obras parecem ter cumprido um propósito. O que nos leva a crer que as autoras fizeram um acerto de contas com o passado. Vilani no seu poema de abertura se sente vitoriosa por ter chegado à “Estação Velhice”, mas se sente indignada com o descaso que sofre a população idosa. No poema final, enaltece a juventude e recomenda: “se você é jovem/ cuide para/nunca envelhecer”. Movida por um sentido de preservação da memória, Sonia em seu primeiro poema (Aqui estou) quer contar histórias das pessoas “que me ensinaram a ser quem eu sou”. E no derradeiro texto (Chego ao fim), ela, exausta, e com as emoções em erupção, se diz “inacabada”.

Vilani, ao estabelecer uma oposição entre velhice e juventude, sugere o quanto tentou, ao longo do livro, se desvencilhar de uma roupa que guarda como relíquia, mas que não faz mais sentido usá-la. Mas creio que ela conseguiu exorcizar um sentimento guardado da juventude que, se não a perturbava, lhe confundia e turvava sua vista quando mirava o passado. Ela está bem na sua estação e produziu uma obra muito consistente posteriormente a Varal. O sentimento de incompletude de Sonia, por sua vez, lhe deu a motivação de seguir contando histórias e seus quatro livros seguintes, todos em prosa, seguem compondo uma memória do povo de um lugar.

A obra dessas duas autoras é, assim, um exercício poético fecundo para se conciliar com o passado e entender o tempo que se foi como parte essencial do que somos. Murilo Mendes em Indicação, embaralha os tempos: “ontem sou, hoje serei, amanhã fui”. Esse verso final do referido poema nos fala, de modo instigante, do passado como algo que está presente: no passado, eu sou. Emicida, no seu filme e CD AmarElo recuperou um provérbio ioruba que conta que “Exu matou o pássaro ontem com a pedra que jogou hoje”. Essa compreensão de que o passado não foi, ele é, nos ajuda também, a meu ver, a assimilar a morte e conviver com a ausência material de pessoas queridas. Assim eu li Sonia Bischain e Maria Vilani, poetas que falam do presente lendo o passado e, nessa chave, ao abordarem a morte, ensinam muito da vida.


1 O livro tem formato 14 x 21, 126 páginas, coordenação editorial e ilustrações de Adenildo Lima, projeto gráfico e diagramação de Roberto de Lima, capa e criação de arte de João Paulo de Melo. Ivanildo Lima assina o texto de orelha e a apresentação é do professor Clayton Gomes que é o filho mais velho da autora. Vilani é professora aposentada da rede pública de ensino e se dedica à atividade cultural por meio do CAPS – Centro de Arte e Promoção Social que realiza saraus, cursos de filosofia e literatura, entre outros. Vilani se projetou como escritora em função de sua obra de alta qualidade e ficou famosa também por ser mão do rapper Criolo.

2 O livro de Sonia também tem formato 14 x 21 e 62 páginas. É um livro duplo: do outro lado tem a obra de Bárbara Lopes Poemas e Prosas de um eu. Ambos têm 62 páginas, somando, assim, 124. Sonia se encarregou do projeto gráfico, capa, diagramação, arte final, fotografia e revisão (dividida com Taís Lopes). Vagner Souza (Sarau da Brasa) e Raquel Almeida (Sarau Elo da Corrente) fazem os textos de apresentação. Sonia é designer e fotógrafa. Conquistou destaque na cena literária periférica com sua produção em prosa que lhe rendeu mais quatro livros após este (três romances e um de contos).

3 Rosenfel, Anatol. O teatro épico, página 22; Editora Perspectiva, São Paulo 2011 (sexta edição)

4 Staiger, Emil. Conceitos fundamentais da poética (pág. 63). Edições Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1997

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