Tortura: A votação
Em um conto de A cicatriz, livro recém-lançado de B. Kucinski, a atmosfera dos porões da ditadura. Os oficiais quebraram o cara. Ele nada delatou. Cederá alguma hora? Vale a pena mantê-lo vivo? Impasse será resolvido por uma estranha democracia…
Publicado 12/04/2021 às 11:19 - Atualizado 12/04/2021 às 11:22
A cicatriz e outras histórias – (quase) todos os contos de B. Kucinski. Publicado pela editora Alameda, pode ser comprado aqui. Neste livro, a trajetória contistica do premiado escritor, que estreou na ficção em 2011 e foi finalista dos prêmios Portugal Telecom e São Paulo de Literatura já no ano seguinte e, também, vencedor do Prêmio Jabuti em 1997.
A sala não tem janelas. É como um depósito. Entra-se por uma abertura tosca na parede do corredor. Uma lâmpada pende do teto por um fio descascado. Está acesa. O ar está viciado e fede cigarro. Sobre uma mesinha há copos, uma garrafa de pinga, outra de água mineral e um cinzeiro repleto. Numa pia dos fundos, um negro corpulento ensaboa as mãos. Junto à parede, num sofá desconjuntado, um mulato careca e gordo esparrama-se e fuma. Seu rosto é bexiguento, suas olheiras sugerem noite em claro. Numa cadeira, ao lado da mesinha, um magricela de cabelos escorridos e amarelados está sentado de pernas estiradas e abertas. Segura um copo com pinga pela metade. Também parece cansado. Os três estão de jeans e camisas amarrotadas.
— O chefe mandou limpar a meleca toda, diz o gordo em voz alta, dirigindo-se ao negro que lava as mãos sem lhe voltar o olhar.
— Acabamos de limpar, responde o negro.
— E os documentos dele, a papelada?
— Dei tudo pro chefe.
— Estou pregado, diz o magricela loiro.
— E eu, que trabalhei o cara a noite inteira, diz o gordo. Nesse momento, surge na abertura da parede um militar com a insígnia de coronel, alto, magro e ligeiramente estrábico.
— Mas trabalhou errado! – Diz o militar.
— Levamos um ano para identificar o cara e descobrir o endereço da família e na primeira noite vocês põem tudo a perder! E sem arrancar uma palavra!
— Que é isso, chefe!? O cara é foda! Tanto assim que deu a zebra que deu.
— Deu por culpa de vocês! Toupeiras! Quantas vezes expliquei que sem intervalo pode dar gangrena?!
— Mas o doutor liberou, disse que podia continuar.
— É outro incompetente. E relapso. Quando deu merda ele nem estava mais aqui.
Atrás do oficial surge um sargento:
— Coronel, tem uma pessoa no telefone querendo falar com o responsável, é do hospital.
— O que ele quer?
— Diz que precisa de uma autorização.
— Deixa que eu cuido disso. O oficial sai. Passados cinco minutos, retorna, pensativo.
— O que foi, chefe? Pergunta o gordo.
— Precisa amputar a perna direita. A família têm que autorizar porque ele está inconsciente. Deu gangrena, dizem que se não amputar não dura dois dias.
— O que o senhor acha, chefe?
— Vocês é que fizeram a cagada, vocês é que tem que achar. Se ele voltar, vocês garantem que fala?
Ninguém responde. O coronel repete:
— Eu fiz uma pergunta, quero que cada um de vocês responda.
O coronel fita o mulato careca que está esparramado no sofá:
— Você, Baiano, você primeiro, o que você acha?
— Acho que não adianta, depois de tudo o que fizemos, a noite inteira pendurado, não é agora que o filho da puta vai falar.
— E você, Tição, o que você acha? O negro corpulento terminou de lavar as mãos e está se enxugando numa toalha encardida, pendurada num prego.
— Talvez sem uma perna ele mude a ideia de tudo.
— E você, Picolé?
— Sei não, diz o magricela. O cara é durão mesmo.
— O Manga também trabalhou ele? Pergunta o coronel.
— Também.
— Veja se ele ainda está aí.
O magricela levanta-se de má vontade, larga o copo de cachaça na mesinha e sai pelo corredor. Em um minuto, ele volta com um rapaz moreno, de cabelo crespo, alto e encorpado, de torso nu e trajando calça de ginástica e tênis. Está suado e com uma toalha enrolada no pescoço.
— O que você acha, Manga?
— O que eu acho do quê?
— Do cara dessa noite, a merda que deu.
— Mais merda? Não tô sabendo de nada.
— Deu gangrena, o hospital diz que precisa amputar. Ou cortam fora a perna direita ou ele já era. Você acha que se pendurar de novo ele fala?
— Duvido, o cara é fita ruim, é mula.
O coronel medita um pouco. Depois diz, em tom resoluto:
— Três a um. Então, está decidido. Sargento, ligue de volta pro hospital e diga que nem o nome dele nós sabemos, muito menos quem são os pais.
Muito bom! Postem mais textos literários!
Muito bom! Postei mais textos literários!