Poemas para não serem lidos em voz alta

Duas autoras periféricas que fogem à estética de exaltação dos saraus. Com versos experimentais, densos e desterritorializados, elas expressam espantos e encantos, tentativas e erros — e, no entrepalavras, o silêncio como prece

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Por Eleilson Leite, na coluna Literatura dos Arrabaldes

Compartilho a leitura que fiz dos livros Cheiro de mato e capim-limão, de Ivone Lopes de Lana e Toda via, de Michelle Santos, publicados em 2016 e 2015, respectivamente. Lana é do Capão Redondo e Michele é do Grajaú, bairros da periferia da Zona Sul de São Paulo. Nascidas na primeira metade dos anos 1980, são da mesma geração. Uma é professora da rede pública (Michele) e a outra é publicitária e tem uma loja de moda e acessórios (Lana).

Ambas são frequentadoras de saraus, mas boa parte de seus poemas não é muito adequada para a leitura em voz alta com a dramaticidade que a declamação requer. Lana se sente até inibida nos recitais. Michele que é do Sarau Sobrenome Liberdade, “mais escreve que fala” e seus poemas possuem uma arquitetura rebuscada, cheios de artifícios semânticos que são melhor percebidos se lidos.

As duas são assim filiadas a uma corrente de escritoras que, diferente de Mel Duarte e Mariana Felix, analisadas no artigo anterior, escrevem para serem lidas em silêncio, seja no livro, no lambe ou no papel de pão. São autoras que, embora tenham suas vinculações com saraus, prescindem dos recitais para difundirem seus poemas que falam de amor, dos males e belezas do mundo e do próprio ofício de escrever.

Ivone Lopes de Lana

Cheiro de mato e capim-limão foi publicado pela Scortecci. Tem formato 14 cm x 21 cm e 217 páginas nas quais estão distribuídos 112 poemas em quatro capítulos. A capa de Daniela Jacinto tem a foto de uma xícara de chá sobre um caderno de anotações, traduzindo em boa medida o clima de parte dos poemas da autora. Uma pessoa de nome Eduardo faz o prefácio em forma de poema exaltando a poeta. Em uma orelha tem fragmentos de poemas e na outra uma foto da autora e sua minibiografia na qual diz ser poeta há mais de 20 anos. Passou a infância e juventude no Capão Redondo. Rodou o mundo, morou na Irlanda, formou-se em publicidade e voltou para seu bairro de origem, mas vai com frequência para Senador Firmino, Sul de Minas, na casa de seus avós. Cheiro de mato e capim-limão é seu segundo livro. O primeiro foi Jardim das Rosas – diário de um mano, publicado em 2007. Tem outros livros editados e alguns a serem publicados. Estão todos anunciados em seu site.

Michele Santos

O livro de Michele Santos foi publicado por ela mesma com a ajuda dos companheiros do coletivo Sobrenome Liberdade. No marca página que acompanha o livro diz se tratar de “literatura independente, publicada à base de valentia”. O projeto gráfico é de Mixel Nogueira; Ni Brisant fez a revisão; a foto da capa é da Alessa Melo. A obra tem formato 14 cm x 21 cm e seus 56 poemas estão divididos em quatro capítulos e um apêndice, somando 89 páginas. A apresentação é de Janaina Moitinho. O texto de uma das orelhas é: “- Escuta”, recurso de edição que é revelador do que o leitor encontrará nos poemas da autora. Na outra orelha está uma foto de Michelle e uma econômica biografia na qual diz ter nascido no inverno em São Paulo, mas vive a buscar primaveras, diz ser professora das redes públicas e integrante do Coletivo Sobrenome Liberdade, cuja antologia publicada em 2013 tem um poema dela. Toda via é seu primeiro e único livro solo. Na contracapa ela transcreve um poema que traduz sua poesia: “se eu fizesse poesia/ escreveria pássaros/ poemas são todos/ tentativas de voo”.

Cheiro de mato e capim-limão

O livro de Lana concentra no primeiro capítulo toda a atmosfera que justifica o título da obra e do próprio capítulo. A autora tem uma fonte de inspiração muito afetiva: a fazenda de seus avós na pequena cidade de Senador Firmino, no Sul do Estado de Minas Gerais. E essa referência diz muito da visão da autora sobre a vida no campo. Na região onde Lana escreve seus bucólicos poemas tem um relevo montanhoso de onde se vê os astros noturnos com tamanha nitidez que parecem mais próximo da gente. Talvez por isso sejam tão citados pela autora: as estrelas, a lua, o vento e o sol, muito presentes no capítulo inicial, mas acompanharão o leitor por todo o livro.

Mais adiante ela vai citar o mar com frequência, porém, muito associado à instabilidade. O mar de Lana é revolto. Aliás, a chuva aparece também com frequência e sempre como tempestade. Todos esses elementos da natureza compõe o principal universo de imagens da autora para expressar o que mais há no seu livro: amor. Entretanto, não se trata do amor na sua plenitude e gozo, mas como devaneio onírico, exaltação e súplica. Seu amor é romântico e etéreo.

O amor de Lana é idealizado e sua impossibilidade parece ser o sentido da busca. Quando se realiza, é passageiro, pois Lana é uma poeta itinerante. Viajar é sua sina e para abusar do clichê: encontra um amor em cada porto. Lana adora viajar e já rodou o mundo. Esse trânsito de mochila nas costas rendeu outra boa parte dos poemas deste seu livro farto de versos de encantamento e dor que abordam, principalmente, os dilemas da existência humana. Oriunda do Capão Redondo, a autora quase nada fala da periferia, muito menos de suas mazelas e quando aborda temas sociais é sutil: “As lágrimas caem! São sonhos/ que queimam junto com a madeira”. São versos do poema Fogo que queima que aborda um incêndio que destrói uma favela.

São 112 poemas. Poucas são as obras de poesia na literatura periférica com tantos textos. É exatamente o dobro da Michele Santos (56 poemas). Mas o poema é para a Lana a forma de organizar e expressar seus sentimentos, tirando-a do sufoco. É um ato de libertação. Mas é ofício também. Ela se esmerou na arte de fazer versos, sempre organizados em estrofes, tem até soneto. Lana tem apego pelas rimas, inclusive as terminadas em “ão” ou no gerúndio, algo que poderia soar deselegante. Mas nela, quase sempre fica bem, pois aparece como um recurso estilístico que atribui ênfases e cria tensões que deixam os poemas robustos. E assim como veremos em Michele, a experiência da escrita poética é tema de vários poemas que formam um outro bloco de composições do livro. Do interior de Minas ao Capão Redondo, passaremos pela Espanha, Irlanda, Suécia, Dinamarca e Guaianases. Ler Cheiro de mato e capim-limão é dar uma pequena volta ao mundo em 217 páginas.

Na casa da roça da vó Rita abre o livro e narra o fascínio de estar no campo, no aconchego da casa da fazenda dos avós. O encantamento com a natureza exuberante aparece em versos singelos: “gosto do sol que aquece meu corpo nas tardes de verão/ e do vento fresco que refresca minha face no fim da estação”. Tá pronta a comida fala da admiração pela avó, sua culinária e histórias de vida. Ela faz uma descrição poética de como é a cozinha na roça, mas reforça alguns estereótipos e idealiza a vida no campo. “Lembro-me da senhora juntando folhas de alecrim/ pra fazer vassoura e varrer o jardim”.

Há uma sequência de poemas por meio dos quais a autora faz uma etnografia da vida rural naquelas bandas de Minas: Cheiro do Interior; Eu quero; Lida; Alegria de Minas. Seu encantamento vira apologia em Alegria da Terra no qual lembra Canção do Exílio, de Gonçalves Dias em versos de exaltação: “Naquela terra querida/que os pássaros vão cantar/ o ar que se respira/ é puro como o luar”. Em outros dois poemas (Noite em São Thomé e Do nascer ao por do sol), ela sai da fazenda de sua avó e vai para São Thomé das Letras que fica no Sul de Minas, porém, distante 300 km de Senador Firmino. Lá, cercada por amigos, em luaus embalados a vinho ou por alucinógenos que ela diz dispensar, vive experiências transcendentais: “senti a paz que girava em torno das pessoas/ muitos com a brisa do cogumelo/ outros tantos com a brisa das ervas/ eu apenas com a brisa do vento/ mas todos tinham o mesmo encantamento”. São Thomé tem esse poder de nos conduzir a elevadas dimensões espirituais.

Já neste capítulo, Lana dedica alguns poemas a seu tema predileto: o amor. Todos eles aqui são devaneios, alguns assumidamente oníricos. Sob a luz das estrelas fala sutilmente de um amor, cuja recordação embala os versos bucólicos da poeta. Lá vem Romeu é um canto para um “amante onírico”: “La se vai/ longe do destino/ o fim da brisa tardia/ silêncio de meus dias”. Pensamentos soltos, outro delírio, mas destinado a um “Amor clandestino” contém versos inspirados: “iluminado pela luz de astros no teto negro da madrugada…” Suspiro de Minerva narra um encontro amoroso ardente numa casa do campo, sob a luz de vela e na manhã seguinte, o chá feito no fogão a lenha. Mas era um sonho…

Tais poemas preparam o terreno para o capítulo seguinte intitulado Falando de Amor. Mas ela fala mais de rompimentos, ilusões e desilusões do que do ato amoroso carnal. Mas no capítulo anterior tem um dos poemas (Minha vida de poeta) que trata do ofício da poeta no qual ela dá a senha para o leitor: “a matéria prima da poesia é o sofrimento, a dor/ quando está vivendo o amor, o poeta não tem tempo para escrever”.

Salvador é uma declaração de amor a um homem que canta, declama poemas e vive em algum lugar do Cerrado. Um amor idealizado; os corpos não se encontram. Poema da noite reforça esse traço da poesia de Lana e discorre, a distância, sobre o amor por uma pessoa, cujo gênero não é especificado. Os corpos se encontram, mas não tem suor, sexo, gozo: “nossos corpos se entrelaçando na cama larga/ driblando espaço/ se encaixando um no outro/ fazendo mais próximos nossos corações”, “Ainda sinto seu corpo colado no meu/ e nossos desejos formando um corpo só”. Sonho de verão é um poema que poderia transportar a autora para a primeira metade do século XIX, no auge do Romantismo: “Então despertei com seu beijo/ selando nossa história de amor/ com o calor da magia entre dois corações”.

No poema Perfume de Maria, a declaração de amor se dirige a uma mulher, e o padrão de abordagem se mantém: “Amo-te/ como nunca amei ninguém/ dedico-lhe poemas e canções/ mas não a tenho perto de mim”. Mas neste capítulo já aparece os amores de mochila narrados em poemas inspirados no gosto que a autora tem por viagens. Toledo narra um flerte durante um passeio em Toledo, cidade histórica que guarda muito das influências de árabes e judeus na Península Ibérica. Na volta para a capital espanhola, de onde partiu, o amor se realiza, bem ao estilo de Lana: “Seguimos para Madri/ para nos amarmos entre lençóis/ e eu adormecer no seu peito”. Em felicidade para mim é: ela descreve seu paradigma de realização amorosa: “um jipe vermelho paixão/ em bom estado para viajar/ e um belo namorado ao lado para guiar”. Segue tecendo um mundo idealizado de paz, amor, brisa, sol nascendo, sol se pondo, “abraçar, beijar, amar”… E no poema Amor de mochila, enfim narra a paixão por um ser mochileiro como ela. Os amores de Lana têm o tempo das viagens e carregam as delícias que os passeios pelo mundo proporcionam.

As viagens estão em maior número na parte III que tem o sugestivo título de Entre fotos e cadernos. O poema que abre o capítulo transporta o leitor acima das nuvens, pois é de lá que a autora descreve o pôr do sol no poema Fim de tarde. Desembarca na Irlanda, país no qual viveu por dois anos. A terra de James Joyce é tema de dois poemas do capítulo: Doce esmeralda e Manhã dublinense. No poema Viajando nos conduz de trem entre a Suécia e Dinamarca durante o rigoroso inverno do norte da Europa e descreve lindas paisagens, mas também narra uma incômoda imagem de queimada.

Próxima estação: Guaianases. No trilho da poesia, Lana narra a viagem de trem entre a periferia da Zona Sul e o extremo da Zona Leste em versos com o ritmo do rolê sobre os trilhos do subúrbio. Explora o movimento da massa na busca por um lugar no vagão. Destaca a diversidade das pessoas e a performance dos ambulantes em criativos pregões. Lana é uma observadora atenciosa. E no transe dos transeuntes, uma passageira lhe chama a atenção e vira tema para o poema Um olhar em meio à multidão no qual descreve uma mulher que se destaca em meio às pessoas no transporte coletivo: “seus cabelos são vermelhos/ como fogo ardente/ compridos e encaracolados/ olhos negros como jabuticaba”

Jogada de xadrez é um dos poucos poemas que trata de questões sociais e aqui ela dá um cheque mate. Por meio de metáforas relacionadas ao jogo de xadrez faz uma reflexão sobre os desafios de se viver na quebrada. “Torre é poderosa/O cavalo domina o centro/A rainha é a melhor/Bispo na diagonal/Rei tem morte visceral…”. Essa composição já faz o engate com outro raro poema de mesma temática, agora com foco na questão de gênero. Mulheres Perfeitas é um poema protesto contra os condicionamentos que impõe um padrão de beleza às mulheres. O tom é de libelo feminista, mas pouco politizado, longe da necessária intersecção: raça, classe e gênero. Mais adiante, em outro poema feminista (A ira das mulheres) ela é mais enfática e faz uma ode às mulheres independentes, sedutoras, intransigentes. Completa o pequeno bloco de poemas sociais, o Fogo que queima já citado anteriormente.

Nesse derradeiro capítulo, Lana, literalmente, coloca seus demônios para fora. É a parte com maior número de poemas: 39 e termina o livro em clima de pesadelo com assombrações e tempestades devastadoras como metáforas dos tormentos da vida. Torna-se assim um contraponto às aprazíveis paisagens do sul mineiro contidas no primeiro capítulo. Há poemas de amor, porém, todos, presumivelmente sofridos para ficarem coerentes com o clima trágico dessa parte do livro. Mas são poemas fortes, bem construídos, cheios de rimas que dão uma marcação tensa aos versos conferindo dramaticidade às narrativas de dor, medo e aflição.

Encerro a leitura do livro de Lana com os textos que tratam do ofício da poeta e que estão espalhados nos quatro capítulos da obra. Por meio deles faço o link principal com a obra de Michelle Santos comentada a seguir. Minha vida de poeta, já citado, explica a abordagem de Lana para o tema do amor, muito caro a ela. Seu Mario é dedicado ao poeta Mario Quintana a quem Lana rasga elogios, embora não haja, até onde consigo perceber, influência do poeta gaúcho na sua escrita.

Prenúncio de um sarau, aborda o quanto a poesia está presente no cotidiano da periferia e narra o desejo de um grupo de jovens de criar um sarau no Jardim das Rosas, Capão Redondo. Em Poema, ela é singela: “sentimentos que transformo/ em versos mimosos/ e poemas carinhos”. Já em Como nasce a poesia ela situa melhor sua criação: “poetas rezam/ para um mundo incerto”. Finalmente em Poeta suburbano ela narra o destino trágico do poeta que se matou literalmente ou literariamente: “não faz mal!/ ninguém leu sua obra fatal/ seus últimos versos/ denunciavam o suicídio”.

Toda via

Michelle Santos é erudita e seus poemas são elaborados com um esmero de carpinteira. Ela escreve como João Cabral de Melo Neto. O poeta pernambucano, que faria 100 anos em 2020, dizia que sua poesia tinha “uma textura áspera; difícil de ser lida em voz alta”1. Ele não queria um poema que embalasse o leitor numa leitura fluente como um carro que desliza numa pista asfaltada. Sua poesia era uma rua de pedregulhos. Vejo a escrita de Michelle um pouco assim. A arquitetura de seus poemas é rebuscada; não usa estrofes, seus versos são equilibrados como caixas de formatos distintos empilhadas, mas que formam um conjunto coeso, apesar da aparente instabilidade. Ela usa colchete e muitas vezes não dá título aos poemas invariavelmente curtos, alguns de um verso só, como: “poesia nunca servil pra nada”.

Sua escrita é cheia de trocadilhos sutis. Servil aqui é imposição coercitiva. Não é serviu de prestar-se, servir algo a alguém. Se declamado, esse verso teria o sentido mal compreendido. Mas confundir é o ofício da poeta. E é a ourivesaria da escrita em versos o tema de que ela mais trata no livro. Depois vem o amor. Como Lana, Michele aborda pouco as questões sociais e quando trata do assunto é com a mesma sutileza: “No ponto desértico do mapa: meu peito/ sobre o agreste, a seca” (Carcará). Mais adiante, ela se mantém no Nordeste no poema Secaque trata da transposição do Rio São Francisco: “solução hídrica para corações áridos”.

O livro de Michelle Santos tem 56 poemas distribuídos equilibradamente em quatro capítulos e um apêndice, todos nominados com conjunções adversativas: entretanto e contudo; advérbios apesar e embora (que contém sentido adversativo também) e a conjunção coordenativa mas. Essas palavras, porém, se apresentam como neologismos, pois estão escritas separadas: entre tanto (singelagens e metas físicas); com tudo (documentos sócio-histéricos); a pesar (hermenêutica dos amores brutos); em bora (punches de ½ libra); Mas, que não permite uma divisão, está acompanhado de reticências. E tem o próprio título do livro: toda via, que segue o mesmo artifício linguístico.

Michelle, como foi dito, é professora. Não pude, porém, apurar se de língua portuguesa, mas provavelmente é, pois, sua habilidade no uso da gramática e da sintaxe é notável. Ela conseguiu subverter o sentido das conjunções, advérbios e figuras de linguagem com um virtuosismo poético admirável que a coloca num lugar especial no panteão da literatura de quebrada, honrando a tradição do Grajaú de ser um celeiro de grandes poetas.

Vou percorrer o livro de Michele fora da divisão que ela propôs. Não estou à altura de examinar sua obra do ponto de vista plástico e nem é meu propósito fazer uma apreciação focada na estética. Analiso as obras com base no conteúdo e não na forma, embora reconheça que na arte, forma é conteúdo, especialmente na arte de Michelle Santos. Encarar sua escrita foi tarefa difícil, mas muito recompensada. Eu li o livro quando o ganhei de uma amiga na época do lançamento. Reli agora para escrever este artigo. Parecia que estava lendo outro livro. E tenho certeza de que ao voltar futuramente a lê-lo, novas descobertas farão a leitura ser uma novidade.

Agrupei seus poemas em três blocos: amor, social e poesia. Como Lana, os poemas de amor de Michele tratam mais de desencontros do que encontros. Não há uma sofrência aguda, mas uma corrosão, um sofrimento de longo prazo. Em Era de Aquarius fala de um amor aquariano: “tenho gostado de acordar nascida em fevereiro”. Um amor fugidio: “o céu tão absurdo/ o seu ‘não’ abusado/ o cel não toca mais seu número”. Mas ela é resiliente: “mais que sofrer faltas/ gosto de inventar presenças”… “e o futuro beibe, é só o infinito gotejando amanhãs”. O amor de Michelle é de Patchwork e a arte de juntar retalhos está presente no poema Postal na BR 316/AL: “viver não deixa de ser um inventar-se diário/ e se nosso diário fosse talvez publicado/ – se nosso diário quiçá fosse escrito/ ele sangrava”.

Num poema sem título ela ensina como superar um amor hesitante: “Esperar o amor que não vem é como quedar-se/ em frente a uma estação/Como não sei onde fica/ in/ vento/ itinerários melhores que a solidão”. Em outros poemas ela faz o jogo do desapego. Subversinho é um poema do amor promíscuo: “e entregar-se/anárquico/a qualquer conchavo/ erótico”. Em outro sem título, diz: “Você não passa de uma coisa que ficou”. Em Relacionamento aberto ela é sarcástica: “Desisto dos méritos/ pode ficar com a glória/ e Ana, e Maria, e Luiza”… E volta ao apego sem convicção em Pétalas. Patuás: “Não fosse esse/ mal-me-quer/ eu bem queria”.

Outro poema sem título faz um convite ao sexo bem ao estilo sutil da autora: “Que as bocas silenciem/ se nos olhos se leem: cio”. Em Suiciclo, mais um precioso neologismo, ela resume seu padrão de relação amorosa. Nesse poema, ela dá forma poética à rotatividade dos relacionamentos expresso no mergulho em uma piscina vazia. Inúmeras fraturas, mas o coração resiste: “daí/ apaixonar-se de novo/ subir na escadinha contando os degraus…”, “um novo ciclo inexorável de amor e dor, necessariamente nessa ordem.

Os poemas de cunho social ou político são de temáticas bem distintas. A seca do Nordeste foi mencionada nos textos anteriormente citados. Trans- ité um aforismo sobre a insanidade do congestionamento no horário do rush: “desliga isso, vai/ abre a porta, vem/ anda comigo”Em Cão, a poeta se faz de cachorro e narra a frustração da matilha diante das máquinas de assar frango nas padarias aos domingos: “nós/ os cães/ esperamos sem pressa/ a fatalidade das conveniências”. Mucha luta fala com ironia sobre o modismo da pose revolucionária: “a posteridade virou pôster pop pra paredes posers/ ideologia/ sempre teve no balcão dos fármacos/ [ homo apatia]”. O capital nos acaba o interior, poema de verso único que parece se referir ao livro O Capital, de Karl Marx, mas sugere uma relação capital – interior. Talvez porque o Capital tenha a ver com a capital onde o capitalismo é avassalador e acaba, supostamente, com a nossa vida interior ou nos distancia da vida mais pacata e mais humana das cidades do Interior. Lana deve saber bem o que é isso…

Há três poemas com uma abordagem mais feminista. Ensinamentos de minha mãe tem duas partes, uma para fora: “aparecer no jornal não te livra de ser papel de peixe” e “melhor abrigo da guerra é a luta”. A outra para dentro: “cebolas roxas evitam lágrimas/ viver não evita”. A sabedoria materna, pelo visto, influenciou a escrita de Michele. Em (E) fême (r) a aborda as pressões sofridas pelas mulheres sobre seu lugar social. Fala da mulher, cujo corpo é pauta de discussão no parlamento; a mulher que é apedrejada numa praça islâmica. Clama por Coralina, Carolina, Simone….“ainda não vieram se o espelho da mulher moderna for efêmera/passarela…”, “em terra de maria/ quem precisa de Cinderela?”

Sobre o ofício da poesia, Michelle defende o exercício da escrita que não será “resenhada por Antonio Cândido” como diz no poema Sociedade dos poetas vivos no qual cria o neologismo Literadura: “muitos maus poemas/ inda são melhores/ que poesia alguma”/ “O intento é o alento dos incautos/ para o que os salvam”. No poema Sobre searas: saraus, ela defende sua tese sobre a escrita poética: “A palavra carrega em si o poder do encanto/ mas que não se finde nela o alumbramento/estético/o que procuro dela é o/ espanto”.

Michele é menos profunda em um conjunto de versos mais marotos. Papelzim: “Este poema/ panfleta o afeto/ pedindo in verso/ JOGUE NAS VIAS PÚBLICAS”. Em Decido à descida: “CUIDADO DECLIVE < poeta em poema-processo>”. “Minha posição política é poética”, dá o tom estético da política num poema de um só verso. “Poemas são estratégias de fuga para tudo que não domino/ cinema iraniano, domingos/ saber a hora de parar/ você”, diz outro poema sem título. “Todo poema é um começo/ todo poema é um comício/todo poeta é um comércio/ mas um poema com míssil/ ah. ele bomba”, são versos do poema “Os poetas são os novos roqueiros”.

Há poemas reflexivos, porém mundanos. Othelo’s [ 24 horas – porções – drinks – brega ao vivo],é um deles. O título parece se referir a um bordel deselegante no qual a poeta, inspirada pela atmosfera reginaldorossiana, busca o sentido da poesia. Ela subverte o uso do pronome do caso oblíquo e se justifica: “obliquo somos nós”. E segue na contravenção poética: “eu lírico um títere chapado de ego trip”. O poema é enorme, para o padrão da autora (duas páginas) e é recheado de pérolas michelianas: “e sentir é analfabetamente empírico”/ “DEUS ME DE FENDA”. O verso final é pé na porta: “não fecha o rombo que me fode o peito desde que você foi/embora”. Aqui cabe especular se a palavra “embora”, escrita separada do verso, pode ter o sentido não de partida, mas como partícula adversativa. No universo poético de Michele é uma possibilidade viável.

Na mesma linha profana está o poema Desvenda, que tem versos como: “Um poema deveria servir/ pra curar ressaca/ pra pagar aluguel/ pra fechar ferida”; “Um poema não serve pra nada/ além de todas as outras coisas/ que não podem ser resolvidas/ porque não estão à venda”; “O preço do poema é a eterna falta de serventia para fins comerciais”

Sui trata do suicídio (se jogou do oitavo andar) de uma poeta refinada que lembrava Emily Dickinson. O texto tem um ritmo acelerado e perturbado: chega o repórter, o pastor e a polícia. E a mãe que, enquanto isso, fritava ovos no interior de Minas. Sui se aproxima do poema Poeta Suburbano, de Lana, cujo suicídio não está tão definido e o poeta, homem, era da literatura de cordel, mas sinalizam o fim trágico de poetas que não suportam a própria existência.

Mas a síntese do entendimento de Michelle Santos sobre a poesia está nos poemas sem títulos: “Se eu fizesse poesia/ escreveria pássaros/Poemas são todos/ tentativas de voo”; “Poesia nunca servil pra nada” (já citado) e o poema final: “Poesia: estreia do espanto”. Lendo Michelle, entendo que a poeta é a adaga e a poesia é a bainha. O poema para ela, então, está no espaço entre o golpe e o corte. Poesia é perplexidade.

O silêncio é uma prece

Os saraus surgiram na periferia de São Paulo no início da primeira década deste século. Em 2001, Sergio Vaz soltou seu primeiro bordão (“Povo lindo; povo inteligente!”), ainda no Bar do Garajão, no Taboão da Serra. Dois anos depois, o Cooperifa foi para o Bar do Zé Batidão no parque Santo Antonio, em São Paulo, e de lá não saiu mais. Depois veio o Sarau do Binho, da Brasa, Elo da Corrente, Clamarte, Sobrenome Liberdade e outros mais.

No início, os saraus reuniam pessoas que gostavam de ler. Esses leitores começaram a escrever, primeiro nas antologias dos próprios saraus e depois em livros solos. A poesia periférica, assim surgia no circuito de recitais pela periferia e o fato de ser difundida dessa forma, justificava muito o padrão estético dos textos feitos para serem lidos em voz alta. O sarau passou a ser causa e efeito da poesia que nele circulava.

Essa dinâmica induziu um tipo de escrita que ficou um tanto limitada. Era comum a gente se frustrar com um poema que no papel não correspondia ao vigor transmitido ao ser recitado. Os poetas se viam diante do paradoxo de ter de se livrar daquele condicionamento para renovar suas criações. E assim tem ocorrido com vários autores e autoras e a produção literária da periferia mantém seu vigor e uma produção editorial de grande escala. A periferia hoje, tem suas próprias editoras, fechando o ciclo de produção e consumo literário.

As duas autoras aqui analisadas, publicaram seus livros de estreia na poesia (Lana tem um livro anterior em prosa) já nesse contexto mais contemporâneo no qual a experimentação literária já tinha ganho espaço na literatura periférica. Isso significava também não só o desprendimento do sarau, como do território a ele vinculado. Lana e Michele fazem uma poesia desterritorializada que cabe em diferentes contextos, não só da periferia que mal é citada pelas duas. Uma poesia cuja densidade e amplitude de repertórios a conecta com pessoas de realidades e perfis sociais distintos. São livros que expandem o gosto pela literatura e o próprio circuito em que a produção literária da periferia é produzida e consumida.

Lana e Michele, têm entre si, diferenças estéticas importantes. Na forma e no conteúdo. Mas se aproximam no entendimento de que a poesia é um espaço de expressar dúvidas, tentativas, erros, alguma alegria real e muito desejo incerto, de ser feliz. Poesia, portanto, não é um texto absoluto, carregado de convicções, de exaltação como um manifesto. A poesia das autoras que lemos aqui é daquelas que faz o leitor pensar entre uma palavra e outra, como defendia João Cabral de Melo Neto. Essa poesia, pode ser recitada no sarau, mas não com voz exaltada, mas como silêncio ou prece. Michele diz: “ler silêncios dá trabalho”, enquanto Lana anuncia: “poetas rezam/ para um mundo incerto”. “O silêncio é uma prece”, defendem os poetas da Cooperifa, fazendo uso de um jargão do Samba da Vela onde o samba é cantado à capela, sem microfones e à luz de vela, cenário muito apropriado para a poesia das autoras de Cheiro de mato e capim-limão e Toda via.


1 Fala retirada de uma entrevista do poeta reproduzida no podcast de Rodrigo Casarin, publicado no portal UOL em 11 de setembro de 2020: “João Cabral de Melo Neto, além de Morte e Vida Severina. https://youtu.be/SMufmm25rqM

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