Oniska: o xamã como diplomata e tradutor

Ao estudar os Marubo, um antropólogo percebe-se imerso em uma cultura fundada na multiplicidade e na mediação. Nela, o humano é uma entre muitas pessoas – espirituais, animais, etc. O que ensina essa poética xamânica do traduzir?

Foto: Terri Vale de Aquino, 1980, obtida do site do Instituto Socioambiental
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Por Álvaro Faleiros na coluna Visões indígenas em tradução

Saiu em 2011 pela editora Perspectiva o alentado estudo do antropólogo Pedro Niemeyer Cesarino, intitulado Oniska: poética do xamanismo na Amazônia. Um primeiro olhar sobre livro o situa no campo da antropologia. Com efeito, trata-se de sua tese de doutorado defendida no Museu Nacional do Rio de Janeiro, sob a orientação do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Na orelha do livro, lê-se que “este é um estudo etnográfico sobre os Marubo do alto rio Ituí (Vale do Javari)”, mas, na mesma orelha, já se aponta para o fato de ser o trabalho de Cesarino um dos “raros estudos fronteiriços entre antropologia e literatura”.

O trabalho de Cesarino consiste na apresentação de traduções comentadas de cantos e narrativas que compõem o vasto universo das artes verbais dos Marubo. O autor, ao longo do trabalho, articula as traduções que apresenta com descrições dos contextos em que essas artes verbais ocorrem e relatos de xamãs apresentados em versões bilingues, refletindo assim sobre o modo como “linguagem e pensamento se associam em uma cosmologia indígena amazônica”. A fronteira na qual se movimenta o estudo não é, pois, apenas entre literatura e antropologia, mas, talvez, mais especificamente, entre antropologia e tradução, não só pelo fato de ser uma tradução de cantos xamânicos, mas por serem estes últimos, também, práticas tradutórias.

Nesse vasto universo das artes verbais marubo em que mergulha, Cesarino centra-se, como se pode notar pelo título do trabalho, na palavra xamanística, cuja preocupação, aponta o autor, é de “encadear tempos sobrepostos no fluxo dos surgimentos e das transformações”. E, continua Cesarino: “não se trata (com a palavra xamanística) de influenciar magicamente através do discurso, mas de variar o mundo e o sujeito que canta”. Os dilemas aí envolvidos, completa, são “os da horizontalidade, da transformação e da tradução (que conecta xamãs, espíritos e parentes)”.

A questão da tradução é assim uma questão que não só atravessa a prática de Cesarino. Ela é central no modo de funcionamento da arte que se propõe a traduzir, pois o xamã é na cultura marubo uma espécie de tradutor. O capítulo 3 do livro, por exemplo, se intitula “Diplomatas e tradutores: os dois xamanismos”, uma vez que a tradução é “a condição definidora do xamanismo”; o xamã é aquele que negocia com o mundo dos espíritos e é aquele capaz de traduzi-lo.

As relações que ali se produzem são extremamente complexas. Há a existência, entre os Marubo, de uma “pessoa múltipla”, descrita pelo autor da seguinte maneira:

O cosmos marubo pode ser descrito como uma miríade infinita personificada: decidiu se constituir de pessoas; tomou-as como matéria ou tessitura de sua composição, por assim dizer. Pessoas implicam socialidades, deslocamentos, trajetos e posições. “Cosmos” já se torna então um termo impreciso, pois a questão aqui não é a univocidade ou a totalidade, mas a multiplicidade e multiposicionalidade. Não vamos porém jogá-lo fora: basta lembrar que o cosmos de que trataremos é uma configuração posicional, uma série infinita de replicações personificadas, e não um redoma perfeita surgida ab ovo. Há ao menos quatro variantes dessas pessoas que o habitam (…). Estas poderiam ser distinguidas da seguinte maneira: pessoas humanas (os marubo, que chamarei ocasionalmente de viventes…), hiper-humanas (os espíritos yove), infra-humanas (os espectros yochï) e extra-humanas (as pessoas animais). (…) Uma pessoa pode ser compreendida como um ente ou uma singularidade, mas não como um indivíduo: um “bicho”, assim como um humano ou uma árvore, é a rigor uma configuração ou composição específica de elementos que o determinam e diferenciam.

Estamos assim diante de um ‘cosmos’ em que a ‘pessoa’ não é necessariamente humana e onde a noção de indivíduo se desloca para a de ‘ente’, ‘singularidade’ ou ‘configuração’. Nesse contexto, durante um determinado ritual xamânico, o corpo de determinado ente pode servir de abrigo a outro ente, numa operação extremamente complexa que não se confunde com a mera possessão, pois aquele que enuncia a partir do corpo que ocupa é um outro que se configura não por um processo de “sobreposição da pessoa do xamã ao espírito”, mas de “multiplicação fractal da pessoa na miríade personificada”. 

Num dos muitos exemplos encontrados no livro, ao diferenciar os dois ‘tipos’ de xamãs (diplomatas e tradutores), Cesarino comenta que os këchïtxo não realizam os deslocamentos de que são capazes os romeya e seus duplos, cumprindo cada um papeis distintos durante o ritual.

Nisso se distinguem os romeya dos këchïtxo: estes últimos ficam sentados nos bancos kenã enquanto os yove vem cantar através do romeya pendurado na rede. Diplomatas de gabinete, digamos assim, os këchïtxo são os responsáveis por zelar pelo trânsito de pessoas através do romeya, chamando determinados, chamando determinados yove ou duplos de mortos (…) com os quais deseja entreter relações. Os mesmos këchïtxo dizem quando um yove pode ou não partir, além de serem responsáveis por expulsar os yochï que, por ventura, venham a se aproximar da maloca com seus odores e venenos repugnantes. O këchïtxo mais velho é também “como um doutor”. Coordena o evento todo sentado nos bancos e conversa com os demais, manda os këchïtxo aprendizes (os pseudoxamãs) ficarem atentos para o que dizem os espíritos, dá as coordenadas ao rewepei (‘o enfermeiro”), conversa com os duplos dos mortos, identificando uma determinada pessoa que chega, realiza algo como um segundo estágio tradutivo, que consiste na mediação ou transposição para os presentes daquela informação veiculada através do corpo/casa do romeya.

Essas longas transcrições, na realidade uma pequena amostra do complexo universo marubo com o qual Cesarino trabalha, ilustram bem a seguinte constatação do autor: “O cosmos marubo é propriamente uma babel — seu xamanismo, uma teoria da tradução”. No decorrer do livro, Cesarino vai puxando alguns dos fios dessa intrincada rede, recompondo a partir de seu fino olhar antropológico um instigante mosaico para o leitor ocidental ainda pouco habituado a lidar com outras formas de pensamento.

Enfim, ao intercruzar, ao longo de seu livro, recriação poética e investigação etnográfica, uma deixa de simplesmente acompanhar a outra para produzir outra forma de reescrita. Não se trata, pois, nem de discurso etnográfico tradicional nem de pura transposição criativa, mas de contribuição imprescindível para que possamos começar a desenvolver um outro olhar que nos permita ler não mais o mundo do índio pelos olhos ocidentais, mas o mundo ocidental por meio de fractais ameríndios.

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Um comentario para "Oniska: o xamã como diplomata e tradutor"

  1. Lucas disse:

    Eu pensava que o beletrismo vazio havia, pelo menos em parte, sido espurgado nessa plagas. A título de exemplo ao que me refiro:

    “Uma pessoa pode ser compreendida como um ente ou uma singularidade, mas não como um indivíduo”

    “… um “bicho”, assim como um humano ou uma árvore, é a rigor uma configuração ou composição específica de elementos que o determinam e diferenciam.” Eis aí uma bela – mas nem de longe inédita – definição de… indivíduo.

    Para não falar de imposturas do tipo:

    “multiplicação fractal da pessoa na miríade personificada”. Frase timpanosa sem rigorosamente nenhum significado.

    Para arrematar, vejamos esse mimo, dessa vez de lavra dó próprio articulista:

    “Não se trata, pois, nem de discurso etnográfico tradicional nem de pura transposição criativa, mas de contribuição imprescindível para que possamos começar a desenvolver um outro olhar que nos permita ler não mais o mundo do índio pelos olhos ocidentais, mas o mundo ocidental por meio de fractais ameríndios.”

    Se isso não é puro fetiche ocidental, não sei o que é.

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