Cinema: Engrenagens da tirania

Sem deixar rastros conta a história real de um jovem poeta polonês, espancado até a morte numa delegacia, em 1983. Combina rigor e sutileza ao mostrar um ambiente político sufocante, onde, apesar de tudo, resta certa margem para o arbítrio

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema

Sem deixar rastros, do polonês Jan P. Matuszynski, é um desses raros filmes que, a partir de um acontecimento específico, conseguem desvendar a engrenagem da opressão totalitária.

O fato real, no caso, é o assassinato do jovem aspirante a poeta Grzegorz Przemyk (Mateusz Górski), espancado até a morte numa delegacia de polícia de Varsóvia em 1983. Vigorava então no país uma lei marcial imposta para fazer frente ao crescente movimento pró-democracia organizado em torno da federação sindical Solidariedade. Eram os estertores sangrentos da ditadura comunista alinhada à União Soviética.

Drama pessoal e contexto político

Grzegorz era filho de Barbara Sadowska (Sandra Korzeniak), poeta e ativista política de renome nacional, constantemente vigiada e ameaçada pelo regime. A morte do rapaz, aos 18 anos, desencadeia todo um processo de acobertamento, intimidação e construção de mentiras para isentar de responsabilidade as forças de segurança do governo Jaruzelski.

O personagem central, então, passa a ser o jovem Jurek Popiel (Tomasz Zietek), amigo de Grzegorz que presenciou seu espancamento na delegacia. Tudo indica que se trata de um personagem ficcional criado a partir de um amálgama de indivíduos reais. (Um letreiro avisa, logo no início, que o filme lançará mão de liberdades desse tipo.) O importante é que, por meio desse recurso, o diretor Matuszynski consegue articular de modo convincente o drama pessoal de um punhado de personagens com a radiografia do quadro político geral.

É um cinema sólido, maduro e rigoroso como costuma acontecer na melhor produção polonesa. Seja no ambiente informal e alternativo do movimento artístico-intelectual-religioso da resistência, seja nos espaços rígidos e sinistros do poder, no universo doméstico ou no público, a figuração é sempre precisa e objetiva, sem firulas nem gorduras, em imagens imediatamente legíveis e diálogos enxutos.

Rigor e sutileza se combinam de modo notável, por exemplo, num enquadramento em que vemos, na contraluz e sem um foco muito definido, Jurek (de costas para a câmera) chegar a uma estação. Entre vários transeuntes, vemos dois deles caminharem atrás do rapaz, a meia distância. De repente Jurek se detém, e os dois param também. Ele olha para trás, avista os dois e depois segue seu caminho. É uma imagem rápida, numa tomada fixa, mas que conta tudo: a vigilância, a consciência de estar sendo vigiado, a postura desafiadora. Uma aula de concisão.

Escolhas morais

Há uma sensação de inexorabilidade narrativa, como se cada plano levasse inevitavelmente ao plano seguinte, ou como se o demandasse – sem, entretanto, resvalar para o determinismo ou o fatalismo. Mesmo quando se fecha sobre os personagens o mecanismo da opressão (com vigilância, grampos, interrogatórios, ameaças e intimidações), parece lhes restar uma margem, ainda que mínima, de arbítrio, de escolha moral.

A certa altura, um assessor diligente e astuto diz a seu chefe, o ministro militar da defesa ou coisa que o valha, que talvez o melhor seja reconhecer que a morte do rapaz resultou do espancamento por policiais – “um par de sádicos, como existem em todo o mundo”. (Parêntese: sabemos no Brasil quão verdadeiras são essas palavras.) Mas o general durão não quer saber. É preciso criar outra história, forjar evidências, difamar o acusador, encontrar outros culpados e preservar o regime.

A partir dessa decisão política e moral, todo o aparato que caracteriza os regimes totalitários põe-se em funcionamento para a construção de uma realidade paralela. É assim que, longe de ser uma obra anacrônica sobre um fato datado, Sem deixar rastros revela de modo quase didático as entranhas da tirania e da opressão. Vale para todas as épocas, latitudes e espectros ideológicos.

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