Cinema: Paraísos perdidos na montanha

Filme italiano retrata uma amizade contrastante ao longo de décadas — entre um citadino e outro montanhês. Entre paisagens vivas e cambiantes, relação mostra como a cultura filtra a percepção da natureza. E as buscas humanas que se esvaem

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema

Bons filmes sobre amizade masculina são raros. Mas esse não é, de modo algum, o único mérito do italiano As oito montanhas, do casal Charlotte Vandermeersch e Felix van Groeningen, que entra em cartaz nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (31 de agosto). Baseado no romance homônimo de Paolo Cognetti, o filme ganhou o prêmio do júri no festival de Cannes de 2022.

Os amigos em questão são o citadino Pietro (Luca Marinelli) e o montanhês Bruno (Alessandro Borghi), que se conhecem na infância, quando os pais de Pietro alugam um chalé para passar as férias no Vale d’Aosta, nos Alpes italianos. Eles se reencontrarão em vários momentos da vida, ao longo das décadas.

Descoberta do mundo

Por meio desses encontros e afastamentos, o filme aborda com sutileza uma porção de temas referentes a família, trabalho, opções de vida e relações com o grande mundo. Todos esses assuntos se enfeixam em torno de um eixo central, resumido na descrição da vida que Pietro ouviu de um budista no Nepal. O mundo, segundo essa visão, é formado por oito montanhas e oito mares, tendo no centro o grande Monte Sumeru. “Quem aprendeu mais?”, pergunta o homem. “Aquele que percorreu as oito montanhas e os oito mares ou aquele que chegou ao topo do Monte Sumeru?”

Esse dilema não é resolvido pelo filme, mas serve de metáfora aos movimentos dos personagens, sempre em busca de se sentir plenos, “em casa”. Uma imagem recorrente é a do pequeno pinheiro que Pietro planta na montanha e que parece nunca se desenvolver, ilustrando a fala de Bruno de que se trata de uma árvore que dificilmente vinga quando transplantada de outro lugar.

A natureza viva e cambiante das montanhas é um dos trunfos muito bem aproveitados pelos realizadores, até mesmo na opção pelo enquadramento 1.33:1, mais “vertical” que o habitual hoje em dia. A profundidade de campo, por sua vez, é essencial para revelar os infinitos matizes da paisagem da região, bem como a pequenez dos indivíduos diante da imensidão.

Aquilo que se vê é moldado pelo olhar de quem vê. A cultura filtra a percepção da natureza. Num diálogo crucial com os amigos urbanos de Pietro que se deslumbram com a região, o rústico Bruno diz: “A palavra ‘natureza’ usada por vocês da cidade é muito abstrata para nós. Aqui dizemos: rio, vereda, árvore, vaca. Coisas que podemos tocar com a mão e usar para a nossa subsistência”. Faz lembrar as conversas de Dersu Uzala com seu amigo capitão, no clássico de Kurosawa.

O aspecto, digamos, filosófico da narrativa vem entrelaçado com o drama humano dos protagonistas e sua íntima relação de amizade. Aqui prevalece a tradição calorosa do melhor cinema italiano, que Godard disse ser tão forte porque traduz em imagens a expressividade da magnífica língua italiana. Significativamente, os diretores, que são belgas, aprenderam italiano para se comunicar melhor com os atores.

Diálogo entre culturas

A discrição dramática tem um ponto alto na cena da morte do pai de Pietro, no carro, à noite. Não há diálogo, não há música, só o som abafado de uma transmissão esportiva. O homem sente alguma coisa, para no acostamento, liga o pisca-alerta. Numa tomada lateral, a meia distância, o vemos com a cabeça ligeiramente tombada para a frente, como se estivesse dormindo. E basta.

Um detalhe curioso dessa coprodução Itália-França-Bélgica que liga os Alpes ao Himalaia é a trilha sonora quase toda constituída por canções de Daniel Norgren, compositor sueco que canta em inglês. Do ponto de vista narrativo, isso serve para criar um ligeiro distanciamento dramático, impedindo a queda no melodrama. Mas pode também ser lido como uma reafirmação do diálogo entre culturas, do entendimento e troca entre todos os seres do mundo.

Outra ideia que perpassa o filme é a das coisas não ditas, ou ditas quando já é tarde demais. Um belo exemplo são as anotações feitas pelo pai de Pietro, e que este encontra anos depois em pontos isolados da montanha. Os personagens estão sempre à procura do que perderam ou deixaram escapar. Como já disse alguém, o único paraíso que existe é o paraíso perdido.

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