O rap de Marx e a dialética dos Racionais MC’s

De rolê pelo Capão Redondo, o velho barbudo vê no rap a atualidade de sua obra – e o grito silencioso da periferia do capitalismo. Frente a sonhos interrompidos, luta de classes e resistência negra, cantarola: Deus é uma nota de cem

Imagem: Mladen Luketin
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O que o espírito de Marx, o barbudo alemão que esforçou-se para entender a dinâmica de funcionamento do modo de produção capitalista, iria fazer na zona sul da cidade de São Paulo, sobrevoando em projeção astral, o complexo do Capão Redondo?

Talvez, testemunhar com os próprios olhos aquilo que denunciou quase 200 anos atrás ou visitar aqueles que dois século à frente reescrevem O Capital em forma de Rap? O encontro entre Marx e os Racionais Mc’s, grupo que trouxe à periferia paulistana para o mundo, só pode ser realizado mediante a fábula de um escritor. Com certo grau de desconfiança poética, é possível afirmar que tudo é fabulação, a história, os sentimentos, a música, as artes, tudo vive no reino do possível, até ser arrebatado ao mundo concreto, virando realidade, com pulso, vida, movimento, morte, ressurreição.

Marx procurou revelar as leis de movimento do capital. Os Racionais Mc’s dão vida falada ao grito silencioso das mazelas da periferia, demonstrando o movimento do capital em seu aspecto mais real, pois desnudo de qualquer linguagem que não seja aquela própria à qual nasce e sobrevive a desigualdade: a linguagem dos oprimidos pelo capital, não pelo mero fato de que as pessoas virem mercadoria ao trabalhar, mas porque sua liberdade é assaltada logo ao nascer, pois a vida não se escolhe, se constrói e o problema sempre é o ponto de partida.

Nas canções dos Racionais MC’s encontra-se um tipo de dialética diferente da de Marx, sem qualquer inspiração hegeliana, mas inspirada na contradição entre as raízes de “negros, pobres e favelados” e “mundão lá fora”, onde reinam os poderosos. O barbudo alemão admirado por essa faceta dedica algum tempo para ouvir a obra-viva do Rap. De cara, se impressiona com a “batida”, bem diferente das composições de Wagner. Mais à fundo, fica acabrunhado com o ritmo das rimas, longe de parecer com a poesia de Homero. Ao fim, é arrebatado pela composição, as letras, a mensagem que fazem lembrar daquilo que escreveu: “o dinheiro é a essência alienada do trabalho e da existência do homem; a essência domina o homem e ele a adora”. Mano Brow canta o mesmo verso, parafraseando Marx (em espírito, talvez):

Não é questão de preza, nêgo
A ideia é essa
Miséria traz tristeza e vice-versa
Inconscientemente vem na minha mente inteira
Na loja de tênis o olhar do parceiro feliz
De poder comprar o azul, o vermelho
O balcão, o espelho
O estoque, a modelo, não importa
Dinheiro é puta e abre as portas
Dos castelos de areia que quiser

O dinheiro é o centro das relações sociais na sociedade capitalista, é o “feitiço” do Capital, a “puta” que abre os castelos de areia pela detenção do poder, da potência, de um contra o outro. O dinheiro é, ao mesmo tempo, símbolo das relações de propriedade, a essência da miséria e um castelo construído, podendo ser montado, desmontado, erguido à cada vento daquilo que Marx chamou “a maldita ganância” e Mano Brown completou:

Nego drama
Entre o sucesso e a lama
Dinheiro, problemas, invejas, luxo, fama

O dinheiro, em si, não é bem, nem mal, é a essência da dominância do capital sobre os homens, dá a eles a falsa sensação de identidade, pertencimento e poder social. No entanto, quando desfeito o feitiço, abatidas as pilastras de areia, o dinheiro revela a face ocultada pelo Capital, como o “X-9” que entrega seu chefe para ganhar 12 moedas de prata. Não é o capital quem domina o trabalho, mas é o capital quem domina os homens através do dinheiro, transformando-os em mercadorias que tendem a se tornar miseráveis para que o capital se acumule, se reproduza, fazendo às vezes de lágrimas derramadas no cotidiano da miséria do trabalho, da fome, da vida periférica, onde as pessoas são medidas pela cor, pelo status, pelo dinheiro, pelo gênero. Como os pregos que prenderam Cristo na cruz, o dinheiro amarra os homens às lágrimas do cotidiano:

O que é, o que é?
Clara e salgada,
Cabe em um olho e pesa uma tonelada
Tem sabor de mar,
Pode ser discreta
Inquilina da dor,
Morada predileta
Na calada ela vem,
Refém da vingança,
Irmã do desespero,
Rival da esperança
Pode ser causada por vermes e mundanas
E o espinho da flor,
Cruel que você ama
Amante do drama,
Vem pra minha cama,
Por querer, sem me perguntar me fez sofrer
E eu que me julguei forte,
E eu que me senti,
Serei um fraco quando outras delas vir
Se o barato é louco e o processo é lento,
No momento,
Deixa eu caminhar contra o vento
Do que adianta eu ser durão e o coração ser vulnerável?
O vento não, ele é suave, mas é frio e implacável
(E quente) Borrou a letra triste do poeta
(Só) Correu no rosto pardo do profeta
Verme sai da reta,
A lágrima de um homem vai cair,
Esse é o seu BO pra eternidade
Diz que homem não chora,
Tá bom, falou,
Não vai pra grupo irmão aí,
Jesus chorou!

As lágrimas do cotidiano da pobreza aparecem para Marx como fundamento da riqueza da burguesia: “O economista denomina necessidade artificial, primeiro, as necessidades que têm origem na existência social do indivíduo; segundo, aquelas que não fluem de sua crua existência como objeto natural. Isso mostra a pobreza intrinsecamente desesperada que constitui o fundamento da riqueza burguesa e de sua ciência.”

Ora, se o dinheiro prende os homens ao cotidiano das lágrimas, no ato em que fundamenta a riqueza dos “ricos”, não é, nem para Marx, nem para os Racionais MC’s, o grande problema da sociedade capitalista, mas a forma oculta desse problema. Por um lado, a ausência do dinheiro traz a miséria cotidiana, por outro, sua presença traz a alienante posse de um castelo, onde o rei é o vassalo.

Trocando uma ideia, talvez Marx concordasse com Mano Brown, e este com Marx:

Às vezes eu acho que todo preto como eu
Só quer um terreno no mato, só seu
Sem luxo, descalço, nadar num riacho
Sem fome, pegando as frutas no cacho
Aí truta, é o que eu acho
Quero também, mas em São Paulo
Deus é uma nota de cem
Vida Loka!

Esse verso exprime aquilo que Marx já havia avistado, a grande questão em jogo no “regime do capital” é a luta de classes, assentada sobre as relações de propriedade. Porque todos não tem um “terreno no mato, só seu”? para fruir da liberdade, do tempo livre, da esperança do amor? “Deus é uma nota de Cem”, diz o verso, é a desumanização do Cristo que se fez homem, para virar papel pintado, tudo isso, diria Marx: “para que o capital realize seu conceito, dinheiro que faz dinheiro” (paráfrase).

A vontade “truta” não é barrada pelo intransponível poder do homem sobre o homem, mas da consciência dos oprimidos sobre sua força contra os opressores. Diria Marx:

“As ideias dominantes de uma época sempre foram as ideias da Classe Dominante[…] A história da sociedade até aos nossos dias é a história da luta de classes[…] Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe determina a consciência[…] É por isso que a humanidade só apresenta os problemas que é capaz de resolver e, assim, numa observação atenta, descobrirá que o próprio problema só surgiu porque as condições matérias para resolvê-lo já existem, ou estavam em vias de aparecer”

Colecionando essas ideias de Marx, talvez a esperança da “fartura” alegre o “sofredor”, pois a cada dia o capitalismo, em seu movimento contraditório, produz a possibilidade para o reordenamento do poder, a antessala da propriedade, para que um dia encontre-se o sonho de Marx e de Mano Brown com duzentos anos de distância, em um só tom, da Baviera ao Capão: “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”. Sem pobreza, discriminação, separação entre gêneros, classes, castelos humildes à beira de riachos, colhendo fruta, comendo uva no cacho. Esperança! Até porque:

Porque o guerreiro de fé nunca gela
Não agrada o injusto, e não amarela
O Rei dos reis, foi traído, e sangrou nessa terra
Mas morrer como um homem é o prêmio da guerra
Mas ó, conforme for, se precisa, afoga no próprio sangue, assim será
Nosso espírito é imortal, sangue do meu sangue
Entre o corte da espada e o perfume da rosa
Sem menção honrosa, sem massagem.

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6 comentários para "O rap de Marx e a dialética dos Racionais MC’s"

  1. Igor disse:

    O dinheiro é o Deus palpável

  2. Edilson Dos Santos Rodrigues Modesto disse:

    Racionais a Voz Da Favela

  3. Sergio Roberto de Melo Tatarcenkas disse:

    Sensacional!!
    O retrato da nossa atualidade retratada em dois ótimos pensadores!!
    Melhor três, seu texto da voz a milhares de pessoas que têm essa visão mais não sabem como fazer!!

  4. José Ramiro Pereira dos Santos disse:

    Parabéns pela atualização da Obra do Marx. Ou pelo enraizamento da Obra dos Racionais.
    Bem didático seu trabalho.
    Muitos professores, como eu, já fazem isso na periferia, mas você fez de forma brilhante.

  5. LEANDRO disse:

    Belo texto, que comparação extraordinária.

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