Ponciá Vicêncio: A rebeldia de fabular, em meio ao cinismo

Reflexões sobre o romance de Conceição Evaristo. No percurso adverso de uma menina-mulher negra, as violências racistas, mas também o poder da fabulação e do riso rebelde contra o cinismo dos opressores — e a ousadia de ser a si-mesma

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Na história literária, certas obras possuem a fortuna duvidosa por serem lidas e discutidas em contextos sociais de intensa verborragia nas altercações públicas e culturais. E o esplendor narrativo delas as tornam uma imensa teia com múltiplos fios de prosa, variados eixos de poeticidade e diversos entrechos na linguagem, de sorte que são apropriadas pela amplitude discursiva que estrutura aquelas referidas circunstâncias. Isto expressa, por um lado, a força estética de alguns textos ficcionais e demonstra, por outro, que necessitamos questionar a consonância absoluta entre literatura e a conformação social, relativamente, preponderante. Quem não se lembra que a Comédia Humana, de Balzac, foi recepcionada em certos ambientes como romance realista; que os russos Dostoievski, Tolstói, Puchkin e Tchekhov foram excluídos do repertório de escritores monumentais por pertencerem ao mesmo país da burocracia assassina estalinista; e que Marcel Proust foi alheio, por construir personagens para muitos subjetivistas (e esnobes, que equívoco) aos problemas de seu tempo – faltava ao autor do Em busca do tempo perdido, malgrado a beleza de seu romance, o espírito francês do engajamento intelectual. Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, é um desses explícitos infortúnios da literatura na história. O exprimir convencional na qual a dimensão estética das letras (Marcuse) por vezes é aprisionada nos boldriés da sociedade e os interesses que a sustenta e organiza se abateu sobre um dos maiores romances de nossa literatura. Conceição está no mesmo panteão canônico de Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Bernardo Carvalho, Marcelino Freire, João Cabral, Cecília Meirelles e tanto outros e outras. (Machado, Guimarães e Drummond são da esfera do gênio poundiano; estão em outro estatuto da crítica literária e cultural.) Será inusitado, da ordem do espantoso mesmo, se encontrarmos leituras que não atribuam ao seu enredo, o de Ponciá Vicêncio, o percurso adverso de uma menina/mulher negra diante de posições que lhe são impostas por arranjos, racistas. (E o são, definitivamente – e temos de fazê-los desabarem via o impulso revolucionário negro.) E naturalmente se deduz: Ponciá construiu a identidade que porta, no caminho áspero de sua vida com vontade de recognição. É como se Conceição Evaristo estivesse a nos conceder um catálogo (novelístico) para utilizarmos em conversações bem pensantes reguladas por aspectos astutos de uma “cruel” tolerância repressiva. Entretanto; o que Ponciá deseja é profanar e subverter as estruturas paradigmáticas que lhe querem sempre sequestrar a língua (contingente e comum) da liberdade efetiva.

Há uma dicção da não-identidade (Adorno) em Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo. Na capa da edição da Pallas (2019, 3ª ed. 5ª reimpressão) – supõe-se ser Ponciá. Ao lado vemos a parte de uma estrutura que pode constituir diversos entrechos arquitetônicos; a casa de nascença, o cômodo do avô Vicêncio, o espaço de descanso de quando residia na cidade, ou mesmo o museu na qual foi exposta a arte sua e da mãe. No enquadramento da ordenação sobressai-se uma personagem enigmática, de braços longilíneos, as não-mãos estão ocultas, assim como os pés, suposição frágil de que sejam de Ponciá – pois não sabemos se a capa a reflete, se há uma única Ponciá, ou se há ali teor de verdade de infinitas Ponciás. O que vemos, além disso? Vemos a semblâncias de um rosto altivo. Não a expressar arrogância cínica – mas como insubmissa enunciação sacrílega aos esquemas da realidade. Como se estivesse a nos dizer; enfim a apesar disso tudo eu acharei vocês lá naquele agora derradeiro. E lá sim, neste irromper da liberdade, é que testemunharão do que minhas mãos são capazes. Do que esses braços podem empunhar… Revela-se na imagética da capa, com forte pujança, à frente das armações erigidas seguramente não pela figura “representada”, um tronco firme, um desejo fortuito de ecoar a voz, uma ironia radical explicitada na disposição de si – ora, vê-se que há na Ponciá presumida não a memória da identidade racional e voluntariamente bem localizada para ser recuperada. Na moça da capa de Conceição Evaristo estamos a verificar a presentificação poética, de alguém “qualquer”, na busca por fazer ruir as normas da reconciliação (prescrita). É necessário ver, enxergar e entrever a outridade universal pela luminosidade romântica do rosto desafiador da capa de Ponciá Vicêncio.

No entanto, a personagem de Evaristo está lançada na temporalidade. Para ela o “tempo corria também” (p. 13); não o tempo dos objetos de estabilidade da vida – a circunstância do transcurso da existência para Ponciá eram a da indeterminação mesma da universalidade por se fazer. Por isso ela sempre via no “arco-íris no céu” (Ibidem) a esperança de ser si-si-mesma. No desvelo narrativo dela, então, estava a possibilidade de tornar-se si-mesma no ser-outro do tempo; não há identidade – existe sim a vicissitude feliz de uma “aflição danada” (Ibidem) em passar sob o arco-íris afrontando os costumes. Quem “passasse debaixo [dele] virava menino” (Ibidem). Seria ingênuo ao aprumo da capa, a convenção social de não tocar seu eu material-afetivo para enfrentar aqueles que lhe diziam: Ponciá não passe por debaixo do arco-íris, és menina desde sempre. Engana-se quem lê nos trechos em que a personagem de Conceição Evaristo resvala as mãos por si com o temor da não confirmação de que é uma menina. (Uma menina que quer identificação-socialização – diga-se.) No tatear a corpulência, Ponciá quer isto sim exprimir as múltiplas densidades de vida que podem se abrir; ela, então, aceitou a não-representação das formas de existência. Quer ser menino; não-quer-ser a Ponciá das convenções – seu desejo profano sempre foi ficar “horas e horas na beira do rio esperando a colorida cobra do ar desaparecer” (Ibidem). Não sem antes lhe excitar com o veneno obsceno da negação do outro que não quer em-si-mesmo-no-outro que vislumbra a liberdade. Se muito leem em Conceição Evaristo o ponto sublime de uma literatura dos grupos minoritários, é porque não estão exaltados pelo sibilar da linguagem de Ponciá. Na sua eloquente existência, ela, constantemente rompia o patíbulo das similaridades impostas. Ponciá, num ato de crispação subjetiva, atravessava os limites do possível em busca da aurora verdadeira. Suas transfigurações – estão sempre a urdir o enredo da obra. Na evocação do Vô Vicêncio, figura mítica a se imbricar no corpo de Ponciá, a menina-menino explicitava o impulso poético de uma presença que quer os prazeres da indeterminidade – “agora imitava o avô?” (Ibidem, p. 16). Após o assombro libertador, se dizia que “lembrava pouco o pai” (Ibidem). Em trecho memorável do romance, Evaristo deixa o leitor intuir que Ponciá assim se impelia na vida – tornando a emergência do não-idêntico efetividade – porque o “amanhã [dela] era feito de esquecimento” (Ibidem, p. 18). Não é que Ponciá Vicêncio, por circunstâncias outras, tenha sido destituída de memória, ou mesmo pretendeu afirmar a inadequação por vezes estandardizada do passado. Conceição Evaristo mais do que qualquer escritora ou escritor da literatura brasileira compreendeu o sentido do tempo para personagens como Ponciá.

Eventualidade e imprevisto compõem as formas de peripécia da personagem de Ponciá Vicêncio. Por vezes sua busca por si revelava o esplendor da laboração estética e narrativa, Ponciá não estava tomada pela representação dos seus modos de vida cultural de sorte a fazê-los ganhar moldura racional e, artificialmente, construída. Sua liberdade, a bem dizer uma liberdade a ser lutada, combatida com denodo e ternura firma, residia na externalidade do seu qualquer insigne; assim ao dar forma ao barro não era ela a ser espelhada, ou sua identidade social. Ponciá criava as feições artísticas que pudessem atravessar a espessura do tempo e viesse a nos dizer que algo deve ser transfigurado na nossa existência – por isso sua mãe se espantava ao ver a escultura sublime feita por ela. A arte da escultura de Ponciá negava a si mesma, pois era a imagem do “Vô Vicêncio” (Ibidem, p. 20); “sim, era ele igualzinho! O que fazer com criação da filha?” (Ibidem). A menino-menina conseguia com exuberância lírica não trazer o passado de uma vida de então; o feito de Ponciá Vicêncio foi guardar “na memória” tudo aquilo que deveria ser impugnado na vivência outra. Vô Vicêncio, após cintilar como passado (recusado) desaparece da narrativa de Conceição Evaristo. Estilhaçam-se na presentidade de Ponciá os modos de imitação de tempos encerrados, arde na personagem de Evaristo o fogo da universalidade séria. Ela sempre, “sabia para onde estava olhando […] via tudo, via o próprio vazio […]” (p. 27); no abandono sobranceiro de uma sociedade que insistia em agarrá-la com a violência da identificação, Ponciá Vicêncio figurava pra si (e o si aqui é estilizado, pois ele é a multiplicidade densificada de variadas existências) aquele comum-que-vem como lugar de efetividade livre. Ora, a menina de Conceição Evaristo, na recusa ingênua do círculo de aço forjado pela história para prendê-la, “resolveu sair do povoado em que nascera, a decisão, chegou forte e repentina” (p.30). Sem nenhum tipo de concupiscência pela “civilização”, Ponciá tinha ânsia de experiências que a arrebatariam para além dos laços falsos de um passado forçoso. Quem ler em Ponciá Vicêncio o enredo ingênuo de uma personagem que está a escrever a si mesma na procura do reconhecimento histórico ao lograr da jornada (ou mesmo no transcurso) terá poucas possibilidades de adentrar na sublimidade ardorosa de Evaristo. Sua Ponciá – não é a nossa para se fazer nossa. Os sonhos de denegação poética a formas de vida aos quais as “colheitas [eram] entregues aos coronéis” (Ibidem) eram uma vulcânica “certeza” (Ibidem) de que “o outro dia” (Ibidem) tinha de ser buscado. A menina de Conceição Evaristo, na deposição de sua identidade (normatizada); caminhava “firma, sempre em frente” (Ibidem, p. 31). Ponciá, desde criança, ao desafiar o costume de não se enfrentar a natureza katechôntica do arco-íris, sempre “teve coragem” (p. 35). Ora, a dicção que explicitava sua presença era a do tempo de si.

Não era o tempo de uma sociedade fundada em mitologias da desfaçatez. Nas coisas aos quais Ponciá se lançou a temporalidade se transfigurava em fabulação encantada; da época passada que se supunha que a menina de Conceição Evaristo tinha temor, descobre-se no enredo que o verdadeiro “receio [era] de cobra” (p. 43) – tornar o presente imune ao veneno desavergonhado de uma reconciliação com o decorrido nacional, com o vetusto imposto como se fossem maneiras históricas de falar uma vida estilhaçada que se quer amaneirar, foi um dos mais belos gestos da trama de Ponciá, e conformada por ela. Ocorre que o tempo de Ponciá Vicêncio é eivado pela feição da realidade, “segu[ir] adiante” (p. 43) significava impelir a maldade do cinismo (o veneno) de outrora nas formas vivenciais em que qualquer identidade, ou mesmo recognição, é rompida. Lá naquele lugar do tempo ao qual Ponciá presenciou crianças “lavra[ndo] a terra” (Ibidem) ela, com o “coração aos pulos” (Ibidem), teve a ousadia da indeterminação, pois a luta da menina-menino era (e ainda é…) um forte tatear disruptivo que nega a certeza do idêntico – mais do que afirmar uma escrevivência cândida a personagem de Evaristo buscou desde sempre “apartar-se de si mesma” (Ibidem). E, por vezes, quando volta a si era na incerteza da meia-noite. Assim, nestes momentos Ponciá Vicêncio ia “ao velho baú de madeira” (Ibidem) e questionava tudo. Indagava sobre o tempo; não aceitava aquele regresso venenoso ao período do lavrar a terra de outrem (coronéis); interpelava a necessidade de se evocar o retorno ao passado; perguntava, intuindo a resposta e pronta a desferir a sua, acerca de quão forte e cruel era a repetição de um social envelhecido que não mais deveria existir. Aqui, o romance de Conceição é um arabesco verbal. Há inversões do tempo na enunciação que transbordam a estrutura mesma de significações; as insinuações lineares da narrativa são isto sim traços autênticos que rabiscam a vivência de Ponciá. O tempo da outridade a arrebatava sempre, por isso a sensibilidade da menina de Evaristo – transitava por entre as frestas de uma condição social que a queria no patíbulo da representação (representatividade). Em uma mesma tessitura, encontramos a vindicação de uma voz a enunciar “o retorno à terra […] à casa […] ao mesmo lugar” e a denegação poética ao qual Ponciá Vicêncio experienciava de quando não aceitava o passado. Seu transcurso, seu enviar-se a si na contingência “era tomado pela ausência” (p. 49) vislumbrando a liberdade. Na prosa de Conceição Evaristo ela está a nos dizer, pelos olhos, fala, mãos, sentimentos e subjetividade do menino que deu figuração, que é no “lugar (ou lugares) vaz[ios]” (p. 50) onde a chama do qualquer da presentificação ilumina o horizonte que alcançaremos o tempo da não-identidade livre. Se o tempo vazio, do indeterminado, explicitava a recusa viva de Ponciá ao espelhamento das normas passadas e presentes, seu irmão Luandi aceitou os encantos sorrateiros da imitação. Neste caso, o romance Ponciá Vicêncio, mesmo para seus leitores e leitoras que não o lê de perto, exercita em nós a percepção compreensiva e aguda de um enredo que tensiona a realidade (nacional) modelada desde há muito – de quando o irmão de Ponciá se vê imbuído, espiritual e concretamente, a legitimar as maneiras de identidades forjadas por uma prática cultural pérfida. Soldado Nestor; “Luandi admirava o Soldado Nestor” (p. 58); e toda sua trajetória romanesca foi posta aos cuidados dessa derrisão. Enquanto Ponciá atravessava, herética e incendiária pela lei do arco-íris – e desejou a não-determinação de si (queria ser menino, para tocar nela-nele e se transfigurar no ir e vir da existência) – Luandi quis ingenuamente a imitar e reproduzir. Ele “guardou de lembrança o bilhete que Soldado Nestor havia escrito” (p. 58); Conceição Evaristo, na forma da emulação, escreve para erguer um muro poético entre os que aspiram “ter a voz alta e forte” (p. 62) e aqueles e aquelas para quem o teor de realidade significa “não que[rer] mais nada com a vida que lhe era apresentada” (p. 77). Nas dicções exuberantes da menina Ponciá estava no horizonte; o tempo não-representado de “um outro lugar […] de outras vivências” (Ibidem).

Como uma não-personagem, a menina Ponciá Vicêncio se imbrica na efetividade-de-si. Não é explícito o arranjo literário mobilizado por Conceição Evaristo na “conformação” da não-identidade de sua menina-menino. Nos múltiplos entrechos (narrativos) a enunciação impetuosa de Ponciá se transforma em diversos modos de falar a experimentação da vida que se quer livre, que se quer na porfia real por essa. Mas era um transformar que jamais se conteve no ludíbrio das opções obscenamente oferecidas. Em Ponciá Vicêncio há um alerta que troveja sobre os que se deixam serem cordeiros; a menina Ponciá em nenhum instante de seu périplo ambicionou a antípoda esnobe e cruel da famula. Os traços mesmos de sua aparição não eram a organização insossa do pretérito por binarismos falsos – transfigurado pela forma social periférica em dividendos. Em Ponciá Vicêncio o que está sendo narrado pelo empuxo romanesco de Conceição Evaristo, são vozes outras desejando fazer desabar o andaime de um lugar edificado por meninas-meninos poncianas; há, assim, um transverter os laços cínicos do cotidiano. Se estamos a ler (e diante de) um não-personagem que recusa a identidade imposta é porque Evaristo fez sua obra infletir a realidade, para fazer Ponciá irromper como um outro-de-si-em-si que perturba a ordem social. Ela aparece na cidade; retorna para os Vicêncios; expressa-se pelo gesto espantoso do Vó; modela sua vida na dimensão da arte; fala pelos lábios da não-certeza indômita do tocar a si mesma. Nada revela mais essas circunstâncias de quando Conceição faz de sua menina Nêngua Kainda. Ora, se desafiou altiva as normas e os costumes históricos da sociedade que proibia as travessias pelo arco-íris, ao arrostar sua repetição-reprodução nos “trajes de Luandi” (p. 81) a prosa de Conceição contada por sua menina alegoriza com feição extraordinária e luminosa a palavra ardente de Ponciá. Nos devaneios poéticos de Ponciá Vicêncio, a forma mesma da não-identidade crispa com violência a realidade quando Ponciá-Kainda-menina-menino-vó Vicêncio incidem na matéria nacional rindo de Nestor-Luandi “dizendo que o moço estava num caminho que não era o dele. Que estava querendo voz de mando, mas de que valeria mandar tanto, se sozinho?” (p. Ibidem). Ponciá – era debochada. Entretanto, não o deboche sórdido mimetizando o caráter vernacular; sua decisão histórica foi sempre o riso do enfrentamento, a graça sublime da recusa à sociedade dos soldados Nestores (mesmo sabendo ler e escrever com “letra bonita” (p. 82) eram soldados), a gargalhada lírica-rebelde que de tão alta era “quase muda” (p. 83), mas que na verdade fazia emudecer os adversários ocultos. Com uma composição literária que a todo o momento dobra-se sobre si mesma para tornar o real denso de significações, Conceição Evaristo faz Ponciá novamente se imbricar na experiência social – numa dialética endiabrada a menina-menino põe-se enquanto avesso de si na mãe. Ora, o tempo que é desafiado por Ponciá; é a possibilidade de uma vivência de liberdade em fazer arrebentar a reconciliação linear que está em jogo aqui. A temporalidade entrelaçada nos passos sibilados da mais nova dos Vicêncios (mãe de Ponciá-Ponciá) era expressa nas múltiplas vozes que se faziam ouvir no enredo. Devaneios insignes cortam a vida de Ponciá, ela jamais se apresentou como a menina das representações apócrifas pela moralidade de uma matéria social de derrisão. Seu encanto lírico, na verdade, figurava experiências outras nela mesma; o tempo da (não)identidade na personagem de Conceição Evaristo destituiu a si-mesma – Ponciá foi “Maria Ponciá [que]” ouvia-e-se-tornava a “Nêngua Kainda”. É como se ao vislumbrar as formas de uma sociedade constituída que quer atitudes castas para a violência imitativa dela, o menino do arco-íris dissesse que vai “desafiar o tempo” (p. 91); e assim o fez na arte com as “criações feitas, como se as duas [os dois] [Ponciá e mãe Ponciá] quisessem miniaturar a vida, para que ela coubesse e eternizasse sobre o olhar de todos em qualquer lugar” (p. 89). Pois nos modos de ser outra para latejar a ela-ele mesma ouviu, se ouviu, ouviu a mãe, que era ela na Nêngua Kainda que “é preciso esquecer a vida guardada debaixo da terra” (p. 91) – na infinitude poética que Evaristo teceu, Ponciá sensível à pulsação do real “arrebenta a terra desabrochando o viver” (Ibidem).

Mas a força estético-social de Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo está na constelação literária de uma prosa romanesca que diz seus sentidos por alegorias (Vico) em contrário. A presença do Soldado Nestor é plena de realidades confessadas, ao qual o périplo de Ponciá tensiona em desabar; para dele mesmo emergir “o passado-presente-e o-que-há-de-vir” (p. 111). A menina Vicêncio “jamais” interagiu literariamente com o Soldado Nestor. Nestor é a inerência ostentada que em Ponciá Vicêncio necessita não findar, mas ser findada pelas mãos das Ponciás. E conforme Ponciá sentia pelas vertigens do tempo que Nestores agiam desde há muito para “adocicar um pouco [a] água e oferecer para a[s] mulher[es]” semelhantes a ela, a mãe – uma sociedade de Ponciás exige o embotamento cínico para sobreviver –, ela entendia que a inocência (bem tramada e insubmissa) da linguagem poderia constituir-se como artifício para a liberdade buscada. Ponciá renunciava não apenas às medalhas simbolizadas em Soldados Nestores; enquanto infrangível dicção de uma negatividade universal do idêntico ela recusou para si o carinhoso-repressivo abraço da Instituição-Nestor – é ingênuo não querer entender, enxergar, no texto de Ponciá Vicêncio, que Conceição Evaristo está cifrando uma passagem como esta em que “Soldado Nestor pegou a trouxa da mulher [a mãe de Ponciá] carinhosamente, passou o braço pelos ombros dela e andaram até a delegacia. Estava feliz” (p. 101). (Delegacias estão no nosso chão social desde há muito: e Ponciá sempre soube disso.) Pela exuberância de Ponciá Vicêncio, menina-menino que ousou fazer estilhaçar a cultura violenta do arco-íris, Evaristo quer a arrebentação de uma sociedade forçada a se verter em Soldado Nestor – que abraça “delicadamente” e leva para a “delegacia” – mas na sua matéria brasileira (Roberto Schwarz e Paulo Arantes) é a razão planejada de “um pulso de ferro a segurar o tempo. Uma soberana mão que eterniza […] [quer eternizar] uma condição antiga” (p. 42). Como uma subjetividade que queria o trovejar da não-identidade Ponciá vislumbrava a liberdade das Ponciási – pois para ela “a vida era um tempo misturado do antes-agora-depois-e-do-depois-ainda […] a vida era a mistura de todos [todas] e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam serii” (p. 110).

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i Tentei articular nesse texto: a crítica imanente materialista; a filologia de Giambattista Vico e a tradição crítica brasileira.

ii Usei a edição da Pallas de 2019, 3ª ed. 5ª reimpressão.

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