Literatura dos Arrabaldes: O eu profundo e os outros eus

O coração na ponta da caneta em duas poetas da periferia. Em gritos, sussurros, devoções e resistências, a intimidade como convite à diversidade que habita o eu, sem narcisismos, e a cantar a esperança diante da correria do mundo

Imagem: Tizta Berhanu, Love Each Other (2020)
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Por Eleilson Leite, na coluna Literatura dos Arrabaldes

Compartilho a leitura dos livros Roube-me por favor, de Lids Ramos, atual Lids Sikeleli (Poesia na Brasa, 2010) e Cotidiano Poético, de Jesuana Prado (Independente, 2014). Lids é educadora, produtora cultural e reside da Cidade Ademar, distrito da Zona Sul de São Paulo. Jesuana é pedagoga e psicanalista mora atualmente no Taboão da Serra, mas, desde que chegou em São Paulo, em 2016, viveu no Campo Limpo, bairro também da Zona Sul e que fica na divisa com o referido município. Lids é cria da periferia paulistana e nasceu em 1979, enquanto Jesuana, também periférica, é de Fortaleza, Ceará e é de 1983. Ambas escreveram seus livros quando passavam pelo Ciclo de Saturno (em torno dos 30 anos), o que talvez possa explicar o tom acentuadamente pessoal das obras.

Lids era figura de destaque na cena de saraus na primeira década deste século. Frequentava o Binho e a Cooperifa até que criou um sarau para chamar de seu: Sarau da Ademar que surgiu por volta de 2010, fez muito sucesso, publicou uma antologia, mas se desarticulou. Em 2013, ela começou a iniciação no candomblé e se afastou um pouco do rolê cultural. Nos últimos anos, porém, já como Lids Sekeleli, ela ressurgiu exuberante. Penso que colocar em relevo sua produção poética é dar o devido destaque a uma escritora que pouco se expôs individualmente. Mesmo o livro que abordamos aqui é coletivo. A obra é dividida com dois outros autores: Henrique Godoy e Carolzinha Teixeira.

Jesuana, ao que me consta, não teve uma atuação no circuito cultural no Ceará. Sua principal referência de engajamento é a Pastoral de Juventude do Meio Popular (PJMP), movimento ligado à Igreja católica. Essa sua formação diz muito da poesia feita pela autora que é permeada pela crença em Deus e outras divindades, na vida, na natureza e nos seres humanos. Os poemas têm tom de prece e de clamor de uma mulher despojada de ambições e sedenta por amar e mudar as coisas, como dizia seu conterrâneo Belchior. Desde que chegou a São Paulo, atua no território do Campo Limpo onde participa da Casa Abya Ayala, Editora Vicença e outras ações feministas.

Embora pessoais, os livros não têm um traço narcisista. Ao falar de si, as autoras falam de uma coletividade, da vida, das lutas. Não são instâncias distintas o eu profundo e os outros eus que habitam fora de seus corpos. Também não são heterônimos, como em Fernando Pessoa (que me serve de inspiração para o título deste artigo), mas elas próprias em versões atualizadas. Uma diversidade em si mesmas. Isso faz com que os livros tenham uma unidade muito forte, cujas partes são reveladas sutilmente. Não há rupturas, mas gradações de tom que confirmam a coesão, mas apontam contradições também. Ler Jesuana e Lids é fazer um exercício do sentimento como é pensado e do pensamento como é sentido.

Roube-me por favor

Os 21 poemas de Lidiane Ramos guardam entre si uma evidente aproximação temática dado o tom pessoal que ela dá aos textos, mesmo quando as composições se afastam do tom lírico predominante da obra. Observando no todo, porém, é possível perceber distinções numa escala de tom como já foi dito. Classifiquei os poemas em quatro grupos. O primeiro é aquele com poemas do eu profundo que somam oito textos, quase a metade da parte que lhe cabe do livro coletivo. Com sete poemas, vem o bloco que chamo de conduta, no qual a autora discorre sobre a ética das pessoas. Os seis poemas restantes estão divididos igualmente: três de amor e três de engajamento. Nos de amor ela fala mais de sexo e consegue ser sutil, mesmo sendo explícita: “tão forte é o enrosco/ da rocha mais dura/ com a flor mais profunda” (Último tom). Nos poemas de engajamento ela destaca o Sarau da Ademar do qual foi uma das fundadoras e a luta das mulheres negras, sendo um deles inspirado numa apresentação da Cia Capulanas de Artes Negras.

Para falar de si mesma, Lids recorre às metáforas associadas ao corpo: 1 ½; no fundo, dentro, rodopio, lado. Usa também imagens relacionadas à natureza como dilúvio. A opção por tais recursos denota um movimento de reflexão que, quando feito para dentro, se dá em partes e para fora vem em transbordamento. Mas não há uma separação rigorosa entre os dois como se pode observar nos poemas Ao meu dilúvio e 1 ½ de mim. O primeiro é um poema lírico e reflexivo: “Prezo tanto a liberdade, e, no entanto/ vira e mexe me apego numa ‘coisa’/ me enrosco em outra/ isso quando eu não cismo/ um depósito do nada/ a escrita, minha válvula de escape”. Um poema “desabafo” como a própria autora o define e uma enxurrada de sentimento como sugere o título. Já em 1 ½ de mim fala da liberdade alcançada por meio do desapego: “mas logo que você se desprende de (laços)/ está livre pra mover-se no desconhecido”, mas na próxima estrofe ela recua: “Para quê… essa tal liberdade/ se acaba se prendendo à coisas -… a pessoas (…)”. Na estrofe seguinte fala do silêncio que é um recolhimento necessário “para o combate diário”. E alerta na estrofe final que o seu silêncio não denota um distanciamento: “distante no interno 1 ½ de mim”.

A fixação da autora por compartimentar seus sentimentos tem no poema Benção mamãe, benção papai, uma espécie de matriz que serve de guia para o leitor. Trata-se de uma singela declaração de amor aos pais. Primeiro a mãe, de quem herdou a sabedoria da mulher negra. Depois o pai que é inspiração e teimosia. Ambos vivem aposentados em Minas Gerais, às margens do Rio São Francisco. São as duas partes dela. Ou seria as duas margens do rio? Em Motivo ela assume que apenas uma parte de si encontrou um rumo e a outra não. Essa parte perdida vive uma busca aflita. Suplica “para que acabe todo o sofrimento da vida”. Em Um outro lado de mim explora mais uma vez a dualidade de sentimentos que tensiona sua existência: “um lado meu é estranho/ um medo de me entregar (…)” e na segunda parte do poema: “por outro lado/ anseio pelo sabor/ gera-me o gozo (…)”.

De dentro de mim é um poema bem-humorado no qual fala da menstruação. Ela expõe o quanto esse sangramento mensal lhe atormenta e tumultua sua vida: “odeio menstruar!/ odeio ficar mais chata do que já sou/odeio absorvente, todos eles! (…)”; e ironiza: “eu não fico menstruada e sim ‘monstruada’”. Em Lá bem no fundo de mim temos um poema que explora mais uma vez a inquietação existencial da autora: “fosse adeus ou até logo/ toda partida era aborto/ e parto…”. O texto tem um ritmo apressado com versos curtos nos quais a metáfora da compartimentação de si aparece mais uma vez: “toda partida me repartia em desiguais pedaços…”. Mas o tema do poema é a partida: “Partia/ para renascer/ preparar-me/ e partir, de novo/e às vezes penso/ que partia e parto/ porque, ainda que haja dor/ partir nunca foi o último/ e, sim, o primeiro ato/ do espetáculo que eu desafio/ entre partidas”. A autora alcança uma boa sofisticação no uso das palavras para expressar os sentidos da partida. Tal elaboração remete-me a Milton Nascimento: “chegar e partir são dois lados da mesma viagem”. Termina o verso falando da partida final: “Cedo ou tarde (tomara bem mais tarde)/ a indesejada linha de chegada…/ que é partida/ e que não se reparte/ o inevitável encontro/ eu/ em mim/ comigo mesma”.

Os poemas de conduta e proceder têm em O poder da palavra um dos principais textos. O poema discorre sobre a palavra como causa e efeito do sentimento que ela expressa. Tendo o poder de edificar e de destruir, o uso da palavra requer moderação, diz a autora: “medir palavras é sinal de prudência porque afasta o risco de sermos mal interpretados”. Essa é a mensagem que, afinal, Lids quer passar com seu texto, tipo Bezerra da Silva: “falador passa mal rapaz”. Ou seja, uma advertência, pois, uma vez pronunciada, a palavra ganha vida e carrega com ela aquilo que está no coração. Termina o poema com a frase em aliteração: palavra poder para o povo. Em Admiração, temos um poema que também trata da integridade do caráter do ser humano e aborda a dualidade da paz com a turbulência dos sentimentos: “[gosto] do estar calmo mesmo com a alma tempestuosa”. Finalmente, em É no mínimo uma troca, que é um poema narrativo, a autora faz uma reflexão sobre a necessária coerência entre o que se é e o que demonstramos ser. Faz uso da metáfora da pesca para explicar sua posição: “a aparência é isca/ a sua essência o anzol/ a aparência atrai/ e a essência prende”. Ancorada nessa defesa, prega o diálogo e o respeito à diversidade.

Nos demais textos, Lidiane segue no mesmo diapasão da ética, mas acrescenta um anúncio em poemas para se viver um mundo melhor ou para ser melhor no mundo. Reflexão tem esse traço edificante. Nele, a autora defende um postulado do comportamento altivo e solidário: “a intensidade do amor é a medida do nosso comprometimento/ com a nossa existência e a do outro, um espelho no qual/podemos observar a nossa atuação no mundo”. Em a Carcaça que o sistema fez ela alerta para a necessidade de resistir aos apelos que a sociedade impõe como padrões estéticos: “Será que você está aprisionado?/Desde sempre condicionado/ Onde é que fica sua essência?”

Em Primavera, Lids fala dos desafios da semente que brota e nunca conhece a flor. Depois vem dois textos menores que abordam as festas de Natal e Ano Novo que entorpecem as pessoas com consumismo e futilidades. Ancorado também no mesmo tipo de metáfora, o poema Flor de Lotus pode ser lido como um aforismo no qual a autora, por meio da imagem da referida flor, cuja delicadeza e brancura contrastam com o terreno enlameado no qual germina, indaga sobre a possibilidade de termos entre as pessoas que nos cercam, “o melhor professor que poderíamos ter, se fôssemos capazes de ver o nutriente na sua lama”.

Cotidiano poético

O livro de Jesuana Prado tem 29 textos e, assim como o de Lids Ramos, não evidencia distinções estéticas importantes entre eles, dado mais uma vez o tom pessoal da obra que no caso de Jesuana é ainda mais acentuado. Publicado em 2014, quando a autora ainda morava em Fortaleza, o livro parece ser um balanço da trajetória dela, na época com 31 anos, ou seja, vivendo o Ciclo de Saturno, momento da vida em que ocorre eventos de extrema relevância, como casamento, separação, nascimento de filho ou perda de um ente muito próximo. No caso, ela publicou esse livro que me parece ser um marco fundamental da sua vida, por meio do qual, chegou a São Paulo onde passou a viver.

Ao falar de si, Jesuana, fala da vida, do mundo, da luta, de amor e da própria poesia. O seu eu está em todas essas abordagens. O grupo maior é formado por poemas de exaltação à vida; são nove textos de esperançar. Em segundo lugar, há seis poemas nos quais a autora faz uma reflexão sobre si mesma; são os poemas do eu profundo. Também com seis textos, está o grupo de poemas de amor, quase todos de ruptura e ausência, o que denota um certo contraste com o tom predominante no livro. Cinco poemas tem um tom mais engajado e outros dois são de metapoesia, nos quais ela explora o próprio fazer poético. Sobre seu modo de fazer poesia, ela é assertiva: “nenhum poema/ se faz do que não se sente/ ele brota das entranhas/ do puro sentimento/ da dor mais contida/ de uma ferida ainda aberta/difícil de sarar” (Nenhuns).

O tom afetivo e lírico que permeia o livro também é nítido nos poemas de combate. Em Demais…, por exemplo, ela fala sobre o que os olhos vêm e o coração sente e muito: “viu demais injustiças/ clamor, sofrimentos…/ juntou-se, aliou-se ao nó na garganta/ e transbordou…/ Viu demais.”. Em Da luta não me retiro, Jesuana apresenta suas armas: argumentos, palavras, resistência, ternura, o grito, a esperança, ancestralidade e a divindade. Desse modo, defende: “da luta não me retiro, pois dela eu sou”. E em Oração para quem luta, em tom de prece, ela agradece por tudo e todos que com ela seguem na luta por um mundo mais justo. Outros dois poemas têm um recorte feminista: Eu mulher selvagem e Talvez eu… talvez você. Neste último ela faz uma afirmação de sua condição de mulher ativista defensora dos direitos humanos.

Os poemas de amor, como já foi dito, discorrem mais sobre desencontros do que encontros, aspecto que poderia destoar dos demais textos, mas a autora não adota um tom melancólico e essa habilidade não deixa o astral do livro cair. Teu beijo é um poema que corrobora essa impressão. Organizado em quatro estrofes de quatro versos rimados, fala do beijo com um frescor adolescente: “flutuo com teu beijo/ perco-me em teus braços/ tu és fonte do meu desejo/ e de tudo o que faço”. Possivelmente elaborado nos primeiros raios da juventude, no texto já aparece as citações recorrentes na poética de Jesuana como horizonte, presente, passado.

Sonho à beira do caminho é um poema ambulante. Uma narrativa que se ancora no deslocamento do ônibus num bairro de periferia que tem como ponto focal a rua onde mora um ex-amor que, outrora, dividia o assento do Coletivo a seu lado, hoje vazio. Ela busca no sonho o colo que antes lhe acolhia. Morada, por sua vez, discorre sobre a incerteza de amar e ser amado. Inspirado em Mario Quintana (“o amor é quando a gente mora um no outro”), ela diz: “já não sei se algum dia/ morei em ti/ou se sempre estive desabrigada”. Iris e Saudade poética são poemas apaixonados, mas os corpos não se encontram. E em Sem tom para o adeus, ela se permite, enfim, um momento de tristeza pela ausência de um amor que, se não acabou, estava na iminência do fim: “lágrimas para dentro/afogam meu coração”

Entre os poemas do eu profundo, Miragens… é bem representativo do grupo. Poema organizado em seis estrofes todas iniciadas pelo mesmo verso: “Mirar o horizonte…” sinaliza uma profissão de fé da autora em suas crenças (convicções e certezas não cabem bem no universo jesuaniano). Cada estrofe é uma camada de sentimentos. No primeiro, fala de entender seus processos pessoais. Já no segundo discorre sobre liberdade de ser o que é “mesmo quando os rótulos estão pelo caminho”. O amor que chega sem avisar “e sem promessa de eternidade” é o tema da estrofe seguinte. Na sequência, em tom de ponderação, fala da saudade associada ao mar que é uma metáfora recorrente e que tem tudo a ver com horizontes e infinitudes e à cidade em que nasceu, por certo. Na quinta estrofe ela se mostra resiliente em face de derrotas ou perdas “que oprime porque deixamos/ porque não nos rebelamos o suficiente para dar um basta às amarras”. Enfim, ela busca a si mesma (num reflexo) no horizonte que lhe faz caminhar sempre.

Dois poemas fazem uma representação da poeta como alguém em permanente construção e desconstrução. Em Indefinida, ela discorre sobre esse traço de sua personalidade assentada na dúvida. Em versos bem elaborados, diz: “se sou dúvida é porque não quero ser ponto final”. Inexata é um título que diz muito do texto. Uma explosão de átomos: “mas eu…/sou uma incógnita/ uma inconstância em efervescência…/ ebulição/ meu nome é crise/ de sobrenome inexata”. A autora vive sua incompletude que poderia ser uma fragilidade, mas para ela é uma virtude. Mas, arrisco dizer, também é um certo charme, pois, ainda que não as ostente, Jesuana tem lá suas certezas. Isso fica nítido em Eu acredito e acreditando sigo… Impresso como o último poema do livro, nele a autora faz um sumário de suas crenças: na natureza, em Deus e em Jesus Cristo, no amor, nos sonhos individuais e coletivos, nos anjos (o dela é negro), na força do universo, na família, no amor de mãe e de que o sol sempre nascerá. Com isso ela traça um desenho de si muito definido, um ser centrado e apegado a valores e convicções que contrastam com os poemas nos quais de mostra como um universo em crise.

Entre os poemas de exaltação à vida, Precipícios de mim aparece entre os de esperançar, mas que parte daqueles momentos em que é difícil ter forças para se levantar, não pela dor, mas por conta da letargia que imobiliza. A autora defende a legitimidade de se mover mesmo que seja motivada por uma ilusão: “parto para a ação concreta de ter sentido/ de viver meus sentimentos/ por mais ingênuos que sejam/ por mais ilusórios que pareçam”. Jesuana valoriza os devaneios da existência: “desse leva e traz de sentir”. O sentido da vida, para ela está na esperança dos iludidos de bom coração, pois eles são capazes de voar, mesmo que sob risco de caírem em precipícios. Em A vida é feita de sonhos, a autora apresenta um manifesto em defesa da vida, cujas três primeiras estrofes, todas iniciadas com o enunciado: “Nos tempos…”, nos quais fala de insatisfação, de verticalização, de resistência e com os quais ela defende a necessidade de dizer não.

Meninas mulheres é um poema organizado em quatro estrofes, cujos primeiros versos expressam uma variação tensiva: corre menina/ ame menina/ lute menina/ voe menina. Com essa estrutura, a autora desenha a trajetória de uma mulher liberta. Começa por perceber o quanto o mundo pode lhe oferecer possibilidades. A descoberta do amor vem em seguida, não exatamente o amor a alguém, mas a própria vida. Depois vem a consciência e a tomada de posição. Por fim a conquista do mundo expressa com a sugestiva imagem do voo que denota a capacidade de ver o todo, posto que está no alto e com isso fazer escolhas para se colocar no mundo.

Outros três poemas têm uma leveza e fluência poéticas de fazer o leitor viajar no universo da autora. Me leva aonde a leveza me levar tem um astral zecapagodiano: “quero nem ter que querer/ só deixa o que for acontecer…”. Em Misterioso Mar temos um poema de devoção ao mar com versos singelos como: “mar… tão perfeito, tão tanto, tão tudo” que se somam a outros de tom de exaltação: “[mar] horizonte onde o olhar alcança e cansa de delirar…”; ou mais especulativos: “dilatando as pupilas da existência morbidamente poética”. Já Cotidiano é um poema banhado de luz (do sol e da lua) para exaltar a vida naquela fração que parece irrelevante, mas que é em si um todo: um dia: “celebra com alegria/ cada nascer e pôr do sol/ e vibra a cada lua que surge linda e única”. Viver a vida “escandalosamente” a cada dia é para Jesuana o segredo da glória cotidiana. Por fim, em Cirandas, ela discorre em versos curtos com o ritmo da ciranda sobre a capacidade que essa dança coletiva tem de irmanar os corações de quem nela se envolve. Essa imagem acaba por ser uma síntese do livro.

Poemas para um mundo melhor ou para ser melhor no mundo

Como podem perceber os que leram este texto e outros que aqui publico, valorizo a poética da letra de canção e depois da justa entrega do Nobel de Literatura para Bob Dylan, sinto-me ainda mais encorajado a explorá-las nos meus modestos exercícios de análise literária. Dito isso, faço uma aproximação dos poemas das autoras aqui comentadas, com canções de exaltação à vida com as de Gonzaguinha: O que é O que é e Sangrando, esta última com os versos marcantes: “quando eu soltar a minha voz/ por favor entenda/ é apenas o meu jeito de dizer/ o que é amar”. Mas há uma canção do Oswaldo Montenegro que se conecta especialmente com a poesia de Jesuana e Lids. Trata-se de Intuição, cuja letra diz: “Sem o compromisso estreito/ de falar perfeito/ coerente ou não/ sem o verso estilizado/ o verso emocionado/ bate o pé no chão”. Em outra estrofe, o autor completa: “canta o que não silencia/ é onde principia a intuição/ e nasce uma canção rimada/ da voz arrancada/ ao nosso coração”.

Jesuana e Lids escrevem com o coração na ponta da caneta e nos cativam pela emoção que conseguem expressar nos textos nos arrebatando com a força de belas canções como as citadas. Os livros delas são apoteoses poéticas. Duas mulheres afrodescendentes de trajetórias marcadas por lutas, amores, perdas e conquistas individuais e coletivas. Cada uma em seu canto, passam a habitar a mesma região da periferia de São Paulo. Uma não conhece a outra, mas é como se fossem companheiras de correria, porque partilham o canto da esperança em poemas para um mundo melhor ou para ser melhor no mundo.

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