Política, religião e a perda do sentido de realidade

No “paradoxo da confissão”, proposto por Zizek, alguém falsamente acusado de traidor acaba confessando a “culpa” irreal. Comum nas instituições da fé, o mecanismo repetiu-se em muitos grupos políticos, nos séculos XX e XXI

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Tortura: palavra que quase imediatamente nos evoca imagens de dor e sofrimento. Instrumento comum tanto à Inquisição como a regimes totalitários e autoritários, como a ditadura militar no Brasil, a tortura é a prática de violência, física ou psíquica, cometida intencionalmente sobre um indivíduo, podendo visar não somente a confissão do torturado, mas também a satisfação do torturador. Aquele que pratica tortura acredita que a resistência do torturado em revelar uma suposta verdade possa ser superada por meio da violência, pois as dores se tornam tão insuportáveis que a confissão se apresenta como a única alternativa para o alívio do sofrimento.

A resistência à dor física parece ser a principal arma do torturado para não revelar sua verdade, seja a confissão de crimes, a denúncia de aliados ou a associação com grupos considerados suspeitos. Quando a resistência é bem-sucedida e não ocorre nenhuma revelação, somos capazes de reconhecer no torturado não somente uma acentuada tolerância à dor, e sim alguma espécie de superioridade moral que se manifesta em sua incorruptível fidelidade à causa da qual se tornou servo leal. Nesse sentido, a resistência do torturado seria, na verdade, o efeito de sua lealdade à sua causa política ou religiosa diante das investidas dos carrascos que perseguem a ele e aos seus aliados.

Frequentemente, quem se depara com um relato desses identifica-se com o torturado. Se a vítima resistiu à tortura, será objeto de elogios. Se sucumbiu, será motivo de comiseração e compreensão. Existe, no entanto, uma situação em que o processo de identificação não se realiza tão facilmente ou de modo tão óbvio. Estou me referindo àquelas situações em que a identificação ocorre, se não com o torturador, pelo menos com suas motivações públicas. Nesse caso, torna-se mais difícil assumir uma posição estável e imune à dúvida e à incerteza. Para ilustrar essa situação, faço referência ao paradoxo da confissão, relatado pelo filósofo Slavoj Žižek em sua obra O mais sublime dos histéricos – Hegel com Lacan (1991) a respeito dos processos conduzidos pelo regime soviético.

Suponhamos que um dos membros do Partido Comunista do período stalinista é acusado de traição pelos dirigentes partidários e submetido a um interrogatório exaustivo e baseado em técnicas de tortura psíquica. Ao contrário da situação relatada mais acima, em que o torturado procurava se manter leal à sua causa política ou religiosa para não sucumbir à insinuação dos torturadores, aqui não existe diferença entre as razões que motivam a acusação dos torturadores e a causa que se tornou o ideal de conduta e pensamento do torturado. O torturado serve ao Partido Comunista, mas é o próprio Partido Comunista que acusa o torturado de traição. Dito de outro modo: o torturado se tornou vítima de sua própria causa.

Sabemos que o desligamento de membros de uma associação política ou religiosa pode envolver mágoa e ressentimento, tanto por aqueles que partiram como por aqueles que ficaram. Antes de se desligarem ou mesmo instantes depois, os ex-membros podem sentir dúvida ou incerteza a respeito da decisão que tomaram, mas podem encontrar recursos para percorrer um caminho alternativo ao qual vinham fazendo até então. Mas ser acusado de “traidor” ou ser submetido a um interrogatório movido por técnicas de tortura são traços que podem nos espantar num primeiro momento. Voltemos ao nosso paradoxo para entender melhor o que se passa.

Como estávamos dizendo, o membro do Partido Comunista foi acusado de traição. Essa acusação, contudo, é uma falsa acusação. Diante de uma falsa acusação, espera-se que o acusado reaja imediatamente e se sinta à vontade para alegar inocência. No entanto, ao alegar inocência, o acusado denuncia a falsidade da acusação, apontando para o equívoco da acusação do Partido Comunista e, consequentemente, agindo contra seus princípios doutrinários. Ou seja: alegar inocência é suspeitar da legitimidade do próprio Partido Comunista, tornando-se, portanto, um traidor. Por outro lado, ao assumir sua traição e confessar sua culpa, ainda que a condenação seja falsa, o acusado reconhece a veracidade da condenação e se submete aos princípios e decisões do Partido.

Notem que o destino do acusado é mantido independentemente da posição assumida no interrogatório. A acusação não é apenas aquilo que motiva a abertura de um processo, mas é também o veredito antecipado que deve ser apenas confirmado pela confissão do acusado. Depois de iniciada a acusação, resta ao acusado denunciar a falsidade da acusação ou reconhecer sua veracidade. Caso queira provar sua fidelidade ao Partido, o acusado vai se decidir pela segunda alternativa — ou seja: ao se reconhecer como traidor, o acusado prova sua fidelidade.

Essa situação aparentemente absurda e solidária da obra kafkiana O processo pode ocorrer tanto em associações políticas como em instituições religiosas. A psicanálise nos ensina que quando os princípios ou as diretrizes doutrinárias deixam de ser apenas orientações políticas ou religiosas para se tornarem imperativos superegoicos, o sentimento de realidade é empobrecido e reduzido à realidade do grupo ao qual se mantém associado. O supereu possui essa capacidade de tornar as orientações voltadas para a transformação da realidade, sejam elas políticas ou religiosas, em determinações da própria realidade, resultando na seguinte máxima: “fora da Igreja não há salvação” – que também pode ser lida como “fora do grupo não há realidade”. A associação política ou a instituição religiosa deixam de ser alternativas diante da realidade para se tornarem a própria realidade à qual se deve se submeter. É justamente nesse momento, quando as orientações desses grupos se tornam imperativos do supereu, que deixa de haver distância entre o sentimento de realidade e a realidade do grupo, entre a acusação e a condenação.

Depois de percorrido esse caminho, podemos responder com um pouco mais de recursos a uma pergunta: por que o acusado pelo Partido Comunista decidiu confessar sua traição, apesar de a condenação ser falsa? Para aquele membro, o Partido Comunista havia assumido uma posição superegoica, eliminando a distância entre o sentimento de realidade e a realidade do Partido. Não havendo realidade fora do Partido, a melhor decisão encontrada por aquele membro foi reconhecer a veracidade da acusação. Aquele que confessa sua culpa diante de sua falsa condenação ainda encontra seu lugar nessa realidade, ao contrário daquele que desconfia do Partido: para esse está reservado o exílio, não somente de uma nação, mas também de seu lugar no mundo.

Nessa forma de associação política ou religiosa, em que o grupo deixa de ser uma alternativa para a realidade para se tornar a própria realidade, todos perdem. Seus dispositivos de exclusão já eram bastante conhecidos nas instituições religiosas, mas o século XX e esse início do século XXI nos mostraram que nem mesmo as associações políticas, sejam elas conservadoras, liberais ou progressistas, estão imunes a esse processo. Se não formos capazes de estabelecer uma distância entre a realidade do grupo e o sentimento de realidade, se não formos capazes de sustentar a dúvida e a incerteza nos laços que mantemos com nossos grupos, o resultado poderá ser devastador.

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Um comentario para "Política, religião e a perda do sentido de realidade"

  1. Carolina Neiva disse:

    Interessante reflexão. Gostei bastante. Fiquei até interessada em fazer a leitura do livro mencionado.

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