Flaubert, 200: A intensidade de Madame Bovary

Vale revisitar este marco da literatura. No sibilar de suas paixões, Emma atravessa aflita as convenções sociais. Expressa a mulher que resiste a ser emoldurada pela boa educação, pois busca o mundano, os afetos, a sensualidade da vida

Imagem: James Tissot, “Young Lady in a Boat”
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A imagem literária que George Lukács constrói em A Teoria do Romance possui duas feições narrativas. Na era antiga, com a vigência do poema homérico e das tragédias de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes, a bela comunidade enredava consciência desafiada dos personagens. Nesse mundo – “o círculo [comum] cuja completude constitui a essência transcendental [da] […] vida” (2006, p. 30) tornava a existência empírica a mesma do espírito, subsistia “uma circunferência [estética] perfeita” (Ibidem, p. 35). Ao abandonar essa experiência, no despertar da modernidade, as formas da prosa abandonaram o mundo compartilhado. Entre a “interioridade e [a] aventura” (Ibidem, p. 99), a recusa de uma vivência que correspondia organicamente ao todo transcendente, irrompia “o caráter demoníaco do individuo problemático que, combativo, sai a campo” (Ibidem) a desafiar o “tempo”i (Ibidem). Dos diversos personagens a figurarem a configuração da prosa de si plena de intermitências em seu âmago – lembremos o Werther de Goethe, o Julien Sorel de Stendhal, o Rubempré de Balzac, os Karamazov e a memória subterrânea de Dostoievski, o Ivan Ilitch de Tolstói – Emma Bovary, muito provável, foi a que mais vivenciou o arrostar o tempo. A temporalidade dela, a principal criação de Flaubert, era e é escandida.

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Emma tinha paixão arrebatadora não pelas simplórias e previsíveis relações afetivas-sentimentais-sexuais por outros homens – que não fossem os forjados pelo costume de então, como o era Charles. Esse e todos os outros às quais ela manteve contatos amorosos expressam passagens fluidas para sua excitação pelo tempo. Ora, o bovarismo, aquele estado da alma descontente com as possibilidades de cercamento pelo comezinho; como uma respiração ofegante incontida pelas realidades da vida, o bovarismo quer dizer significando o encantamento pelo transcurso alegorizado, a travêssa circunstância de momentos de inconformismo diante dos outros sedimentados – coagulados socialmente. Emma e Charles; Emma e Leon; Emma e Rodolphe são traços de tempo estilhaçados que fascinavam Bovary. Nos modos de vida de um amor poético com eles, a personagem de Flaubert entusiasmou-se com o desabrochar de si ensejado pelos amores incessantes. A força de Madame Bovary está no modo da tessitura mimética hiperbolizada conformada por Flaubert acerca do tempo, por toda a estrutura do enredo emerge a temporalidade fabulada por e em Emma – mais do que perceber a vida no decurso de si na excentricidade positivada, objetificada, ela era a subjetividade-tempo. Daí as oscilações sentimentais, a idiossincrasia indeterminada, o falar aquoso, a gestualidade imprecisa, o olhar insinuante de esguelha que constituíam Emma Bovary. Suas idas e vindas a encontrar seus momentos de afeto profano, com hiatos de convenção (na presença do sereno Charles), são figurações de um temperamento que entendeu o que seu século necessitava. Em-si-mesma Emma é a pulsação de investidas que formam as interações com constelação de eus e com o próprio individuo. Já aqui no trecho em que Charles alcança a recuperação do Sr. Rouault, pai de Emma, a cena narrativa revela a ânsia pelo decurso da vida a trespassar nossa personagem – a jovem permite ao médico de seu pai “roçar o dorso [do peito]” (p. 30) nela – na ocasião em que aquele procura seu chicote pelos cômodos da casa, os dois se abaixam e se aproxima na busca do utensílio de domação (o tempo-Emma desafiara esse objeto de ordenação); o restabelecimento normatizado da saúde do pai que seguiu às leis e princípios das ciências estáticas (“tudo correu bem, a cura efetuou-se segundo as regras e […] ao final de quarenta e seis dias, viu-se o país Rouault tentando caminhar sozinho pelo galinheiro” [p. 30]) não conteve o desafio do tempo social por Emma – a carne de seu peito encandecia na contingência. Por isso notemos as feições de ingenuidade ponderada da menina-mulher-devassa-filha-puta-amante-mãe de Flaubert. Na passagem somos lançados a sucintas volubilidades do tempo de Emma; no desenfado com Charles ela subverte como personagem romanesca da nossa quadra os ecos da intencionalidade sórdida, a atitude que revela espelha uma posição de desdém pelos artifícios da premeditação enquanto ciclo a cumprir – mas ainda assim é ela quem incita como presença ardorosa ao ciente médico; ademais Emma poderia não ter perguntado na ação literária; “Ela voltou-se – O senhor procura alguma coisa?” (p. 30).

Os aspectos da temporalidade de si, agora, cedem à linearidade, ao fastio, à unissonância da vida. Nupciada – Emma está no instante das civis sublimações. Nesse fragmento de sua vida, ela, se defrontaria com os conciliábulos do não-tempo. A enredar via os códigos sociais as exuberâncias do ardor pelas dilações materiais do vivido. Com postura de quem quer chicotear o tempo e colocá-lo sob os signos da reclusão, Charles racionaliza o encontro que teve diante de Emma; “ao voltar, [a noite] retomou uma a uma as frases que ela dissera […] procurando […] completar seu sentido fim de reconstituir mentalmente a porção de existência que ela vivera quando ele ainda não a conhecia” (p.35) – vê-se na maneira do futuro esposo de Emma algo que jamais passou pela sua experiência enquanto fabulação do tempo. Charles é a encarnação prosaica de valores de pouca imaginação, de nenhuma disposição a aceitar uma vivência melancólica e no mesmo passo que flama, que rebenta no ar como labaredas de inconformismo. Em uma frase a transbordar lirismo Flaubert narra o sentido da subjetividade-tempo de sua personagem; se Charles “pensava […] na quantidade de pratos” (p. 37) para a festa, ela “pelo contrário, teria desejado casar-se à meia-noite, à luz de tochas” (Ibidem). O trecho é, sugestivamente, metafórico. (Exige uma crítica.) Preso pelas recorrências do corriqueiro, Charles esteve sempre a raciocinar uma convivência com Emma que representasse a ideia de ordem, apaziguamento; seus modos de estar no mundo era a convicção de que a aquietação – bem calculada, bem ponderada, bem medida – facultava o ápice das práticas do bom existir. Charles prepara meticulosamente o casamento – “falava-se dos preparativos do casamento” (p. 37) – indagava com alma utilitária o momento exato, pontual, de oferecer refeição cerimoniada – quando detalhadamente será “servido o almoço [?]” (Ibidem) era sua preocupação vital. (No futuro esposo de Emma) não há tempo-de-si-nos-tempos-outros a constituir percepções vivazes a darem significado à existência. Literariamente antípoda de Charles, com uma multiplicidade de frestas a deixar atravessar as alterações continuadas da vivência, Emma arde em exaltação pelas perplexidades incertas de se estar na mundanidade; a vida que desejava para si – e para seu século – era a das “tochas” (Ibidem) a cintilar momentos de danação que desafiam o formalismo costumeiro. O sentir pressuroso da mulher-menina-amante-inquieta de Flaubert exprime a narração fulgurante que presentifica a angústia indeterminada da “meia-noite” (Ibidem). Por que Emma aceita a não-temporalidade Charles? Se Madame Bovary pretendesse forjar uma moça “devassa” para a história literária, por que a fez Bovary? Por que a fazer suportar os costumes positivos de então?

O tempo de Emma, agora tornada Emma Bovary pela civilização, aceita com altivez poética enfrentar o patíbulo, a cultura do ergástulo, dos modos de ser diversos na materialidade da imaginação. Emma casou-se – com Charles: “a orla do vestido [dela] longo demais, arrastava-se um pouco; de vez em quando ela se detinha para puxá-lo […] com seus dedos enluvados, retirava as ervas rudes e as pequenas farpas dos cardos, enquanto Charles, com as mãos vazias, esperava que ela acabasse” (p. 39). Flaubert fez de Emma o tempo simbolizado – ela puxa, retira, avança, não quer parar, para quando convém, caminha por e entre os espinhos da outridade pensada; seu existir expressa no momento mesmo do cerimonial que os grãos sublimes do porvir não serão sufocados pelas “mãos vazias” (Ibidem) e intemporais de Charles. Endemoninhada; possessa; endiabrada; irascível – Emma Bovary vive formas de se fazer na mundanidade ao qual a sequência habitual planejada é estilhaçada nas contingentes inquietações do coração. É como se ela sobrepusesse ao realismo sequencializado, as vicissitudes de realidades românticas. Não fora dissabores previstos com o reiterado que a fez impelir-se no emaranhado de situações que a levaram a sibilar paixões. Na narrativa de Madame Bovary é no tempo da verdade de si de Emma que o ímpeto desesperado de viver ocorre; passaram poucas páginas do seu périplo sacrílego – no século XIX – para ela procurar “saber o que se entendia exatamente, na vida, pelas palavras felicidade, paixão, embriagues que lhe haviam parecido tão belas nos livros” (p. 44). Sonhara desde há muito com a “casinha de bambu […] [com] os frutos vermelhos nas grandes árvores mais altas do que campanários” (Ibidem). Na alma de Emma crispavam maneiras de se pôr na existência, em que o correr “descalço na areia” (Ibidem) fantasiando o amor como um “ninho de pássaros” (Ibidem) transfigurava os dias de enfado. Mas na sociedade – a convenção, os arranjos de comportamento elegantes, do beijar “no ombro” (p. 57) são fatos estimados pelas consciências raciocinadas. Na passagem Flaubert faz sua personagem arrostar a desafiação ao tempo, a ela como tal. Como Bovary, Emma é convidada aos ritos da iniciação ao sistema de próceres; “pelo fim de setembro” (p. 53) de 1830 é convidada por um importante homem de Estado a passar algumas noites no seu castelo. Marquês d’Andervilliers, antigo secretário de governo na Restauração está em busca do não-tempo da política – política da era de Balzac – e faz recepção prestigiosamente volumosa. Quer a aceitação da cultura do potentado; Charles coaduna os sentimentos com ele; as disposições estão bem compreendidas: ergue-se no enredo formas de vivências cerimoniosas. A temporalidade deles não é um artifício indócil da presença; por isso mimeses da época de então, o médico e seu anfitrião cultivavam intrêmulos o fastio da “boa” educação. Emma, de vaidade extravagante – adentra ao castelo do Marquês. Conquanto o castelo exalasse semelhança a uma igreja – “de mármore, muito alto, e o ruído dos passos com a das vozes ressoavam como numa igreja” (p. 54) – ela exibia em si o devastador fogo da paixão pelo porvir irrequieto; a forma arquitetônica da construção (explicitando uma Europa ciosa de sua distinção “perene”) e a ambiência social possuíam ares de deferência aos símbolos da vida afável. No trajeto de Emma Bovary havia uma “sala de brilhar” (Ibidem). Em torno das mesas onde “bolas de marfim” (Ibidem) tocavam umas às outras tilintando o som do hierático “homens de rosto grave, com o queixo apoiado em altas gravatas, todos exibindo condecorações e sorrindo silenciosamente ao darem suas tocadas” (p. 55) encenavam o que a personagem de Flaubert mais tinha aversão. Nunca foram do seu agrado as maneiras de habitar a mundanidade com o cariz da mansidão; e Emma atravessa por esse cenáculo como um beija-flor aflito a opor-se com denodo ao cultivo da civilização tipificada em Charles, no Marques e os homens na mesa de bilhar.

A cena é toda plena de poeticidade. O decurso de Emma fagulhava contra a monotonia das interações planejadas. Tudo o que ela tinha adoração significando instantes de uma praxe graciosa estava em lugares e coisas de excitação do ânimo e da pele – “[ela] sentiu-se envolvida por um ar quente, […] [pelo] perfume de flores […] pelo aroma das carnes e pelo odor das trufas […] [seu amor era pelas] velas dos candelabros [que] alongavam as chamas” (Ibidem). Insatisfeita com aquela constelação de peças a compor um rigoroso fausto, a porfiadora Emma se põe na trilha emaranhada das convenções – com seu corpo flamejando tempo de si ela vislumbra episódios aos quais seja factível a recitação extrínseca de assíduas descontinuidades. Sua vida era um caloroso dispositivo a ensejar o formalismo reto, imparcial, aprumado. Eis que em momentos antes do baile de recepção do Marques as coisas vão se dando com a naturalidade da sempre, mas Emma é irrupção; foi quando Charles, na necessidade de se fazer mostrar um homem cumpridor dos requisitos do cavalheirismo, querendo acariciar sua esposa minutos antes do baile de recepção – como se estivesse a dizer que entre eles grassassem a harmonia, o equilíbrio, o bom cuidado mútuo, a afeição ponderada, a temperança no sexo – a abraça com a gentileza da sociedade da restauração e ao lhe dar um cândido beijo “no ombro” (p. 57) é aturdido – Emma grita “Larga-me […] estás me amarrotando” (Ibidem). Estar solta, desimpedida das maneiras do regramento social tem o sentido para a personagem flaubertiana muito mais e além de um ato de rebeldia, de busca pela novidade pueril – ela é o entrecruzamento vivencial ao qual o decurso de si rebenta em torvelinhos. Emma Bovary é a própria surtida do tempo; um sublime desespero, um exprimir a evocação de uma alma que não quer estar emoldurada pelas modalidades da boa educação, dos ritos do parentesco. Todo o enredo construído e estruturado em Madame Bovary narra um “coração [que] bate” (Ibidem). Proseia acerca de um “pescoço” a movimentar-se “ligeiro” (Ibidem) desafiando a coerência do espaço. Assim, pelo romance de Gustave Flaubert testemunhamos a figura insubmissa de Emma a transitar pelas experiências da temporalidade, ela mesma foi (e é) tempo-de-si-em-si na presentidade – seus amantes, desde o Visconde passando por Rodolphe e Leon, os lugares que os encontrava, o ir e vir caudaloso para obter o sentimento de viver junto-a- eles-e-contra-eles, o se lançar em seus braços por átimos de sexo, o respirar sempre súbito diante da vida. Ela era a denegação de um período de concertação social ingênua. A era de Balzac não foi materialmente desafiada por então; sucumbiu Emma e tornou-se eternidade-tempo; ainda assim Emma Bovary fabulou-se no momento da queda da Coluna Vendôme e na inversão feminino-poética da Fortaleza Pedro e Paulo na Rússia. (Fortuidade não houve no processo contra Flaubert.) Não se poderia suportar personagem literária com uma graciosa embriaguez de “pensamento, subindo e descendo as encostas, atravessando as vilas, avançando pela grande estrada à luz das estrelas. [E] ao final de uma distância indeterminada, havia sempre um ponto confuso onde seu devaneio expirava” (Ibidem) e arfava por gozos outros. Era um existir irresistivelmente inventado no tempo – falta-nos a paixão de Emmaii.

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i Ver Georg Lukács – A Teoria do Romance. Editora 34, 2006.

ii Utilizei a edição do Madame Bovary publicada pela Nova Alexandria de 2007, com tradução, introdução e notas de Fúlvia M. L. Moretto, 2007.

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