Cinema: “Todo dia ela faz tudo sempre igual”

Jeanne Dielman (1975) narra o cotidiano de uma jovem viúva que se prostitui para pagar as contas. Em pequenas fissuras, o drama sutilmente se infiltra, sem qualquer concessão, a partir de um olhar sem moralismos da mulher contemporânea

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS

A grande surpresa deste final de ano, para os cinéfilos, foi a lista de “melhores de todos os tempos” da revista britânica Sight and Sound, que traz em primeiro lugar um azarão: Jeanne Dielman (1975), da belga Chantal Akerman. Como assim, um filme que nem sequer tinha aparecido entre os dez primeiros nas listas anteriores de repente desbanca clássicos como Cidadão Kane e Um corpo que cai?

Antes de abordar o filme propriamente dito, que está disponível na plataforma de streaming Filmicca, cabe contextualizar um pouco a questão. A lista da Sight and Sound é divulgada a cada dez anos dede 1952, a partir de enquete com críticos, curadores e pesquisadores de todo o mundo. Este ano houve um recorde de 1.639 votantes. Os “campeões” anteriores foram: Ladrões de bicicletas (em 1952), Cidadão Kane (em 1962, 1972, 1982, 1992 e 2002) e Um corpo que cai (2012).

A pequena surpresa de 2012, quando a obra-prima de Hitchcock desbancou meio século de hegemonia de Cidadão Kane, foi seguida agora pela grande surpresa de Jeanne Dielman, um filme de quase três horas e meia centrado no dia a dia de uma dona de casa viúva, mas ainda jovem (Delphine Seyrig), que se prostitui para pagar as contas no fim do mês e tocar a vida com seu filho adolescente.

Ao contrário de Kane e Um corpo que cai, em que acontece de tudo, aqui parece não acontecer quase nada. E é nesse “quase” que reside o encanto de Jeanne Dielman.

Hitchcock dizia que o drama (no teatro, no cinema) é “a vida sem as partes chatas”. Chantal Akerman, à primeira vista, parece se concentrar justamente nas partes chatas. Tudo aquilo que num filme de narrativa clássica seria elidido na montagem (ferver água para o café, descascar batatas, caminhar por um corredor até o elevador, abrir e fechar um sofá-cama) está no centro da observação da diretora.

Jeanne Dielman é de uma objetividade exasperante em seus longos planos fixos que captam as ações cotidianas da protagonista. A iluminação é uniforme, tudo está perfeitamente visível e em foco, há um rigor de simetria e perspectiva na composição, reforçando o caráter metódico de Jeanne, que dobra cuidadosamente cada peça de roupa mesmo quando o amante/cliente já a espera na cama.

Nas bordas do ritual

Como na canção, todo dia ela faz tudo sempre igual. Mas é nas bordas desse ritual diário, em suas pequenas fissuras e alterações, que o drama sutilmente se infiltra. Em frases soltas e angustiadas do filho antes de dormir, por exemplo, intuímos um pouco da vida conjugal pregressa da protagonista e do caráter do marido morto.

Nessa existência que funciona como um mecanismo preciso, basta pouca coisa para desarranjar a engrenagem. A imperturbável Jeanne é tão sistemática que coloca as batatas para cozinhar durante o tempo exato que durará seu intercurso com um cliente. Um dia, por algum motivo, o encontro se prolonga um pouco mais e as batatas se estragam. Ela é obrigada a sair do apartamento para comprar outras no mercadinho do bairro e começar tudo de novo, atrasando todo o processo. Quando o filho chega da escola o jantar não está pronto.

Para o próprio espectador, a essa altura já habituado à regularidade dos eventos, a alteração soa como uma perturbação. Outras pequenas mudanças se acumulam, até que a irrupção trágica final vem demonstrar que toda a ordem rigorosa anterior era construída a custo e que a vida interior da protagonista era muito mais rica, complexa e tumultuosa do que transparecia.

O espectador que já viu algum filme de Chantal Akerman – e há vários outros deles na mesma plataforma Filmicca – sabe que seu cinema é marcado por esse olhar rigoroso sobre o comportamento humano, em especial da mulher. As atuações “desdramatizadas”, com os atores dizendo suas falas sem ênfase, a virtual ausência de música, a precisão dos enquadramentos, tudo isso faz pensar na influência de Robert Bresson, mas temperada por uma sensibilidade feminina original e ousada.

É um cinema aparentemente contra o espetáculo e desprovido de qualquer tipo de concessão. A mulher contemporânea observada sem voyeurismo, sem moralismo e sem paternalismo. Quase uma pedagogia do olhar sobre a mulher, ou antes, sobre as mulheres, porque cada uma tem sua individualidade irredutível e impenetrável, seja ela Jeanne Dielman ou a Anna de Os encontros de Anna (1978) ou a Ariane de A prisioneira (2000), versão personalíssima do livro homônimo de Proust.

Em suma, a eleição de Jeanne Dielman foi uma surpresa e certamente é passível de discussão, mas está longe de ser um absurdo. É uma pena que Chantal Akerman (1950-2015) tenha morrido prematuramente sem ter essa satisfação.

Os dez mais

Para quem tiver curiosidade, estes são os dez primeiros colocados da Sight and Sound, versão 2022: 1º) Jeanne Dielman (1975), de Chantal Akerman; 2º) Um corpo que cai (1958), de Alfred Hitchcock; 3º) Cidadão Kane (1941), de Orson Welles; 4º) Era uma vez em Tóquio (1953), de Yasujiro Ozu; 5º) Amor à flor da pele (2000), de Wong Kar Wai; 6º) 2001: Uma odisseia no espaço (1968), de Stanley Kubrick; 7º) Bom trabalho (1998), de Claire Denis; 8º) Cidade dos sonhos (2001), de David Lynch; 9º Um homem com uma câmera (1929), de Dziga Vertov; 10º Cantando na chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen.

Todas as listas são controversas e respondem a inúmeras injunções históricas, políticas e comerciais. Uma ótima análise crítica da evolução histórica das enquetes da Sight and Sound foi publicada na Folha de S. Paulo no último domingo pelo crítico Filipe Furtado, sob o título “Lista de melhores filmes mais famosa do mundo expressa ideologia de cada época”.

Pessoalmente, entre os atuais “dez mais”, sinto falta sobretudo de A regra do jogo (1939), sempre presente entre os mais votados nas versões anteriores. Ao contrário de tantos clássicos datados e envelhecidos, a obra-prima de Jean Renoir me parece a cada dia mais viva e arrebatadora.

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