Literatura dos Arrabaldes: Rebeldia não engajada

Em três poetas da periferia, publicados na Era Lula, versos de quem labuta diariamente, mas extravasa as inquietações sem o formalismo literário — com bom-humor, xaveco e fino olhar para as opressões, mas sem os punhos erguidos

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Por Eleilson Leite, na coluna Literatura dos Arrabaldes

Como fiz no artigo anterior, sigo analisando neste texto obras de autores publicadas no auge da literatura periférica que coincide com o segundo mandado do ex-presidente Lula, período em que a periferia teve uma redução da pobreza, embora não da desigualdade. Uma época de certa fartura e euforia na quebrada. Compartilho aqui a leitura de livros de três poetas da periferia da Zona Sul, nascidos nos anos 70 e frequentadores do Sarau da Cooperifa: Fuzzil (Levi de Souza); Casulo (Gilmar Ribeiro) e Lobão (Evandro).

Fuzzil publicou Um presente para o Gueto (2007). O livro do Casulo tem como título Dos olhos pra fora mora a liberdade (2009) e a obra do Lobão chama-se Fam da Rua (2010). Trata-se de literatura de trabalhador feita por quem está na labuta e encontra nos versos uma forma de extravasar suas inquietações e percepções da vida, porém, sem o formalismo literário classista.

Os autores não são operários de fábrica, trabalhadores de escritório ou funcionários públicos. São microempreendedores individuais, para usar uma terminologia burocrática. Fuzzil foi vendedor por muitos anos e continua exercendo o ofício, agora com sua própria confecção; Lobão faz bijuteria e as vende em feiras de artesanato e Casulo é dono de funilaria e exímio reparador de funilarias danificadas. Os três produzem uma poesia liberta de ditames de uma arte politizada e com isso criam sua própria estética e uma forma muito particular de discurso político. Na leitura conjunta das obras observei uma estrutura de sentimento1 que tem um impulso no incômodo com as injustiças, uma contensão que é a recusa da crítica ideologizada e um tom de rebeldia não engajada.

Fuzzil

Um Presente Para O Gueto, publicado pela Edições Toró tem projeto gráfico e editorial totalmente fora do padrão. Os 61 poemas da obra estão dispostos em folhas separadamente, como se fosse um fichário e são acondicionadas num estojo de papel kraft, acompanhado de um giz branco. A concepção editorial é do editor da Toró, Allan da Rosa, e a capa e ilustrações são de South. Akins Kinté faz a apresentação que está publicada no final como se fosse um posfácio.

Levi de Souza nasceu em 1976 em São Paulo, cresceu no bairro do Capão Redondo. Foi manobrista, serralheiro, segurança, vendedor de água e refrigerante em porta de estádio até tornar-se rapper e educador em projetos sociais. Passou a frequentar o Sarau da Cooperifa por volta de 2005. Um Presente Para O Gueto, é seu primeiro livro. Posteriormente publicou mais três obras: Gaturra, em 2010 (Edições Elo da Corrente), Céu de Agosto, em 2013 e Um abrigo contra a Tempestade em 2017 (ambos com o selo da Academia Periférica das Letras). Ingressou no curso de Letras no ano em que lançou seu primeiro livro mas interrompeu os estudos.

Casulo

Gilmar Ribeiro nasceu na Bahia, em 1974, e se estabeleceu em São Paulo, em 1992. É funileiro e faz arte com sucata de automóveis. Frequentador assíduo da Cooperifa há 15 anos, Casulo participou do CD de 2006 lançado pelo Sarau. Dos Olhos Para Fora Mora A Liberdade foi publicado em 2009 com o apoio da ONG Ação Educativa e o carimbo da Cooperifa e segue sendo seu único livro, porém, a obra teve uma reedição em 2013, publicada pela Editora Filoczar acrescida de outros sete poemas. Nessa segunda edição, a poeta Maria Vilani fez um novo prefácio inspiradíssimo. Analiso aqui a primeira edição que reúne 107 textos entre poemas, prosa poética, crônicas, contos e vários aforismos. O livro tem formato 14 cm x 21 cm e 138 páginas. Sergio Vaz escreve uma orelha e na outra há um texto de apresentação do poeta. Há sete anos Casulo mantém o projeto Clamarte no Grajaú que tem um sarau mensal como uma das atividades. O recital é realizado na sua própria funilaria na qual expõe suas obras feitas em metal customizado.

Lobão

Evandro Lobão é hippie, produz e comercializa brincos, pulseiras e outros artesanatos que vende no Centro de São Paulo e no Litoral, especialmente em Ilha Bela. Morador do Capão Redondo, amigo de Ferréz, é frequentador do Sarau da Cooperifa há muitos anos. Sujeito carismático e despojado, atrai a simpatia de muita gente. Sua poesia despretensiosa é irônica e sarcástica seja qual for o tema abordado: uma mulher bonita ou a usura de um capitalista nefasto. Por essa razão, suas declamações geram muita gargalhada dos ouvintes e são sempre muito aguardadas no sarau. Em 2010, Lobão publicou Fam da Rua um pequeno livro com 20 poemas. Em formato de bolso (10 cm x 15 cm), projeto gráfico e diagramação simples, o livrinho teve edição sob responsabilidade do selo Círculo Contínuo. Essa obra continua sendo seu único livro publicado.

Um presente para o gueto

O livro é dedicado à memória do pai e da filha do autor. A dor da perda desses entes tão próximos justifica o traço melancólico presente em alguns de seus textos, fazendo-o destoar de Lobão e Casulo na forma, mas não no conteúdo. O tema da infância está presente em 11 poemas marcados pela indignação diante do abandono das crianças nas ruas e o saudosismo de uma infância feliz apesar da pobreza. A negritude e o ofício do poeta são outros dois temas recorrentes na obra.

Há um poema acróstico que serve de apresentação do poeta: “Feito/ Um/ Zangado que/ Zomba/ Inteligentemente do/ Labirinto”. Mas essa formulação poética não corresponde muito ao espírito de sua obra. Fuzzil não se mostra muito zangado, tampouco zomba das situações que aborda. São poemas simples, diretos, de fácil compreensão, como indicam os versos de Afoito: “Sigo em frente/Não sou louco/Sou poeta/Sou da rua/ Sou menino/ sou afoito/ sou Revel/ sou perigoso/ sou Fuzzil/ não fusível/sou eu/ que faço/ meu jogo. Aqui ele demonstra certa determinação e lucidez, elementos fundamentais de sua conduta como poeta e faz um trocadilho com a palavra fuzil e fusível, sugerindo que o primeiro tem poder de fogo, atira, ao passo que o segundo é apenas suporte para transmissão de energia elétrica.

Sobre o universo infantil, o poema Brincando de Giz é uma composição de tom lúdico: “Gosto de trovas/ infantis/ adoro brincar/ com giz/ risco a lousa/ faço arte/sou criança/sou feliz. Em História, Fuzzil relata sua infância pobre sem ressentimento: “Sei muito bem de minha história/O que fiz em outrora/As cabuladas de escola/rebeldia de menino/na garoa ou no sol ardente/empurrando meu carrinho/não de plástico, pequeno/falo de minha carrocinha. Já em Antonio, demonstra sua sensibilidade com as crianças abandonadas nas ruas: “Olha só quem vem ali/Descalço e sem camisa/ não é quem você pensou/é apenas um garoto de rua.

A negritude aparece com grande ênfase em dois poemas: De A a Z e Preto do Gueto. No primeiro, ele percorre o alfabeto catalogando palavras relacionadas ao negro: “Com A escrevo África/ Com B escrevo Bantos/ Com C escrevo Chibata/ Com D escrevo Dandara e assim por diante. O ofício do poeta está presente diretamente em dois poemas: Sou Eu e Poema. Neste último ele brinca: “Quando falam em poesia/ fico todo esfuziante, ressaltando o quanto o ato de fazer poesia é para ele estimulante.

Fuzzil destacou-se após a publicação desse livro que chamou a atenção tanto pela poesia quanto pelo projeto editorial. Vendeu rápido, esgotou e o poeta logo providenciou outro livro. Devido à projeção que adquiriu passou a frequentar outros saraus da cidade, tendo uma acolhida especial na zona noroeste junto aos saraus Elo da Corrente (Pirituba) e Poesia na Brasa (Brasilândia), embora tenha mantido residência na periferia da Zona Sul.

Dos olhos pra fora mora a liberdade

Casulo segue a tendência dos autores da Era Lula em termos de temática. Há pouquíssima referência à violência, às drogas e a outras mazelas que afligem a periferia. A própria palavra periferia aparece poucas vezes e de forma positiva quase sempre. Embora não esteja organizado por capítulos, os textos estão ordenados por assunto. O tema mais relevante é a natureza com cerca de 20 textos. As criações de inspiração amorosa aparecem também nesse autor com importante ênfase, seguindo a tendência dos demais autores masculinos com uma abordagem de reverência e exaltação à mulher.

Casulo também faz poemas satíricos com boa dose de escárnio, como Igualdade Absoluta, no qual divaga sobre a flatulência humana. A negritude e as desigualdades sociais completam o universo temático do autor que tem bom manejo das palavras, fazendo intenso uso de metáforas e trocadilhos, invertendo o sentido dos vocábulos, compondo textos fluentes de agradável leitura na maioria das vezes.

O primeiro bloco do livro aborda as relações afetivas entre homens e mulheres, pais e filhos, vida em família e amizade. Antes, porém, Casulo dedica dois textos ao ofício do poeta. Em um deles, O poeta e seu papel ecológico, afirma: “o mesmo texto indicado para as miopias cerebrais, que resulta em ignorância, age também nos corações como sensibilizador. Deve ser tragado pelos dedos, mas seu conteúdo vai direto para a cabeça. Seus efeitos colaterais são: exercício da cultura, sapiências, senso crítico…”.

Ao abordar o tema da família, o autor faz de sua vida pessoal um exemplo a ser seguido. Em textos próximos da crônica dá suas receitas de como ter uma família feliz: enaltece o casamento e a figura da “mãe guerreira” e progenitora como expressa no poema Dando a luz: “Quando a mãe contempla, beija com os olhos/ Pra cuidar da cria ela acorda cedo!/ Sempre madruga com o passaredo/ Assim como a lua tem fases e brilhos.

Quando o tema é relação homem e mulher, Casulo é irônico e assume o eu lírico de uma mulher no texto Minha mulher com papo de Amélia: “Não vale a pena viver trocando de marido, porque homem é tudo igual, só muda os documentos e o endereço… O meu, por exemplo: é homem até de baixo d´água! Por isso procuro dar uma assistência qualificada pra concorrência não criar asa”. Pelo título é possível deduzir que ele satiriza a abordagem da mulher submissa, porém o efeito é duvidoso e, talvez, só se efetive na entonação da leitura em voz alta, fazendo a caricatura. O autor aqui cai na armadilha de querer falar pela mulher, procedimento de alto risco de incidência machista.

Nos textos de humor e sarcasmo, Casulo abusa dos trocadilhos: “Pé-de-moleque quando cresce, deixa a bola de lado pra correr atrás dos rabos de saia empinando pipas com fio dental na areia da praia…”. A fim de discorrer sobre aspectos da fisiologia humana que iguala ricos e pobres, enxerga nos gases e nas fezes um denominador comum: “Os gases que soltamos são aromas do que comemos, para apodrecer dentro da gente se transformando em urina e excrementos. Todo animal, seja lá qual for é uma fábrica de estrumes. Perante à natureza, todos nós somos iguais, não importa o tamanho do seu tesouro, grande merda se você defeca numa privada de ouro”.

Mas é nos temas relativos à ecologia que Casulo apresenta suas composições mais elaboradas. Nessa temática ele tem dois textos que já são clássicos na Cooperifa. Um é Meu vizinho passarinheiro e o outro é TV Fábula. No primeiro, diz: “Meu vizinho passarinheiro, já sabia desde pequeno, que todas as outras espécies que ele trancafiava por curiosidade poderiam até ser alguns canários, mas nunca canalhas, para perder o direito de bem-te-ir e vir …”. Já no TV Fábula um papagaio repórter faz uma denúncia: “O tamanduá levantou a bandeira em defesa dos animais em extinção… Dizendo que as onças querem continuar vivas para que, futuramente, não sejam apenas pintadas!”.

E dessa forma Casulo articula seus pensamentos, críticas, denúncias, devaneios e delírios. De uma forma irônica, picaresca, um tanto traquinas atenuando assim uma tendência conservadora quando trata de mulher e família. Seu discurso não é ideologizado e é pouco politizado. Sua crítica social é intuitiva e se nutre de uma aguda sensibilidade para com o sofrimento humano e o descaso com a natureza. Consegue assim ser compreendido e sua mensagem acaba se expandindo com grande eficácia nos saraus e nos livros. “E ao me preocupar com os problemas do mundo, minha família fica imensa, mas meu coração há de crescer junto”. São os versos de seu último texto, palavras que traduzem a grandeza humana deste escritor periférico.

Fam da Rua

Lobão confirma com seus poemas de modo radical as distinções da literatura feita nos saraus, a chamada literatura periférica, da vertente hip hop, conforme abordei no texto anterior publicado nesta coluna. A principal oposição é uma postura crítica, porém, descompromissada. Lobão não carrega consigo uma missão. Escrevo e Pronto é o título do poema que abre o livro e nos versos diz a que veio: “Tem vez que tento andar na linha/mas só trem consegue porque é de ferro/depois vem um e me diz que a vida é/uma escola/mas esqueceu de me dizer o preço da mensalidade/ ficando quieto você presta mais atenção/ não preciso de conselho; sei errar sozinho/ adoro argumentos, ainda mais quando passam por mim e aceno pra eles”.

Ou seja, Lobão até zomba dos que levam a sério demais sua criação literária. Em seu estilo despojado cria textos talhados numa intuição poética que resulta, muitas vezes, em bem elaborados versos como no poema Ser Artesão, no qual fala de sua ocupação profissional: “Sou mais um do artesanato/ Gosto do que faço/Feliz ou infeliz, sabe-se lá/ infelicidade é pro espelho/que não pensa antes de refletir. Ou no poema Gentes no qual discorre sobre as idiossincrasias: “A linha é um ponto que saiu para passear. Neste mesmo poema, Lobão destila sua ironia: “Noite passada conheci um cara/ Ele até poderia ser legal/ No planeta dele! Antes de sair para a rua abri minha geladeira/ Parecia um loteamento novo/ Só luz e água/Fácil mesmo é parar de beber/ já parei centenas de vezes”.

Lobão dedica vários de seus poemas às mulheres. Sem o rebuscamento de Casulo e Fuzzil, ele é mais direto: “Ela passa/O coração fica no descompasso/ Acho que ela trabalha na FIAT; é meu tipo/Deus é justo, mas a saia dela é mais. No poema Feminino Não Afeminado, o autor relata um flerte com uma garota que se revela lésbica: “A ideia estava até boa até que ela me falou:/ – Porra lindo! Acordo pensando em mulher/ Vou tomar banho penso em mulher/Vou dormir penso em mulher/ Na real, sou lésbica. Gostei do brinco/Você que faz? Você é hippie né?/ Não, não….Sou lésbica”.

A poesia de Lobão é uma tradução livre do cotidiano das ruas feito por quem nelas vive. Ele não é um flâneur que só observa. Como hippie artesão é comum ser chamado de “bicho grilo” e associado ao consumo de maconha. Essa condição o inspirou a escrever o poema, cujo título é exatamente “Bicho Grilo no qual ele ironiza o estereótipo: “E aí bicho grilo tem maconha pra vender?/Já chegou errado/ Primeiro não sou verde, não faço cri- cri/ e nem saio pulando por aí”. No mesmo poema, há uma estrofe muito representativa da poética de Lobão: “Meta é meta/ que nem comer sopa de letrinha/pra cagar em ordem alfabética/uns fala que aqui é bom, ali é ruim/Onde é melhor?/ Sei lá deve ser a calcinha/ Se não for o melhor lugar do mundo/ tá bem próximo”.

Lobão questiona a imagem do poeta engajado. Na Cooperifa, e no movimento da Literatura Periférica, ele acaba sendo um exemplo de que existe espaço para quem não está a fim de salvar o mundo, pelo menos com sua poesia. Isso não significa, entretanto, que Lobão seja alienado. Ao contrário, ele demonstra em sua poesia muita sensibilidade para os problemas sociais e as misérias humanas expressando essa percepção com requinte poético como faz nos versos do poema “Pra verme nem água: “Nos dias cinzentos/queria pintar o céu de arco-íris/salpicar as favelas de cristais. O que ele não parece querer é ser super-herói da quebrada, apenas poeta.

Combativo, mas não militante

Como é possível perceber na análise das obras, Casulo, Lobão e Fuzzil fazem uma poesia irônica e sarcástica na crítica social e quando abordam o amor, exercitam seu romantismo com uma espontaneidade que pode soar, sobretudo nos tempos atuais, como machismo em virtude de excessos de gentileza e veneração, mas também por abordagens insinuantes e libertinas.

Tais características têm uma gradação de intensidade que aumenta (e muito) do Fuzzil para o Lobão. O primeiro é mais sutil e comedido enquanto o segundo segue a linha do xaveco despudorado. Casulo é uma combinação dos dois e busca na natureza inspiração para seus devaneios e críticas também. Ler esses autores é uma experiência agradável e inusitada, pois nos provoca a sair da chave do engajamento do punho erguido para uma postura mais descontraída e bem-humorada sem ser alienada. Uma poesia que não dá trégua aos opressores, mas que não romantiza os oprimidos e encontra motivo para rir de um e de outro e também de si mesmo: “feito um zangado que zomba inteligentemente do labirinto”, como diz Fuzzil.


1 O exercício consiste em mapear as recorrências de abordagens que estabelecem aproximações entre as obras. Para se chegar a essa compreensão procuro perceber o pensamento como é sentido e o sentimento como é pensado. Tal percepção é possível de se alcançar observando o movimento da consciência prática que é o impulso, contenção e tom na fala dos personagens e dos narradores. Este procedimento foi criado pelo sociólogo britânico Raymond Williams (1920 – 1989) autor dedicado aos estudos da cultura, do teatro e da literatura, fundador dos Estudos Culturais e expoente do movimento New Left que renovou o marxismo na metade do século passado. Sua obra mais conhecida no Brasil é Cultura e Sociedade, publicada pela Editora Vozes.

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