Cinema Italiano: mamma mia, cadê a política?

A 8 ½ Festa começa amanhã, totalmente online. Nos filmes selecionados, variedade, vigor e humor ladino, mas também sinais do tempo: a figura clássica da mamma se reconfigura e a crítica à burguesia dá lugar à defesa da filantropia

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

A boa notícia é que o cinema italiano está vivo – ou ao menos estava, antes da pandemia. A nova edição da “8 ½ Festa do Cinema Italiano”, que começa nesta sexta-feira (28 de agosto), traz um panorama expressivo da produção dos últimos três anos. São vinte longas-metragens acessíveis gratuitamente on line, nove deles totalmente inéditos nas salas brasileiras.

Se não tem o brilho da fase áurea (entre 1945 e 1980), a cinematografia italiana recente apresenta, no mínimo, vigor e variedade. Há ali documentários fortes e originais, comédias sociais argutas (ainda que distantes da genialidade de Risi, Scola ou Monicelli), dramas policiais tensos e bem conduzidos, além dos habituais melodramas familiares.

Nesse painel heterogêneo, algumas constantes chamam a atenção. Uma delas: pelo que indicam vários filmes, a figura da mamma, tão crucial na cultura italiana, atravessa uma curiosa transformação – que obviamente tem a ver com a mudança do papel da mulher na sociedade contemporânea. Em alguns deles (Magari – O sonho de uma família; Nápoles velada; Como um peixe fora d’água; E agora? Mamãe saiu de férias) é a ausência da mãe que está no centro dos acontecimentos.

Outro traço que chama a atenção, sobretudo nas comédias, é uma certa despolitização da abordagem social. A perspectiva antiburguesa e anticapitalista dos anos 1960 e 1970 foi em grande parte substituída por uma defesa do empreendedorismo e da filantropia.

No mais, com os velhos e novos problemas, a Itália segue sendo a Itália: aquela vitalidade confusa, aquele humor ladino tão próximo do brasileiro, aquela música da língua em seus diferentes sotaques e dialetos. A seguir, uma breve seleção comentada do que me parece mais interessante na programação.

Documentários

Normal (Adele Tulli, 2019). A construção das identidades de gênero tradicionais (o macho alfa provedor-predador, a mulher-objeto, a mãe dedicada) é mostrada em situações variadas e expressivas, dos cursos de noivas às aulas de tiro para meninos, das despedidas de solteiro às sessões de ginástica para mamães. Dispensando todo texto narrativo ou explicativo, constrói-se um irônico balé de corpos e objetos que lembra os filmes de Jacques Tati. O pesadelo da normatividade num filme-ensaio admirável.

Selfie (Agostino Ferrente, 2019). Munidos de seus celulares, dois garotos de 16 anos de uma periferia barra-pesada de Nápoles registram seu dia a dia e o de parentes e amigos. A memória de um acontecimento traumático – o assassinato pela polícia de um rapaz da turma – une-os em torno de uma espécie de culto pagão. Esse pedaço de Terceiro Mundo encravado na rica Europa lembra assustadoramente as periferias brasileiras, espremidas entre a polícia e o tráfico. O “dispositivo” narrativo – com os próprios personagens conduzindo a filmagem – é semelhante ao de O prisioneiro da grade de ferro, de Paulo Sacramento, e ao de Doméstica, de Gabriel Mascaro.

A passagem (Federico Ferrone e Michele Manzolini, 2019). Um dos filmes mais interessantes da mostra, um híbrido de documentário e ficção. Em 1941, um jovem soldado italiano, de mãe russa, é incorporado às tropas italianas que se juntam às alemãs no front oriental, para servir de intérprete. Sobre impactantes imagens documentais da guerra no leste europeu, uma locução em primeira pessoa (baseada em relatos reais de vários soldados) constrói uma história única e coerente, mas fictícia – mais ou menos como Karim Ainouz e Marcelo Gomes fizeram em Viajo porque preciso, volto porque te amo.

Comédias

Como um peixe fora d’água (Riccardo Milani, 2017). Um intelectual que trabalha na formulação de políticas sociais para a União Europeia entra em crise ao descobrir que sua filha adolescente namora um garoto de uma periferia pobre de Roma. Ao tentar protegê-la, ele acaba experimentando in loco a realidade social de que falava em seus estudos. É uma comédia bem conduzida e interpretada, com momentos inspirados de humor. Na mesma linha do choque sócio-cultural entre classes, mas menos feliz, O rei de Roma (Daniele Luchetti, 2018) encena a história de um escroque das altas finanças que é condenado a fazer serviço social num albergue para moradores de rua.

E agora? Mamãe saiu de férias (Alessandro Genovesi, 2020). O título em português sugere uma comédia boba de sessão da tarde (o original é 10 giorni senza mamma), mas o filme é melhor que isso. Forçado a cuidar sozinho dos três filhos quando sua mulher resolve fazer uma viagem a Cuba, o gerente de RH de uma rede de supermercados vive dias de desespero e aprendizado que culminam numa sequência absurda e literalmente explosiva numa festa da firma. Chega a lembrar o humor subversivo de certos filmes de John Landis.

Um pai que se vê obrigado a conviver full time com os filhos por um tempo é também o protagonista de Magari – O sonho de uma família (Ginevra Elkann, 2019), um roteirista em crise que viaja com a prole e a amante-secretária para um chalé no litoral, fora de temporada. Mais uma vez, o título brasileiro não faz jus a essa comédia dramática com ótimo senso de observação dos problemas de crianças, adolescentes e adultos.

Policial/suspense/mistério

Testemunha invisível (Stefano Mordini, 2018) é um thriller tenso que envolve um poderoso empresário suspeito de ter matado a amante num hotel nas montanhas. A construção é brilhante: a veterana assistente de um advogado interroga impiedosamente o suspeito para formatar uma versão convincente que ele terá que dar algumas horas depois à polícia. Formam-se então, em sucessivos flashbacks, várias narrativas possíveis, cada uma delas desconstruída em seguida. A “verdadeira história” é tão intrincada e sórdida quanto a de um filme noir. É possível apontar inverossimilhanças e inconsistências, mas o que importa é que o diretor nos estimula até o fim (e mesmo depois do fim) a exercitar a lógica e a imaginação.

Nápoles velada (Ferzan Ozpetek, 2018) é uma engenhosa trama de mistério em que uma mulher madura passa uma noite com um jovem e célebre mergulhador, que no dia seguinte aparece morto e sem os olhos. Obcecada pelo morto, a mulher encontra casualmente seu irmão gêmeo. Ou não. O tema do duplo, das cópias e falsificações permeia esse filme ambientado no mundo sofisticado da arte e da alta sociedade napolitana (em contraste com a periferia bruta de Selfie).

O Caravaggio roubado (Roberto Andò, 2018) também gira em torno da arte, mais especificamente do quadro “Natividade”, de Caravaggio, roubado em 1969 de uma capela em Palermo e até hoje desaparecido. As várias teorias sobre o destino da tela, envolvendo a Máfia e alta política italiana, nos são apresentadas por meio de um filme dentro do filme, ou antes de um roteiro que vai sendo construído pela assistente de um roteirista a partir de dicas de um policial aposentado. O tema é interessante, mas o desenvolvimento é um tanto rocambolesco demais, desembocando ao final no melodrama familiar.

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