Literatura dos Arrabaldes: A poesia periférica na era Lula

Nos primeiros anos do século, despontam dois livros de poesia que vibram em ritmo distinto ao do Hip Hop dos anos 90. Há valorização da vida nas quebradas, retratos da infância, festividades, erotismo – sem negligenciar suas mazelas

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Por Eleilson Leite, na coluna Literatura dos Arrabaldes | Fotografia: DiCampana Foto Coletivo

Compartilho neste texto a releitura que fiz de dois clássicos da Literatura Periférica. Um é Donde Miras, livro duplo ou contraposto: de um lado Binho, de outro Serginho Poeta, obra publicada em 2007. O outro livro é Meninos do Brasil, de Marcio Batista, poeta da Cooperifa e que foi publicado no ano seguinte. São obras que marcaram uma época e emplacaram um estilo tanto pelas temáticas quanto pela forma, estabelecendo uma dobra na tradição da literatura de CEP periférico, até então muito vinculada ao Hip Hop, cuja escrita tinha uma pegada mais sisuda de denúncia e combate político, mas que subestimava a capacidade do povo de combater o sistema opressor.

Esses três poetas analisados aqui e toda uma geração que surgiu com os saraus que se expandiram a partir da segunda metade da primeira década nutrem entre eles uma estrutura de sentimento1 que expressa confiança no povo pobre periférico, suas lutas e também suas festas. O ócio, a alegria das ruas, a unidade latino-americana e devaneios sob (e sobre) luar se sobressaem em Meninos do Brasil e Donde Miras em meio às narrativas do cotidiano periférico marcado por inúmeros perrengues. Há também uma importante presença de poemas de amor, de erotismo, de exaltação à mulher e seus encantos. Temas como a natureza e, principalmente, a nostalgia da infância pobre, porém feliz numa periferia com ares mais rurais que urbanos.

E do ponto de vista estético, os três poetas demonstram um certo apego à forma erudita, e obediência à norma culta, tanto na organização do poema quanto nas referências a escritores canônicos: Carlos Drummond de Andrade, Manoel de Barros, Guimarães Rosa. Há pouquíssimo uso de palavrão e de gíria. Esta, quando utilizada, aparece como um recurso estilístico bem colocado, sem parecer forçado, evitando a caricatura do mano de quebrada. Uma poesia que encanta pela forma e pelo conteúdo e que tinha muito a ver com a era dos governos petistas durante a qual a periferia experimentou uma certa prosperidade.

Marcio Batista

Meninos do Brasil foi publicado de forma independente em 2008, rubricado como Edição do Autor, tendo o apoio da ONG Ação Educativa e o selo da Cooperifa. A capa traz um desenho de John Boicote no qual inúmeras crianças estão na rua brincando de skate, futebol, bicicleta ou simplesmente andando. Uma imagem que reflete em boa medida o tom predominante no livro onde há uma exaltação nostálgica da infância cada vez mais distante no coração do poeta que chegou recentemente aos 50 anos de idade. A epígrafe do livro retirada da letra de uma canção de Milton Nascimento e Fernando Brant atesta o espírito da obra: “Há um menino/ há um moleque/Morando sempre no meu coração/toda vez que o adulto balança/ele vem pra me dar a mão.”2

Frequentador do Sarau da Cooperifa desde os tempos do Garajão no Taboão da Serra, Marcio é amigo de infância de Sergio Vaz a quem ele atribui sua inserção na poesia. Marcio Batista já havia participado das duas coletâneas da Cooperifa; Livro Rastilho de Pólvora (2004) e CD Sarau da Cooperifa (2006) com dois poemas que estão no livro: Meninos do Brasil e Nego Ativo. Este último aparecendo nas duas. Declaradamente tímido, Marcio demorou para se assumir poeta e celebra sua estreia em livro com um haikai como primeiro poema da obra: “Um dia enfim/ a poesia saiu/ dentro de mim”. Meninos do Brasil continua sendo seu único livro.

Binho e Serginho

O livro Donde Miras – dois poetas e um caminho publicado em 2007 pela Edições Toró possui três características editoriais marcantes. Primeira: trata-se de um livro duplo, como já foi dito; segunda: é bilíngue português – espanhol; terceira: é semimanufaturado – traço característico dos livros publicados pela Edições Toró – a lombada do livro tem um revestimento de um pano típico da indumentária dos indígenas andinos. Publicada com apoio do VAI, a obra seria lançada em várias cidades da América Latina por onde passaria a Caravana, cujo nome dá título ao livro. Mais do que a reunião de poemas, Donde Miras é um projeto político cultural.

A caravana nunca concretizou todos os seus propósitos, mas cumpriu parcialmente sua missão em território brasileiro. E Em 2014, Binho integrou a comitiva de saraus da periferia paulistana que participou da Feira de Livros de Buenos Aires, atingindo assim, ainda que tardiamente, seus propósitos de avançar por terras latino-americanas. Porém, seu livro, há muitos anos esgotado, não lhe acompanhou. Em 2017 ele publicou uma nova edição do seu livro Postesia (lançado originalmente em 1999) por meio da Edições Sarau do Binho, selo editorial que criou com sua companheira Suzi Soares em 2015.

Serginho se fez poeta em roda de samba declamando nas primeiras noites do Samba da Vela no ano 2000. Naquela época, essa roda de samba ainda acontecia num bar no Jardim São Luiz e foi lá que ele assumiu a alcunha de poeta como sobrenome por sugestão de um dos sambistas, encantado que ficou com a beleza de seus versos. Por muito tempo Serginho frequentou os encontros do Samba da Vela onde tinha espaço garantido para declamar seus poemas. Quando saiu Donde Miras, foi lá que ele lançou a obra que tem textos de apresentação de três sambistas: Vitor Pessoa (do então Quinteto em Branco e Preto), Joselito (Projeto Nosso Samba de Osasco) e de Osvaldinho da Cuíca. Somente onze anos depois, ele publicou seu segundo livro, agora solo: Poeta de Esquina que também saiu pelo Selo Sarau do Binho.

Meninos do Brasil

Em 64 poemas bem elaborados, quase todos curtos, alguns em forma de soneto, Márcio Batista discorre sobre a infância feliz de quem, como ele, apesar da pobreza teve um lar e uma família e, à luz dessa condição, condena o abandono das crianças que ficam nas ruas como pedintes ou cometendo atos infracionais: “Brasil/ olha teus meninos às margens do Rio de Janeiro/crianças sem esperanças em Salvador/sem dor pedras de Recife corroem por inteiro, diz os versos iniciais do poema “Meninos do Brasil”, que dá título ao livro. De traço narrativo, este poema percorre todas as capitais fazendo trocadilhos com os nomes das cidades e chamando a atenção para as crianças que vivem em situação de rua. Já no poema Nega de Três (Pelada) a rua tem outra conotação e é exaltada como lugar da brincadeira em bairro de periferia: “Os meninos da rua doze/vieram jogar contra/os meninos da rua seis/que ontem perderam a primeira/se hoje vencerem a segunda/amanhã farão nega de três”.

Professor e sindicalista, o autor dedica vários poemas à luta dos trabalhadores do campo e da cidade. No poema Primeiro de Maio faz uma crítica ao desvirtuamento da comemoração do Dia do Trabalhador: “Primeiro de maio/ o mundo protesta/o Brasil faz festa”. Em Dono da Terra, contesta a fome e a pobreza em meio à fartura de grãos da monocultura exportadora: “Brasil, gigante pela própria natureza/Tamanha riqueza, tamanha pobreza/Celeiro do mundo exporta grandeza/Para o mundo tem, para o povo falta mesa”.

A condição do negro no Brasil é também um tema de destaque no livro, como mostra o poema Liberdade: “Liberdade ao quilombola/resistente/aboliu o teor da argola/hoje é proletário/moeda corrente/é salário/ se renda, é esmola/mais valia a parte do patrão/que participação do operário”. Um outro poema que aborda o tema é Nego Ativo: “Quem me nega trabalho, nego/ Não terá outra chance de nega/negro é homem trabalhador/todos sabem, ninguém pode negar”. Neste poema, o autor cria um neologismo com o nome Zumbi: “Quem me nega liberdade, nego/Não terá outra chance de nega/nego ativo, livro o mundo sim senhor/zumbizando pro mundo se libertar”. Batista faz aqui uma exaltação a Zumbi dos Palmares para pregar a liberdade aos negros numa composição poética eficaz tanto para a leitura como para a declamação.

Márcio Batista, além de demonstrar um repertório amplo de temas, conferindo densidade de conteúdo às suas poesias, revela também uma habilidade no trato das palavras, geralmente em poemas curtos como um sem título que é impresso em forma de caracol tirando o leitor do conforto da leitura convencional. Partindo do centro da espiral para fora, se lê: “O sistema nervoso central não permite um olhar periférico”. Em outro haikai ele brinca com a inseminação: “o óvulo fez/ o espermatozoide/virar gravidez”. Formado em educação física, Marcio discorre sobre a anatomia humana no poema Sintonia Anatômica: “Quero exercitar teus músculos/flexores, extensores adutores/bíceps, tríceps, quadríceps/dorsais, peitorais, abdominais/ deltoides, romboides, glúteos/ um a um/ com precisão de trapézio/ estender seus tendões/ ao longo dos meus”

A palavra periferia aparece apenas duas vezes na poesia de Marcio Batista, no poema Grito de Alerta, uma das mais engajadas: “Não queira viver do suor do povo/que vive a labuta do dia a dia/conta com a história/muda com a geografia/um ponto é o centro/o centro do povo/ é o morro/é a periferiae no poema Três Meninas que aborda de forma sutil o tema da violência do crime organizado. Dedicado a três garotas (Mônica, Érica e Vanessa), supostamente vítimas de um caso real, este poema narra a história de três meninas que saem para uma festa e se enturmam com garotos desconhecidos. Um deles devia para o tráfico e acabou que todos foram mortos para queima de arquivo: “Um deles devia/na periferia/todos para o aperto/na hora do acerto”.

Márcio Batista demonstra com seus poemas lavrados em Meninos do Brasil que o universo temático da poesia periférica vai muito além das mazelas e da violência que assolam a periferia. O autor produz uma obra que, para ser absorvida, não precisa estar no contexto da literatura produzida nas bordas da Cidade, ainda que conectada ao território de onde emerge. A identificação periférica na poesia de Marcio Batista, portanto, não é um elemento que restringe a apreciação, dada a ausência de códigos de linguagem e sintaxe que só são compreendidos pelos pares, como acontece em muitas letras de RAP, por exemplo. Ao contrário, Batista navega nas águas da tradição literária brasileira e insere seu livro nessa mesma tradição ainda que ocupe nela uma posição marginal. Essa característica fica ainda mais acentuada nos poetas Binho e Serginho Poeta.

Donde miras (Binho)

A poesia de Binho tem uma leveza na composição que contrastam com dureza de suas temáticas. A maioria de seus 28 poemas publicados na parte que lhe cabe do livro, discorrem sobre inquietações e perturbações da existência humana. O outro tema é a América Latina e seu povo negro e indígena. Mas são apenas três poemas dedicados a esse tema, contrariando a expectativa que o título do livro em espanhol e por ser todo bilíngue provocam no leitor. Em Triste Aliança, aborda a Guerra do Paraguai e a aliança entre Brasil, Argentina e Uruguai para derrotar o país vizinho. No poema Latinidade, ele na verdade trata do Brasil e do desejo de abandonar este país: “O Brasil perdeu a cabeça/ só tem bunda e xoxota”. Discorre sobre suas insatisfações para na última estrofe voltar atrás na decisão: “Vou pra porra nenhuma de estrangeiro! / Vou é acordar o Brasil/ E a América Latina toda”. É no poema Ir, Ir, Ir que o autor assume um tom mais próximo da exaltação, estabelecendo paralelos culturais entre o Brasil e os países de língua espanhola: “Quero ver onde essa /América se desmorena/(…) Onde o samba é Gardel/Onde o tango é Noel/Onde Neruda é Drummond. Com essa apologia, faz do poema um manifesto para sua caravana Donde Miras.

O livro começa com seu clássico poema Campo Limpo – Taboão (publicado anteriormente nas duas coletâneas do Sarau da Cooperifa). Espécie de certidão de nascimento do poeta, esse poema é uma saudosa reverência à periferia bucólica com ares de zona rural: “Tinha campinhos e terrenos baldios/ Era meu território/Já foi interior/Hoje periferia com casas cruas/As vacas com tetas gruas/ Não existem mais. O eu lírico do poeta parece ter perdido parte de sua memória junto com esse território que deixou de existir e com isso ganhou um déficit de identidade com o esfacelamento da paisagem suburbana que descreve. Melancólico, se queixa da solidão causada pelo adensamento populacional: “Fiquei grande/ Já não caibo dentro de mim/E de tão solitário/ Sou meu próprio vizinho. Periferia, palavra poucas vezes mencionadas em seus poemas, aparece aqui como uma antítese da paisagem que o comove.

A falta de horizonte parece perturbar o poeta ávido de sertão e de pantanal, paisagens relacionadas aos dois escritores que mais aprecia e cita: Guimarães Rosa e Manoel de Barros, respectivamente. Por isso, Binho está permanentemente planejando uma fuga, mantendo sua caravana Donde Miras sempre na ordem do dia à espera de um impulso de viabilidade. A relação do poeta com o território periférico que tanto ama, parece ser também refratária. O enigmático poema Sirenes talvez tenha a resposta: “Aqui onde existe a cidade em mim/ É quase noite em meu ser/Meus homicidas estão me esperando/Já ouço as sirenes vindo me buscar/As estrelas estão todas do meu lado/Eu vi uma lua indo para São Paulo/ Eu nunca sei de que lado as sirenes estão. Interpreto este poema como a recusa em deixar um lugar onde a cidade lhe faz sentido e este lugar não é São Paulo, para onde a lua se desloca, lugar de sirenes e homicidas.

Binho não tem mais um habitat. É um poeta sem bar3 e a poesia que poderia ser sua bússola está perdida. Diz o poema Nasci Feito: “Meu destino é me achar/ Minha poesia está perdida/E se ela se encontrar/ Pode ser que me salve”. Mais adiante, no poema Identidade, fica mais explícita sua inquietação quanto ao lugar de pertencimento: “Desventrei de minha mãe/Em uma América Latina/E aqui estou eu/ No meio de um ser tão/ Desenvolvido de absurdos/ E pouco correspondido”. Com forte inspiração na sintaxe de Guimarães Rosa, Binho parece expressar uma busca que, no fim, se resolverá em seu universo particular. São inúmeros os versos em que declara essa busca: “Todo dia eu me jogo um pouco fora (Identidade); “estou inteiro em mim/e sou cada vez mais outro” (Chorações); “sou responsável pelo vulto da minha existência/ainda assim tenho preguiça de ser quem eu sou” (Da minha vida ninguém sabe)

Assim é a poesia deste autor, um exercício permanente e um tanto perturbador sobre o eu e o lugar de onde mira, na expectativa de que a alma e o corpo possam ocupar o mesmo espaço. Ele não aponta caminho; ao contrário, cultiva incertezas: “Em dúvidas eu confio(Chorações) conduz o leitor, no barco de Guimarães Rosa, em busca da terceira margem do rio.

Donde miras (Serginho)

Os 22 poemas de Serginho abordam o cotidiano da periferia, das favelas, morros, presídios. A dureza da vida do morador dos arrabaldes, no entanto, é elaborada poeticamente com sutileza e elegância, mesmo quando se trata de situações de violência como no poema épico Negro Poeta de Esquina que narra a história de um poeta negro, parado na esquina a contemplar a lua e é abordado acintosamente pela polícia: “O homem permanece inerte/Ainda assim/Recebe um soco no rosto/Que é dado com gosto/Enquanto um segundo soldado/De um posto maior/ Desfere-lhe um chute/Não há quem não escute, naquela noite/O açoite moderno/Mas só quem vê é o azul eterno/O celeste noturno”. Ou no poema Soldados de Chumbo em que um presidiário divaga na solidão de sua cela, tendo a luz da lua (novamente a lua) na fresta da janela como cúmplice de suas recordações de infância: “Quando apagam a luz/ Da última cela do meu pavilhão/Um clarão vem iluminar minha janela/É a lua”.

Serginho dedica-se à crítica social em outros poemas como O Menino e o sistema em que aborda a delinquência juvenil como efeito das desigualdades sociais, no qual sentencia: “Periferia: sala de espera do presídio”. Em Via Sacra Nordestina aborda as dificuldades do trabalhador rural no Nordeste. Evoca Ernesto Chê Guevara em San Ernesto de la Higueira, seu único vínculo com a latinidade visual que moldura o livro dividido com Binho.

O mais marcante na poesia de Serginho são os poemas de temática amorosa, abordados com elevado romantismo, como no poema Pensando em ti: “Passei o dia pensando em ti/ E mesmo com tantos afazeres/ Nada roubou mais a minha atenção/ Do que a lembrança de seu sorriso/ Da tua pele, véu moreno/ Que te cobre a estrutura/ Escultura, certamente”. Em Soneto da Esperança, o poeta esmerilha os versos: “O azul nos meus olhos, estampado/ É uma tela onde a saudade, ao próprio gosto/ Vem pintar a beleza de seu rosto/ Com lágrimas de um tom acinzentado”. Tendo a lua como metáfora preferida, Serginho faz desse astro noturno o habitat de sua amada no poema Nas luas em que te encontro: “Mas, mesmo nos momentos de horror/Meu coração é livre e vagueia pelos espaços/Que as certezas não preencheram/ Segue a colher as flores que te ofereço/Nas luas em que te encontro”.

Nos dois últimos poemas do livro, Serginho se aproxima de seu parceiro Binho nas reflexões de ordem existencial. Em Inexplicável, anuncia sua concepção poética: “Tem dias em que acordo e vejo anjos/ Tem noites em que falo com a lua/Muitas das minhas poesias/Foram feitas sob arranjos/ Que os ouvidos não ouviram/ Quando a lira, fugaz compactua/ Com certas coisas de que não há compreensão. Aqui o poeta defende a impossibilidade de explicar um poema, rejeitando-o como mera tradução dos pensamentos e sentimentos do poeta. Dessa forma, entendo, afasta-se de pretensões de fazer de sua poesia instrumento de mobilização, aproximando-se mais de uma motivação reflexiva que conduz o leitor à introspecção. No derradeiro poema, Meu Pensamento, Serginho reforça essa perspectiva, acrescentando a dimensão da memória como chave de sua criação poética: “Na memória/ Minha alma se desnuda/E minha aura está sorrindo.

A prosa sombria e a poesia ensolarada

Como foi dito, os livros aqui analisados são representativos de uma mudança na estrutura de sentimento que predominava na literatura feita na periferia de São Paulo na primeira década do século XXI. Havia uma vertente que denominei em meu mestrado4 como Literatura Hip Hop e outra que é a chamada Literatura Periférica. A primeira, majoritariamente em prosa, carrega DNA do RAP dos anos 1990 e faz uma representação da periferia demasiadamente violenta e sombria. A outra, surgida com os saraus e com grande predominância da poesia, é mais ensolarada e festiva, embora não negligencie as mazelas das quebradas.

A vertente Hip Hop se expressa numa visão desmesuradamente negativa em relação à coletividade da qual fazem parte seus autores. Em resumo, a estrutura de sentimento que está presente em boa parte da produção vinculada à Literatura Hip Hop, é de indignação com o sofrimento do povo expresso numa visão crítica da desigualdade social, porém uma descrença na capacidade de superação dessa realidade por parte desse mesmo povo, dada a sua falta de consciência, de conhecimento e sujeição aos arbítrios da mídia e outros poderes que o manipulam. Dessa forma, os próprios escritores, na condição de representantes de uma coletividade em relação à qual assumem a missão de anunciá-la na forma de texto literário, acabam por se tornarem, eles mesmos, um exemplo de superação pessoal. Um modelo que deveria ser seguido por um povo afligido pela opressão social, mas que também se destrói mutuamente nos conflitos que se dão no interior de sua própria comunidade como é relatado nas primeiras obras de Ferréz, Alessandro Buzo e Sacolinha, três dos principais representantes dessa corrente literária5.

A Literatura Periférica, por sua vez, muda substancialmente essa relação com o povo morador da periferia: “Povo Lindo! Povo Inteligente!” É o bordão usado pelo poeta Sergio Vaz para abrir os recitais da Cooperifa. Há uma confiança no povo como protagonista de seu destino, assim como há uma valorização de aspectos da vida da população periférica que são reprovados por alguns escritores da Literatura Hip Hop, como o consumo de bebida alcoólica, o futebol, a festa, malandragem entre outras características hedonistas. Diferente da Literatura Hip Hop que acentua o o clima de tensão na periferia permeado por violência, tráfico de drogas e tretas exógenas e endógenas, na Literatura Periférica o céu está sempre cheio de pipas no ar, tem churrasquinho na laje, crianças na rua, lembranças da infância feliz, apesar de pobre. A violência está presente nos textos, mas é atenuada por uma abordagem menos explícita e mais sutil e reflexiva.

A releitura de Marcio Batista, Serginho Poeta e Binho me fez reler minha própria dissertação e com isso rememorar um tempo em que a cultura de periferia emergia com uma efervescência vibrante em um período de certa prosperidade decorrente elevação do emprego e de renda proporcionadas pelo governo petista vigente na época. Isso me faz pensar que a literatura periférica e seu ar festivo tem muito a ver com o Lulismo reinante na virada da primeira década deste século. Naquela época, até o RAP mudou sua feição marrenta, ficou mais poético e fez surgir uma geração de rappers mais abertos a outras temáticas, como Criolo, Emicida e Rincón Sapiência e muitas minas como Negra Li, Carol Conka, Tassia Reis, Preta Rara, Flora Matos, entre outras que passaram a cantar suas próprias narrativas sobre ser mulher na periferia questionando o machismo intrínseco à cultura hip hop. Talvez não tão aflitos com as dificuldades da vida, os poetas passaram a dar atenção aos encantos da quebrada em poemas de retratam bem um passado que, embora recente, parece tão distante.


1 O exercício consiste em mapear as recorrências de abordagens que estabelecem aproximações entre as obras. Para se chegar a essa compreensão procuro perceber o pensamento como é sentido e o sentimento como é pensado. Tal percepção é possível de se alcançar observando o movimento da consciência prática que é o impulso, contenção e tom na fala dos personagens e dos narradores. Este procedimento foi criado pelo sociólogo britânico Raymond Williams (1920 – 1989) autor dedicado aos estudos da cultura, do teatro e da literatura, fundador dos Estudos Culturais e expoente do movimento New Left que renovou o marxismo na metade do século passado. Sua obra mais conhecida no Brasil é Cultura e Sociedade, publicada pela Editora Vozes.

2 Bola de meia, bola de gude, Nascimento, Milton, Brant, Fernando

3 Binho possuía um bar no qual o sarau que leva seu nome se realizava semanalmente às segundas-feiras. O estabelecimento, porém, foi fechado pela Prefeitura em 2012 alegando supostas irregularidades. O caso foi tratado pelos frequentadores e o movimento cultural como perseguição, pois mesmo depois de ter conseguido o dinheiro por meio de vaquinha para pagar as multas, a Subprefeitura fez outras alegações de ordem burocrática. O poeta desistiu e seu Sarau desde então acontece agora uma vez por mês no Espaço Clariô de Teatro, depois de ter passado um tempo itinerando em vários locais.

4 Leite, Antonio Eleilson. Mesmo Céu, mesmo CEP – Produção Literária na Periferia de São Paulo, EACH – USP, São Paulo, 2014.

5 Esses três autores já foram analisados nesta Coluna no artigo: Buzo, Ferréz e Sacolinha.

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