Literatura: Da cidade, do amor e da espiritualidade

Em três jovens poetas, mulheres e periféricas, um sensível olhar sobre os invisíveis, de sem-teto aos que esperam o ônibus. A libertação dos corpos em trilha de dores e encantos. O desejo de transcender: como flor, nuvem ou ser místico

Peça “Despejadas”, da Cia Nois deTeatro
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Por Eleilson Leite, na coluna Literatura dos Arrabaldes

Apresento aqui minha leitura dos livros de poesia de três mulheres. Três poetas jovens: Nathielly Janutte, Karol Coelho e Raissa Padial Corso, autoras, respectivamente, de Florescer, Estado Atmosférico e Do tamanho do coração da formiga. As obras guardam várias semelhanças entre si: as autoras são da mesma geração (todas entre 23 e 29 anos); as três são de periferia e paulistanas: Karol e Raissa são do Campo Limpo, Zona Sul e Nathielly é de Guaianazes, Zona Leste. Todas estão estreando com livros solos e as três de forma independente. Outro aspecto comum aos três livros é o projeto editorial no qual as ilustrações têm um peso importante na composição da obra.

A busca pelo autoconhecimento alinha as três obras, mas com tons diferentes. Nathielly parte de si e rompe relações para florescer num movimento de despertar. No pêndulo entre o que quer ser e o que tem sido, Karol dilui certezas, projetos e a si própria; ela quer ser nuvem. Já Raissa organiza sua forma de estar e ver o mundo para além da vida material; ela transcende. Nessa pulsão da busca interior, identifiquei uma estrutura1 de sentimento que aproxima as autoras e que se expressa na espiritualidade, nas relações de amor e na visão de cidade. Essas são as chaves que guiam a leitura e a análise conjunta das obras.

Nathielly Janutte

Florescer foi publicado 2019, editado por Andrio Cândido, poeta, ator, educador e produtor cultural que há mais de dez anos agita os fundões da Leste. Um pequeno livro em formato 10 cm x 15 cm. Em função de suas 26 páginas apenas, tem acabamento grampeado o que acentua o aspecto artesanal da obra, cuja grafia tem uma fonte próxima da letra de forma. Parece uma caderneta de anotações pessoais à moda antiga. As ilustrações são de Andrea Tolaini e os desenhos agregam uma beleza imagética que valoriza os poemas e a mensagem de libertação pessoal que a escrita de Nathielly anuncia.

Não há texto de apresentação ou prefácio. Apenas uma mini-bio. Estudante de pedagogia, ativista social, atuou em coletivos culturais de Guaianazes. Ela se declara “rueira da Selva de Pedra, flor… de aço, agente de redução de danos”. No pequeno texto que acaba servindo de apresentação, ela diz que os poemas de seu livreto são para “mulheres em processo de reconstrução de si”, oferecendo uma senha importante para a leitura da obra cujo impacto é inversamente proporcional ao seu pequeno formato.

Karol Coelho

Karol Coelho é formada em jornalismo e atua da Agência Mural de Jornalismo Periférico. Declara-se filha de nordestinos (maranhense com pernambucano). Foi por meio das canções que ela pegou gosto pela poesia e se dedica as duas artes, sendo que na música ela ainda não se revelou ao público como o faz com seus poemas. O livro Estado Atmosférico, também publicado no ano de 2019, sai com o selo da Academia Periférica das Letras que, salvo engano, é um projeto e não exatamente uma editora ou mesmo selo editorial. O livro em formato 10 cm x 13 cm tem 110 páginas não numeradas e é assinado pela RG Produções. Uma obra que tem um formato pequeno e delicado denotando uma leveza que corresponde ao espírito do livro e da autora que se encanta declaradamente pelas nuvens.

O livro tem a apresentação de Ana Luiza Vastag que aparece na ficha técnica como editora. A obra tem 67 poemas intercalados por 17 pequeníssimas crônicas, cujos títulos correspondem, supõe-se, a hora em que as cenas narradas foram captadas pela poeta jornalista em suas andanças pela cidade sempre no transporte público. As Ilustrações da capa e da abertura dos capítulos são de Cledson Bauhaus.

Raíssa Padial Corso

A autora publicou Do tamanho do coração da formiga no ano de 2017 quando tinha 27 anos, mas se alguém lesse os poemas sem essa informação, diria se tratar de uma pessoa mais velha, um griô, tamanha propriedade que ela possui das tradições religiosas de matriz africana, ameríndia e hindu, além de conhecimentos alquimia da antiguidade egípcia, astrologia e dos estudos da Eubiose. Seus poemas expressam toda essa riqueza mística, filosófica e cosmogônica que confere a seu livro uma densidade muito particular exigindo do leitor um esforço de pesquisa sob pena de não conseguir fazer uma interpretação plausível da obra.

A autora é poeta do Sarau do Binho e atua também no Sarau das Mina, ambos os coletivos assinam o livro que tem produção independente. Diferente das outras poetas aqui analisadas, seu livro tem inúmeros paratextos: prefácio (escrito por quatro pessoas), apresentação (escrita por ela), texto de contracapa (assinado pelo poeta Binho que também é seu tio), uma orelha com texto da cantora e compositora Socorro Lira e a outra com a minibiografia da autora onde ela se apresenta como mãe, radiestesista (pessoa dotada da capacidade de sentir determinadas radiações), poeta, cartomante, xilogravurista e artesã. Anuncia que é do signo de Gêmeos, portanto, do elemento Ar (informação importante como será visto adiante). As ilustrações do livro são de Acacio Corso, artista plástico e pai da autora. O formato é 18 cm x 18 cm e tem 90 páginas.

Florescer

A ideia de cidade para Nathielly está visceralmente associada à casa e o foco de tensão nos poemas que tratam dessa questão é a falta dela, como no texto de abertura Casa Mulher, cuja ilustração não é um desenho da Andrea e sim uma foto. A imagem é de um imenso terreno coberto de entulhos de casas que foram recém-destruídas numa ação de despejo sob a escolta da PM. Dois policiais estão diante dos barracos derrubados e parecem regozijar-se diante dos escombros como abutres. “A casa sangra” diz o poema no verso final. A casa é uma mulher.

A imagem dos escombros da desocupação aparece novamente no final do livro, porém sem os milicos. No penúltimo poema, sem título, ela volta ao tema mais reflexiva e estrutura o texto no movimento dos que não tendo casa, perambulam a buscá-la. Nesse transe, viram uma casa em movimento. Uma casa “que tenta fazer morada”. Nathielly especula filosoficamente: “há casas internas dentro de prédio/ há casas externas deitadas em praças”. A casa assim, encerra um sentido que transcende a arquitetura. A casa estaria em cada um e, portanto, para uns a casa é a própria cidade com a qual está em conflito, pois não lhe assegura a moradia. Uma casa sem endereço, deitada numa praça.

Nathielly vê a cidade na perspectiva dos que são por ela excluídos. Observa pela percepção das tensões e conflitos, dos invisíveis. Em um poema em forma de crônica, faz uma reflexão sobre o lugar do cidadão na cidade. Os fluxos dos transeuntes, a esmola, o jornal jogado no chão. Faz referência ao BBB com o sentido de sair de casa e ir para o sarau salvar a alma, parafraseando Criolo. Ela clama pela paz desejando uma flor no cano do fuzil que mira para a favela.

Em matéria de relações amorosas, a poeta destila seu rancor numa sequência de poemas líricos. Os versos transmitem um ressentimento pelo abandono da pessoa amada em um relacionamento tóxico que a diminuía. O rompimento serviu de estímulo para uma virada na vida, uma redescoberta. Não fica explícito de que gênero é a pessoa a quem ela dispara sua ira. Num outro poema, também sem título, ela expressa a angústia e ansiedade na espera da pessoa desejada, novamente de sexo não identificado, mas numa palavra (escondido) indica se tratar de um homem. Cansada, abraçada a si mesma, ela supera aquela situação de abandono e se liberta da espera inútil.

Em Confissões para você, a autora segue a toada da dor do abandono. Por meio da metáfora do barco ela conclui: “amar é remar pro mesmo lado se não, só gira”.
Associado à ciranda, brincadeira que ela diz nunca ter gostado, talvez por ser premonitória: “o anel que tu me deste era de vidro e se quebrou. E o amor que tu me tinhas, era pouco e se acabou…”. Na sequência vem outro poema de amor em ruína. Parece continuação do anterior. Desprovido de título, podemos até fazer a leitura corrida, mas os recursos gráficos de tonalidade da página e as ilustrações indicam se tratar de obras distintas.

Em tal poema, a autora anuncia o caminho de sua redescoberta que passa por um exercício espiritual mediado por elementos da natureza. Na tentativa de romper com um amor carnal, ela se torna vegetariana. Cria um campo de tensão objetificado pela alimentação. “prefiro levar a vida leve a base de chuchu que nada de gosto tem/ do que receber seu desdém (…). Depara-se com sua imagem no espelho e o amor por si própria ali se revelou impulsionado por uma recusa, uma purificação do corpo que se estende para o espírito. A ilustração reforça essa interpretação com um desenho de uma mulher em três dimensões num movimento de evolução: agachada, sobre sua cabeça uma folha aparece de dentro de crânio; ajoelhada, as folhas tomam forma de um ramo e num terceiro ela se esgueira e a vegetação salta da cabeça exuberante e florida.

Amar a si própria é a chave para se redescobrir como mulher. É o florescer que a autora anuncia no título do livro e que no final da pequena obra aparece novamente na forma de pergunta: “o que floresceu em ti”? Descobrir a morada dentro de si mesma como está manifesto no poema que ocupa as páginas centrais da publicação: “Precisei de muitas casas de aluguel/pra perceber que sou minha casa própria/fiz de mim lar e decidi ficar”. Alcançada essa dimensão de conquista existencial, ela enfim, se entrega novamente ao amor em mais um poema sem título que sintetiza o libertador autoencontro na ideia de casa de si mesma na qual ela descobre o amor: “choro gozo/dedos dentro/me conhecendo” e o encanto com a natureza: “Nós, floresta inteira…/ vivendo na selva de pedra/plantando sementes/um dia cresceremos árvore casa”.

Estado Atmosférico

O livro está organizado em quatro capítulos anunciados apenas por ilustrações que são delicados desenhos a lápis preto. A eles dei os seguintes títulos: poemas para dias chuvosos; poemas para dias ensolarados; poemas noturnos e poemas de outono. No primeiro capítulo está a maioria dos poemas de encontros e desencontros amorosos. O céu azul (com nuvens) e o sol aparecem no segundo capítulo não apenas como cenário, mas como metáforas, figuras de linguagem, elementos estéticos de poemas despidos de tensão: “em qualquer fresta o sol faz festa”. No capítulo três, a autora expõe seus conflitos, buscas, sonhos, vasculha o passado, se perde em devaneios. Na última parte ela é o próprio outono, estação híbrida de calor e frio na qual o céu é mais carregado de nuvens. Nesses textos ela exercita sua espiritualidade guiada pela dança, a lembrança e o colo da pessoa amada.

Já os textos nomeados pelas horas têm o mesmo diapasão em todos os capítulos e são neles que se revela uma percepção da cidade expressa nas pessoas comuns em situações aparentemente banais do cotidiano. Cenas que acontecem, quase todas, dentro do ônibus, no ponto de parada dos coletivos ou registradas através da janela desses veículos que servem de moldura para o olhar reflexivo da poeta. Uma visão de transeunte, de passageira, uma condição de observação demarcada pelo tempo fugaz. São histórias que não se conectam e se esgotam no acontecimento registrado. Apresentam-se como fragmentos que não guardam relação aparente com os poemas no seu entorno, mas que ao mesmo tempo com eles se harmonizam, pois, a autora conseguiu dar ao livro um ritmo de leitura que é do movimento: das estações, das nuvens, do ônibus, das fases da lua. Um movimento leve mesmo em dias de tempestade.

No ponto de ônibus, ela flagra uma criança menina que insiste para o pai se sentar a fim de que o velho possa se aquietar. Numa outra cena de parada do transporte coletivo, novamente uma criança, agora um menino, num dia de forte chuva, brinca com a água que os carros levantam atingindo os passageiros. É o retrato gracioso dos incômodos do cotidiano que só as crianças podem ter. Um encontro inesperado de um casal de amigos no interior do ônibus ganha requintes poéticos na narrativa da autora. A cobradora que se envaidece com o comentário de uma criança (mais uma vez) que elogia a beleza daquela trabalhadora exausta e entediada. Duas senhoras se divertem com um joguinho no celular. E os passageiros que se ocupam com seus celulares ficando indiferentes à performance de um malabarista no semáforo, exceto (novamente) uma criança que se admira com a habilidade do artista de rua.

Com esses pequenos textos, Karol se faz de Eliane Brum e vê a vida que ninguém vê, título da coluna que a consagrada jornalista tinha no Jornal Zero Hora quando ainda morava no Rio Grande do Sul. A comparação é pertinente, guardadas as devidas proporções, pois são duas jornalistas escritoras, mas, poeta, Karol é sucinta e transmite em textos de cinco linhas, situações que a colega gaúcha gostava de revelar em cinco laudas. Tanto para uma, quanto para a outra, a síntese da cidade são as pessoas anônimas e a solidão em meio à multidão.

O tema das relações amorosas está presente em todo o livro mas ganha um destaque no capítulo chuvoso. Mar, rio, cachoeira, chuva, nuvens, chá, água na chaleira, são imagens que a autora se utiliza para expressar seu pranto. Não obstante, seus poemas não sejam melancólicos. Tampouco são viscerais como os de Nathielly. Tudo na Karol é sutil. Ela é nuvem, ela flutua. Mas há uma leveza insustentável no seu lirismo. Sendo nuvem, suas lágrimas tencionam aqueles chumaços de algodão suspensos no ar até fazê-los chover, chorar.

O choro da poeta encharca esse capítulo do livro: “Chovo/até desmanchar/chorar”. Em um poema de elevada musicalidade (Pingos d’água) ela canta: “A chuva encharcou meu sono/Cheguei a sonhar de coração”. Mas porque tanto chora a poeta se ela não é melancólica? Chora de tristeza que não é o mesmo que melancolia. Tristeza é um estado de espírito (atmosférico?); melancolia é uma patologia associada à depressão. A tristeza passa; é nuvem. E o choro da poeta é consequência de suas relações amorosas. “Cachaça não evita choro”, diz um outro verso daquele poema musical citado anteriormente. E a poeta chora para processar a dor. Sendo nuvem, dilui seus amores, como sugere no poema “Quem é ela”. Mas é no final do capítulo que a tese se confirma. No poema “fuga das sobras” ainda que o eu lírico não esteja definido, se revela como síntese de como a autora trata o fim de uma relação amorosa e a expressão do pranto: “o que sobrou/apagou/pelos cantos/chorou/choveu fel/jogou fora/o anel/depois sorriu/se despiu/partiu/de si mesmo se foi/ fugiu”.

A espiritualidade, a transcendência se manifesta na poesia de Karol Coelho especialmente nos poemas chamados por mim de outono. É quando a autora se questiona sobre o que quer ser em face do que tem sido. Nessa busca ela apela para uma instância intangível que não é mediada por nenhuma liturgia, ritos ou divindade. Ela é nuvem; já está em elevação. Em poemas dessa derradeira parte do livro ela muda um pouco a postura introspectiva predominante e se abre para o mundo.

No poema Avançamos ela dá o tom de sua busca: “(…) É o ir/ É o vir/É a continuidade/Ainda que seja mudança/Passagem/Andança”. A nuvem parece que quer colocar os pés no chão e andar, aberta à mudanças desde que seja para avançar. No poema seguinte, Convite, ela continua sua andança: “Pergunte/Escute/Caminhe e permita/que o outro exista para você”. Ao chegar no final do capítulo, e do livro, ela, como que numa confissão, faz um tratado sobre que ela deseja ser. Com o sugestivo título de Eus e estruturado em estrofes ela organiza suas aspirações em três: um eu por causa da dança; outro por causa dos amigos numa alegria coletiva que inclui choro e lembranças e um terceiro que se revela no amor (que nunca teve) que se realizaria sendo ela mesma: “com olhos fechados, abriria o peito para um abismo azul de estranha completude por não esconder-se dele” (o amor). Mas ela termina o poema incrédula, pois nenhum desses eus dariam conta do que ela necessita fazer. A busca de si é um exercício de elevação espiritual, requer estar conectado com o tempo presente, com o agora, esvaziar-se de si. Isso pode ser perigoso para uma nuvem.

Do tamanho do Coração da Formiga

O livro tem quarenta e três poemas distribuídos equilibradamente em cinco capítulos nomeados pelos elementos naturais: terra, fogo, água, ar e éter. Este quinto elemento, nem sempre lembrado, é a quintaessência, o sublime, o etéreo. Os poemas são narrativos, mesmo quando partem do eu lírico da autora e são ricos em alegorias associadas ao universo religioso e místico que Raissa está inserida. Do ponto de vista da estrutura, os poemas formam sempre um bloco único, não estão organizados, portanto, em estrofes. Já os versos não são metrificados, mas alguns têm ritmo e todos têm pontuação. Para me facilitar a análise, classifiquei os textos da seguinte forma: no capítulo Terra, estão os poemas do mundo; Fogo, guarda os poemas de amor; a devoção às divindades da natureza está nos escritos do capítulo Água; o autoconhecimento está presente no capítulo Ar (elemento que rege o signo da autora) e no capítulo Éter estão os poemas místicos.

Dos três temas pelos quais faço um cruzamento das obras (a cidade, o amor e a espiritualidade), o espiritual é o elemento estruturante da obra, pois é a própria narrativa dos poemas. O amor transborda também por todo o livro. Já o olhar para a cidade está um pouco camuflado nessa autora, cuja grandeza se revela no grão de poeira, no coração da formiga. Parece ser esse o ponto de vista pelo qual entende a cidade. Há três poemas no capítulo Terra que abordam o tema. Mas há um no capítulo Ar que é difícil de decifrar, apesar da imagem urbana que o título nos dá: Segredos do Asfalto. Mas nele, talvez esteja a chave para entender esse aspecto da obra numa autora que o tempo todo tira o leitor do chão. “O céu me arranhou/e pelos caminhos que fingi saber cruzar/todos os agoras me visitaram”. Ela parece se colocar num plano elevado, no topo de um edifício alto. Dali ela se vê perturbada com os dilemas atuais que chegam distorcidos por caminhos equivocados que trilhou.

Raissa nos coloca diante de um impasse, que vai se dissolvendo mais adiante, porém, sem facilitar a vida do leitor. “Era tarde/tarde para os segredos/ que só os asfaltos guardam”. A poeta parece resignada e se apoia nos segredos guardados pelo asfalto. Entendo asfalto aqui como sendo as ruas, cuja superfície está coberta por uma densa camada de piche capaz de guardar, esconder certos sentimentos. O Racionais MC’s tem um verso no RAP Vivão Vivendo que diz: “Você está em São Paulo/Onde o vagabundo guarda o sentimento na sola do pé”. Ainda que possa ser interpretada de outra forma, essa imagem corrobora a visão da autora que conclui seu enigmático poema com os seguintes versos: “O muro invisível de espinhos/que o ar dessa cidade propicia”.

A imersão nesse poema, nos ajuda a ler outros três do capítulo Terra ao qual me referi. Hortelã é a imagem do caos urbano. Das ruas que ninguém varre, ela aborda a sujeira das ruas e faz uma reflexão sobre o excesso de cimento que sufoca as raízes das árvores regadas por gasolina (expelida pelos carros). Finalmente em Love Street, em meio a arranha céus numa movimentada e badalada avenida de São Paulo, onde os prédios encobrem os aviões, uma pessoa estica uma lona entre duas árvores e improvisa sua moradia. Nesse texto, ela reproduz trecho de uma canção do grupo The Doors que também dá título ao poema. No final evoca Joca Ramiro, personagem mítico de Grande Sertão: Veredas. “Há dias em que enxergamos nossa cegueira”, finaliza.

Agrupados todos no capítulo Fogo, os poemas de amor são lascivos, mas não exatamente eróticos. Tudo em Raissa é espiritual e assim são seus versos de amor. Volúpia estelar narra um ato sexual voluptuoso, intenso e apaixonado, aparentemente entre duas mulheres. Fluxo de Santa Sara é a evocação de uma mulher em face do chamado de uma divindade feminina. Um chamado a desabrochar: “Quem é desabrochar/não contenta em botão”. Parquinho abandonado é uma declaração de amor etérea, possivelmente a outra mulher. Oxóssi de Perifa é um lascivo assédio pelo Orixá guardião das florestas, revelando a sofreguidão da mulher em desejo por um homem que imagem do Orixá sugere. Uns pésé a alegoria doentrelaçar dos pés no ato do amor (“pés para o alto/ coxas abertas”) clamando pela fertilização. No mesmo diapasão, Colmeiaassociao corpo da pessoa amada com o mel, alimento mítico que remete à fartura, saciedade, abundância. Saindo dessa perspectiva espiritual, os dois últimos poemas do capítulo traz a autora para o mundo dos mortais. Veraneio é uma declaração de amor matinal e Sentinela expressa a dor de um amor que se acabou e parodia Vinícius de Moraes: “Mais que chama/prevaleceu a chaga”.

A espiritualidade para Raissa, como já foi dito aqui, não é um elemento, ou uma dimensão de sua obra. Sua poesia é toda espiritual como um ritual xamânico e no capítulo Éter ela compõe um tratado místicoque é anunciado no primeiro texto que tem o nome de Éter como se fosse o Gênesis na tradição judaico-cristã. É umpoema alegórico narrativo que anuncia a chegada do éter como uma entidade suprema na forma de uma substância que exala um aroma cuja inalação a conduzirá para casa. Na sequência vem Trismegisticamente, uma alusão a Hermes Trismegistus, o grande alquimista da antiguidade egípcia, criador da tábua de esmeralda, base da Alquimia. Poema de difícil compreensão, requer um repertório de astrologia, cosmologia e outras ciências do ramo. Conduz a uma viagem esotérica que passa por Júpiter e no final repousa numa abóboda azul o que remete a uma construção em forma de templo.

A autora segue com poemas que celebram as divindades, passando por três tradições como já foi dito: hindu, dos orixás e indígena que, com o rejunte da alquimia, forma a cosmogonia da autora adepta da Eubiose. Ashaka, Leões de fogo, Kokopelli, são poemas representativos dessas tradições. Os demais são meditações, saudações, chamados às divindades. Mas no poema final do capítulo e que encerra o livro, Fogo e Mar, ela ajuda esse ser agnóstico que sou a ler sua poesia transcendental: “O ser humano é ar e terra/a alma é fogo e mar”.

Da cidade, do amor e da espiritualidade

As três autoras são moradoras de bairros dos arrabaldes de São Paulo, mas a palavra periferia inexiste nas obras, exceto como neologismo no título de um poema de Raissa: Oxóssi de Perifa. Nathielly, mesmo ao falar dos sem teto, não discorre sobre a paisagem periférica. A imagem fica a cargo das fotos de despejos que indicam serem em regiões da borda da cidade. Quando ela cita favela é para pedir paz. Mas o olhar das autoras carrega o sentimento de quebrada, a sensibilidade para os que sofrem pela negação que a cidade lhes impõe. Nesse caso, Karol, sempre sutil, tem um olhar de transeunte e capta a solidão das pessoas diluídas na massa que se aglomera no transporte coletivo e vive nas ruas. Raissa expressa revolta com o fluxo da multidão “carregada como bois”, da poluição que “impregna nossos poros” e se comove com os trabalhadores invisíveis (zés-ninguém) que varrem os logradouros, mas se encanta com um morador de rua que estende um barbante em meio aos prédios da Avenida Faria Lima e monta sua cabana. É um ato de desobediência civil do excluído que invade o território burguês para nele se deitar. Os tons das autoras são próximos ao perceberem a cidade a partir do ser humano que não é cidadão.

No campo das relações amorosas, as autoras, cada uma a seu modo, revelam os encantos, a luxúria, o aconchego, o carinho em narrativas de libertação por meio dos corpos. E como é bom ler mulheres falando de si mesma. Nenhum homem, por mais sensível que seja, é capaz de revelar a alma de uma mulher. E essa revelação parece prescindir de um homem. Mas é interessante observar que as descrições amorosas não são binárias do ponto de vista de gênero. Nathielly, quando cita explicitamente uma relação entre homem e mulher é num poema no qual o eu lírico é no plural e é para protestar contra o machismo. Raissa, quando faz o mesmo, se dirige a uma divindade representada por uma figura masculina. Esta autora, em pelo menos um poema de amor, é explícita quanto à relação homoafetiva entre mulheres. Karol deixa tudo suspenso: “Com olhares/conquistou seu toque/com beijos/enxugou suas lágrimas/com colo/abrigou sua alma”. Pode ser um homem ou uma mulher e assim são quase todos os seus poemas. Essa construção poética aberta em relação à sexualidade é uma característica comum às três autoras e dá um tom emancipatório às mulheres que amam pessoas.

A espiritualidade nos três casos se revela na relação com elementos da natureza que mediam a busca do autoconhecimento. Nathielly já se declara no título e se faz flor, vira vegetariana e faz de si sua própria casa, buscando ser árvore. Karol é nuvem, lua, noite, água e por meio desses e outros elementos se abre para o mundo. Como foi possível observar, Raissa, das três, é a que vive a espiritualidade guiada por religiosidades, as outras duas são intuitivas. Mas a mediação da natureza é central na transcendência da autora, assim como suas colegas. Em um determinado poema, ela se define como jasmim e cacto, uma dualidade aparentemente contraditória, mas que é complementar. O jasmim é perfumado e se espalha, posto que é trepadeira. O cato é rígido, inodoro, resistente e arredio, pois é espinhoso. Essa imagem expressa o tom predominante nas autoras para as quais a espiritualidade é um movimento de (re)descoberta, pois, citando Raissa: “quem é de desabrochar/não se contenta em botão”.

1 O exercício consiste em mapear as recorrências de abordagens que estabelecem aproximações entre as obras. Para se chegar a essa compreensão procuro perceber o pensamento como é sentido e o sentimento como é pensado. Tal percepção é possível de se alcançar observando o movimento da consciência prática que é o impulso, contenção e tom na fala dos personagens e dos narradores. Este procedimento foi criado pelo sociólogo britânico Raymond Williams (1920 – 1989) autor dedicado aos estudos da cultura, do teatro e da literatura, fundador dos Estudos Culturais e expoente do movimento New Left que renovou o marxismo na metade do século passado. Sua obra mais conhecida no Brasil é Cultura e Sociedade, publicada pela Editora Vozes.

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