Lavando o ódio embaixo do sereno

Três expoentes da Literatura Hip Hop, que se inspiram mais no rap que em saraus. Inflamados, dão mais vazão às narrativas que a elementos formais da poesia e convidam à insurgência das periferias, para além da redenção individual

Casa do Hip Hop: Imagem: Isabela Borghese
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Abordo neste artigo os seguintes livros: Tarja Preta1, de Zinho Trindade (Selo Poesia Maloqueirista, 2010), O Hip Hop Está Morto – A história do hip hop no Brasil2, de Toni C (Edições do Autor, 2012) e Notícias Jugulares3, de Dugueto Shabazz (Edições Toró, 2006). Os três autores são artistas do RAP. Dugueto Shabazz (que até 2005 assinava com seu nome original, Ridson) foi integrante do grupo Periafricania,(atualmente segue em carreira solo) e é da periferia da zona sul de São Paulo. Toni C é DJ, morador da zona norte, onde mantém a livraria e editora Literarua, empreendimento ao qual tem se dedicado integralmente nos últimos anos. Bisneto de Solano Trindade, Zinho é poeta, ator e rapper. Mora e atua no Embu das Artes, município da Grande São Paulo, onde fica o Teatro Negro, fundado por seu bisavô e sua avó, Raquel Trindade.

Dugueto publicou seus primeiros textos no suplemento Literatura Marginal/Caros Amigos, organizado por Ferréz, edições de 2002 e 2004, além de ter participado da antologia Literatura Marginal – Talentos da escrita periférica (Editora Agir, 2005), igualmente coordenado pelo autor de Capão Pecado. Já Toni C organizou dois volumes da coletânea Hip Hop A Lápis4 com seleção de textos publicados no Portal de Internet Vermelho, antes de publicar a biografia do Sabotage (Sabotage – Um bom lugar, Literarua, 2013). Zinho que se dedica mais à música do que à literatura, assim como Dugueto, não publicou mais nenhum livro desde então, mas tem participado de antologias, como as duas do Sarau do Binho, nas quais, o autor de Notícias Jugulares também escreve.

Os três autores são representativos da chamada Literatura Hip Hop que pode também ser identificada como Literatura Marginal. Trata-se de um segmento da literatura produzida na periferia de São Paulo que é esteticamente identificada com o RAP e tem no escritor Ferréz, não só o fundador, mas também o fomentador dessa produção.5 Essa corrente se difere daquela surgida por dentro dos saraus (principalmente a partir de 2005), conhecida como Literatura Periférica e que tem no poeta Sergio Vaz seu principal expoente. Observaremos na leitura dos livros de Dugueto, Tono C e Zinho que, em distintos tons, cada um lava o seu ódio embaixo do sereno, para usar um verso do Racionais MCs (Da ponte pra cá, Racionais MC’s, 2002) grupo musical que é inspiração pra todos eles e para todo o segmento do que chamo de Literatura Hip Hop.

Notícias Jugulares

Dugueto Shabazz faz uma convocação para a guerra: “A guerra prolifera, o levante da favela/Não é uma ameaça, é uma promessa/ Promessa de terror, horror, incêndio/Por isso, playboy, tenha medo/É a saga do povo que agora se repete/Onde houver injustiça sempre haverá um rebelde/ Eles têm medo de nós porque somos a maioria/A burguesia sofre de guetofobia”.

Na literatura de Shabazz a perspectiva do levante popular toma como referência as lutas e revoltas sociais no Brasil, uma história que está nos livros que contam a história dos vencidos. Em Notícias Jugulares, este elemento da leitura é, especialmente exaltado no poema Fechados e Formados: “trigo pro corpo, luz pro espírito/ depois um livro e um revólver para cada oprimido”. O livro e a leitura aqui deixam de ser uma redenção individual e passam a ser instrumentos de luta coletiva.

Essa luta é também uma referência de organização política para a frátria dos Racionais MC’s: “apenas um rapaz latino-americano apoiado por mais de 50 mil manos” (RACIONAIS MC´s, 1997). Dugueto Shabazz no seu Manifesto Jugular declara que “somos a Internacional Palmarina e o livro Notícias Jugulares é uma carta de convocação”. Ou seja, há duas informações fundamentais na nomenclatura da organização: a Internacional, uma referência à Internacional Comunista, cuja primeira organização data de 1864 e Palmarina diz respeito ao Quilombo dos Palmares, símbolo maior da luta por liberdade do povo negro escravizado. Exaltando a periferia e a favela, o autor reivindica uma língua própria ao povo que nesses territórios habita: “nosso latim é o afrofavelizado”. Em face de todos esses elementos, Shabazz circunscreve seus argumentos na moldura do hip hop: “dessas páginas voam tiros e rasgam scratches”, numa referência aos sons tirados pelos DJs quando friccionam os discos de vinil nas pickups. Muçulmano convertido, o autor evoca Allah, “único”, e pede para que “abençoe os sinceros e puna os ingratos”.

Shabazz tem um tom belicoso e vai na jugular: “extirpa o câncer da sua covardia, burguesia” (Fechados e Firmados) ou “Brasil barril de pólvora, e o gueto acende o fósforo” (Firmão e Fortão). Desse modo, ele corrobora a tradição da literatura hip hop na qual o autor se apresenta como portador de uma missão. O autor parece ter um projeto para o povo pobre da periferia, mantendo a visão iluminista do líder que enxerga mais que os outros e aponta o caminho.

O Hip Hop está morto

Toni C muda um pouco essa abordagem com seu livro O Hip Hop Está Morto!, no qual aponta caminhos para superação da condição subalterna por meio de um engajamento mais organizativo no qual o hip hop tem um papel conscientizador e mobilizador fundamental. Nesse deslocamento de perspectiva, o livro de Toni C vai no sentido de uma luta mais institucional. Ele enquadra o hip hop na tradição das culturas brasileiras, defende a literatura como o quinto elemento formador do hip hop, exalta as organizações ligadas ao movimento, enumera ativistas e artistas que disputaram eleições e até faz uma ácida crítica ao machismo e à misoginia presentes na cultura hip hop. Para isso, o autor cria uma fábula contemporânea.

Samara, uma estudante universitária rica, moradora do Morumbi, entrevista para seu trabalho de conclusão da graduação o rapper Hian Homero Pereira, que é a encarnação do Hip Hop. Na conversa entre os dois, diversos aspectos da história e da diversidade dessa cultura são abordados, inclusive o papel da mulher. Toni C defende neste livro o Hip Hop como movimento social com grande poder de mobilização, acreditando que há no Brasil um Hip Hop verde e amarelo como sugere o subtítulo do livro, escrito com essas duas cores. Entretanto, Toni C foge do clichê redentor do Hip Hop evidenciado no trecho reproduzido abaixo:

– Então o Hip Hop salva!? Alfineta Samara.
– Isto é uma coisa que as vezes escuto por aí. Que o “hip Hop me salvou”, “o Hip Hop salva”. Eu não salvo ninguém. A salvação é uma porta que só é aberta por dentro. Somente as pessoas podem salvar a si mesmas. Eu sou uma ferramenta e, como um bisturi, posso tirar ou prolongar vidas, o mérito não é meu é de quem manuseia (p. 73)

Dessa forma, Toni C repõe o Hip Hop enquanto movimento cultural da periferia de São Paulo, situando-o como uma expressão estética que sinaliza uma estratégia coletiva de transformação política.

Em certa passagem do livro, Hiam conduz Samara até o Sarau da Cooperifa, onde ele apresenta a literatura ali declamada como parte da cultura hip hop. Sergio Vaz, mestre de cerimônia do Sarau, faz sua exaltação de boas vindas que é a expressão da mudança de perspectiva da literatura hip hop para a literatura periférica, já abordada aqui e em artigos anteriores. Na literatura periférica, o povo deixa de ser visto apenas como uma massa miserável iletrada e sofrida a espera de um líder que possa conduzi-la à libertação. Nas palavras de Sergio Vaz, um dos principais autores dessa nova vertente, o povo é tratado de outra forma: “Povo lindo! Povo Inteligente! É tudo nosso! É tudo nosso!”

Tarja Preta

Zinho Trindade tomou de empréstimo o título de um CD duplo do rapper GOG e, por isso, o autor utiliza alguns versos da faixa título daquele álbum como epígrafe de seu livro, que tem também apresentação de Nelson Maka, cujo texto adianta ideias de seu manifesto da literatura divergente.6

Os 34 poemas do livro estão divididos em 6 capítulos. Os textos abordam o sofrimento e a luta do povo negro e dos moradores das periferias. Zinho não fala de amor nem de mulher. Sua poesia é muito ligada ao RAP. Tem, inclusive, duas letras de música com o rapper Gazpar. O texto de abertura é uma prosa poética com o título Rimo Pelo Sangue Derramado Dos Heróis, um texto corrido, sem pontuação, onde o autor procura descrever o momento em que escreve um poema, como se fosse um transe, uma sensação desestabilizadora, como um orgasmo explosivo. No capítulo seguinte há poemas que abordam a violência e o efeito nocivo das drogas, mas também a guerra do povo contra o opressor para a qual a arma é a cultura.

Fiel à tradição do RAP, Zinho defende o potencial emancipador do conhecimento como fica evidenciado no poema Na Mira: “Tá chegando a hora/ munição não falta/plaw, plaw, plaw!/ Bem na cabeça e no peito/ Arte e cultura! Local: cérebro e peito. No texto seguinte, chamado Munição, escrito em prosa, diz: “A minha munição é a tinta, o lápis, a borracha a sede por justiça. Munição ao meu povo, munição pra periferia, contra os injustos, gananciosos e opressores (…)”, “A mão que bate no vidro pode apertar o gatilho, mas também pode lhe entregar um livro”.

Zinho se aproxima da Literatura Hip Hop com essa visão pretensamente libertária proporcionada pelo acesso ao livro e a leitura. Em seus poemas convoca o povo da periferia para um motim no poema Periferia é um exército: “Então avante/ Somos todos um/ sem general ou comandante/ já nascemos em trincheiras/ e sempre prontos para a guerra/ somos quase todo o planeta terra. Zinho faz Literatura Hip Hop com traço periférico numa simbiose talvez única. Suas performances poéticas não condizem muito com o belicismo que ele propõe em seus poemas. Ele é muito sorridente e tem jeito de menino maroto. Anda com chapéu e roupas brancas, leveza no caminhar e olhar penetrante. Pouco a ver com o aspecto sisudo dos rappers, mas na escrita ele se converte em negro drama.

Literatura Hip Hop

O impulso da produção literária na periferia de São Paulo está diretamente relacionado à cultura hip hop. Presente na Capital e toda a Região Metropolitana há mais de 30 anos, o Hip Hop tem seu marco fundador nos encontros que ocorriam na década de 1980 no vão da Estação São Bento do Metrô, na saída para o Largo de mesmo nome7. Situada no Centro da Cidade, aquele local permitia o encontro dos adeptos dessa cultura que estavam, invariavelmente, nas periferias, criando assim um movimento cultural urbano centrípeto. Essa influência se expressa mais especificamente no RAP (rythm and poetry), que é um dos quatro elementos da cultura hip hop (dança de rua, graffiti e DJ são os outros três).

A aproximação tem a ver com a formulação poética das letras em versos rimados, mas o elemento fundamental que faz do RAP, matriz para a literatura Hip Hop, são as longas narrativas contidas nas letras deste gênero musical em virtude da predominância do traço épico nas composições. Em cada letra, uma história é contada. O narrador, portanto, tem centralidade, pois o MC se dirige a alguém e não se volta a si próprio como na forma lírica também presente no RAP. Anatol Rosenfeld define que: “o narrador muito mais que exprimir a si mesmo (o que naturalmente não é excluído) quer comunicar alguma coisa a outros que, provavelmente, estão sentados em torno dele e lhe pedem que lhes conte um ‘caso’”8.

No contexto brasileiro, os Racionais MC’s consagraram o estilo épico no RAP com músicas como “Diário de um detento”9, na qual o narrador participa da ação que narra: “Estou aqui mais um dia/sob o olhar sanguinário do vigia/você não sabe o que é caminhar/sob a mira de uma HK/ metralhadora alemã ou de Israel/ estraçalha ladrão que nem papel/”. (Sobrevivendo no Inferno, 1997). O mesmo acontece no RAP “Negro Drama”10: “Daria um filme/ uma negra e uma criança nos braços//solitária na floresta / de concreto e aço/ veja/ olha outra vez/o rosto na multidão/a multidão é um monstro/Sem rosto e coração” (Nada como um dia após o outro dia, 2002). Já no RAP “Mano Na Porta do Bar”11, o narrador está fora da ação e relata também se dirigindo a um ouvinte: “Você viu aquele mano na porta do bar?/ ultimamente andei ouvindo ele reclamar/ que sua falta de dinheiro era problema/ que sua vida pacata já não vale a pena” (Racionais MC’s, 1993). Outro exemplo semelhante a este é a música “Homem Na Estrada”12: “Um homem na estrada recomeça sua vida/ sua finalidade: a sua liberdade que foi perdida, subtraída/e quer provar a si mesmo que realmente mudou/ que se recuperou e quer viver em paz/não olhar para trás/ dizer ao crime; nunca mais” (idem).

Essas composições são todas de Mano Brown13 e evidenciam que o insumo básico que o RAP forneceu para a formação de uma literatura nas periferias é sua temática e o modo de narrar, e não necessariamente, os elementos formais da poesia (verso, métrica e ritmo). Isso explica o fato da Literatura Hip Hop ser quase toda ela em prosa. Assim, considero que a produção literária vinculada a essa corrente, dentro da Literatura produzida na periferia paulistana, é uma transposição do RAP para o texto em prosa.

Dugueto Shabaz, Toni C e Zinho Trindade são representativos desse estilo e flertam tanto com a poesia, quanto com a prosa, compondo uma literatura que tem uma variação de tom que vai do belicismo em Dugueto, passando pelo levante do Zinho e chega na organização política do povo periférico em Toni C. São obras que marcaram época na literatura de periferia em São Paulo e que ecoam até os dias de hoje. Entretanto, diferente de Akins Kinté e Elizandra Souza, abordados no artigo anterior, os três autores que são contemporâneos daqueles poetas, não se firmaram como escritores. Dugueto e Zinho seguem carreira na música e Toni C se tornou um dos principais editores da periferia paulistana. Cada um a seu modo, seguem na missão de manter a cultua Hip Hop forte nas quebradas.


1 Como é padrão nas edições do Selo Maloqueirista, o livro tem formato 11 x 15. Tem 83 páginas. A coordenação editorial é de Berimba de Jesus; capa e ilustrações de Taíme Gouveia e projeto gráfico de Victo Meira. Alessandro Buzo assina o texto da orelha e Nelson Maka faz o prefácio que é, praticamente, um artigo acadêmico.

2 Formato 14 x 21e 150 páginas. A coordenação editorial é de Demétrios dos Santos Ferreira com colaboração de Rena Inquérito que escreve o texto que serve de apresentação. O rapper Dexter faz o prefácio.

3 O formato é 14 x 21com 112 páginas. O projeto gráfico é da Edições Toró. GOG escreve uma das orelhas e Ferréz assina o prefácio.

4 Hip Hop a Laís, o livro, de 2006 e Hip Hop a Lápis – Literatura do oprimido, 2009, ambas lançadas pelo Portal Vermelho, São Paulo www.vermelho.org.br

5 Fiz essa formulação em minha dissertação de mestrado: Mesmo Céu, mesmo CEP: produção literária na periferia de São Paulo ( EACH/USP, 2014).

6 Manifesto lançado em evento no inverno de 2012 em São Paulo assinado por GOG, Maka, Marcelino Freire, Roberta Estrela D’Alva, entre outros. O documento, porém, não exerceu a esperada influência e ficou esquecido apesar de sua pujança.

7 Há diversas publicações que abordam a gênese do Hip Hop em São Paulo a partir de fala de seus precursores e pesquisadores. Todos eles concordam que a Estação São Bento foi o marco da formação dessa cultura. Utilizo-me aqui, principalmente do documentário Nos Tempos da São Bento, de Guilherme Botelho, lançado em 2010

8 Rosenfeld, Anatol. Teatro Épico, Editora Perspectiva, 2011

9 Do CD Sobrevivendo no Inferno, 1997

10 Do CD Nada como um dia após outro dia, 2002

11 CD Raio X do Brasil, 1993

12 CD Raio X do Brasil, 1993

13 Os encartes dos CDs dos Racionais não nos dão a informação da autoria de cada RAP, mas é sabido que os dois compositores do grupo são Mano Brow e Edi Rock e que cada um canta apenas as canções de autoria própria. Brown compôs todas as letras individualmente, exceção feita a Diário de Um Detento, que tem parceria com Jocenir.

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