“Conheço a cidade como a sola do meu pé”

O drama urbano é a matéria-prima da “vidapoesia” do mineiro Ricardo Aleixo. Sua obra parte da consciência o autor como homem negro enredado numa teia de segregações – mas que busca na palavra o veneno que “mata, mas pode curar”

Foto: Divulgação
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Este texto foi originalmente publicado no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), com o título A poesia de Ricardo Aleixo. Para ler outros textos da BVPS por nós publicados, clique aqui.

Dois anjos, apresentação

Minas e os mundos. Eis o nome da mesa que na tarde da terça-feira passada, dia 26 de março, reuniu no Auditório do Museu da Inconfidência grandes nomes com vastas experiências nacionais e internacionais para discutir os sentidos do cosmopolitismo no seminário MinasMundo, Ouro Preto (2024-1924). Elisa Reis, socióloga da UFRJ, Júnia Furtado, historiadora da UFMG, Wander Melo Miranda, teórico e crítico literário da UFMG, e Ricardo Aleixo, poeta, escritor e atualmente professor visitante na UFBA compuseram a mesa e uma música finíssima, em que as particularidades de cada “mundo” não se diluíram, mas, antes, ressoaram e ainda ressoam contrapontisticamente em nossos ouvidos.

Foi um dos momentos altos do seminário que, como um todo, mostrou-se potente e vibrante em suas apresentações e discussões. Trazemos hoje uma das primeiras repercussões do evento, sobre a apresentação iluminada de Ricardo Aleixo que a todas e todos tocou – foi o comentário geral desde então. Angelo Oswaldo Araújo Santos, jornalista e atual prefeito de Ouro Preto – e, nessa condição, um dos anfitriões na cidade que sediou o seminário –, deu forma ao impacto que a apresentação de Aleixo teve, num texto raro que parece expressar a voz geral embargada de emoção das e dos presentes.

Grifo, da minha parte, porque sou também um estudioso da obra memorialística de Aleixo, dois momentos marcantes da apresentação do poeta. Em um deles, afirma não lhe interessar qualquer “ancestralidade” sem “projeto de futuro”; em outro, que seu pertencimento coletivo não anula sua individualidade e sua responsabilidade como escritor diante dos seus ancestrais estéticos. O eu memorialístico de Aleixo, que tanto se mistura com o seu eu lírico, como observa Angelo Oswaldo no texto que ora publicamos, também não abre mão da subjetividade individual – uma árdua e sempre frágil conquista em sociedades patriarcais e tão desiguais como a brasileira. Essa é a questão que estou trabalhando inclusive no curso do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) do IFCS/UFRJ neste primeiro semestre de 2024, chamado Brazil como cópia. Por isso, estamos preparando a leitura de Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite (2022), de Ricardo Aleixo, ao lado de Menino sem passado (2021), de Silviano Santiago, dois livros maiores do memorialismo contemporâneo que, ao mesmo tempo, levam mais longe os pressupostos da Bildung e, de certa forma, os superam. E, assim, reinventam estética e politicamente o legado do que chamo de “memorialismo modernista mineiro” (ver verbete correspondente no Glossário MinasMundo, lançado no evento pela Relicário Edições). Agradecemos a Angelo Oswaldo por seu texto belo e certeiro sobre Ricardo Aleixo. (Por André Botelho)


A poesia de Ricardo Aleixo

Um dos nomes mais impressivos entre os poetas brasileiros da atualidade é o de Ricardo Aleixo. Nascido em 1960, em Belo Horizonte, está cercado de reconhecimento e admiração, no Brasil e no exterior. Sua poesia instala-se em espaço e tempo que abastecem todo o processo criativo e alimentam o desdobrar da ação poética. O espaço é a cidade, tomada pela periferia, com foco nos sufocados territórios de tensão e violência, exclusão e resiliência. O drama urbano contemporâneo impulsiona o caminhar felino do poeta por entre suas mazelas. “Sou da rua”. “Ruas me atravessam, eu já disse”. “Eu também ouço vozes enquanto deambulo pelas ruas da cidade”, revela, no livro de memórias Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite (2022). 

Conheço a cidade
como a sola do meu pé.
(Labirinto)

O tempo funde passado e futuro, como no conceito grego de aion, porque traz a ancestralidade como força motriz da sobrevivência, aquilo que passou como semente do que virá e já tornado fruto pronto para a próxima sementeira. O tempo presente deixa-se captar pelas antenas do poeta aberto à fruição do dia. No meio da rua está a poesia. Daí o fato de que seu livro de memórias contenha uma força poética extraordinária, na linha do memorialismo que tem como farol os insights da poesia, tal como na carpintaria do serrote de Murilo Mendes.    

Desde menino eu misturo
o antes, o agora e o depois
(Cantiga de Caminho)

Por sobre uma dificuldade visual, ele vira vidente e antecipa visões, tanto quanto despoja dos artifícios o trompe-l’oeil que encobre as realidades. O seu olhar não se engana, e o poema é a lente que faz de cada fragmento a centelha do todo.

Palavra é que nem veneno:
mata, mas pode curar
(Palavrear)

Para Ricardo Aleixo, a poesia está em toda parte. Se ele consegue traduzi-la em palavras, não se atém à letra ou à oralidade, mas busca o que segue adiante, está além do verbo e se manifesta em movimentos diversos. Há o deslocamento das palavras sobre a página branca ou preta, como na constelação de Mallarmé. Simultaneamente, o autor incorpora-se ao texto poético e, no poemanto, faz uma performance que é também poesia.

Quanta poesia
fiz enquanto não fazia
tanta poesia
(Consolatio)

O pano no qual se acha impresso o texto leva o poeta, como na veste de Artur Bispo do Rosário e no parangolé de Hélio Oiticica, a uma instalação, à maneira de uma liturgia, em que o movimento corporal conduz a expressão poética a uma dimensão que pela página impressa jamais seria atingida. No tempo e no espaço, ele viaja na dança que terá sido uma das primeiras formas de manifestação poética.

Sou, quando coloco sobre
meu corpo (negro)
o pedaço de pano (preto)
coberto por palavras grafadas
com tinta (branca)
ao qual dei o nome
de poemanto,
um performador.
(O poemanto: ensaio para escrever (com) o corpo)

A poesia era branca no Brasil, e foi o verso branco de um Castro Alves que denunciou o crime hediondo da escravidão. A poesia preta surgiu com um Luiz Gama pioneiro. Cruz e Souza, chamado o “cisne negro”, refugiou-se na imagética simbolista, mas Ricardo Aleixo nele apreendeu como vibrar na “permanente hesitação entre som e sentido”, ouvindo as “vozes veladas/ veludosas vozes”, que “vagam nos velhos vórtices velozes”.

Abdias Nascimento pôs o negro em cena. Carolina Maria de Jesus acendeu a fogueira. Tudo, porém, evoluiu lentamente. Em Minas Gerais, para onde legiões de africanos foram trazidas no ciclo do ouro e dos diamantes, a poesia é hoje negra na obra de Adão Ventura, Edimilson de Almeida Pereira, Anelito de Oliveira e Conceição Evaristo. Particulariza-se a contribuição de Ricardo Aleixo, e é preciso que se focalize, com atenção, a sua presença no campo de batalha.

A poesia é preta por que de outro modo para ele não seria poesia. Nasce visceralmente da consciência de seu autor como homem negro, enredado na teia de segregações do quadro urbano assaltado pela violência e esmagado pela discriminação, mas também, da mesma forma, um homem elevado pela transcendência, sensibilizado pelo que assombra a alma, estremece o corpo e é gozo de amor. A poesia o reencontra a todo instante.

por umas frases lidas a esmo
e depois em silêncio uma mulher que dorme
(Mulher livro)

Ricardo Aleixo expõe a sua arte poética em cada texto. O verso é entrecortado e cortante como lâmina. “tempo muda o tudo todo”. Se é “tarde demais/ para deixar/ falar o medo/ e começar a escre/ ver (viver) com mode/ ração”, ele continua a “aleixar-se” do vão, do raso, do torpe, para prosseguir na construção do labirinto. O verbo aleixar significa afastar, e é preciso, pois, inverter-lhe o significado para que nos aproximemos sempre mais da “vidapoesia” de Ricardo Aleixo.

[Os versos aqui transcritos vêm da antologia Pesado demais para a ventania, lançada em 2018, pela editora Todavia]

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