Cinema: O Morcego e o Brega

Vale a pena conferir dois documentários – tão criativos quanto díspares. Um debruça-se na vida e morte de PC Farias, peça-chave no impeachment de Collor. Outro, na poesia de Lupicínio Rodrigues que, mais que cafona, é de mansidão, como diz Gilberto Gil

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS

Dois excelentes documentários em exibição nos cinemas retratam duas figuras contrastantes e incontornáveis da cultura brasileira. Morcego negro, de Chaim Litewski e Cleisson Vidal, fala de Paulo César Farias, o PC, famigerado tesoureiro de Fernando Collor. Lupicínio Rodrigues – Confissões de um sofredor, de Alfredo Manevy, resgata a vida e a obra de um de nossos maiores compositores populares.

Ambos os filmes fazem um uso competente e criativo de um vasto material documental, aliado a entrevistas e depoimentos precisos e pertinentes. Cada um deles opta pela construção narrativa mais condizente com seu objeto.

Morcego negro tem como eixo e princípio formal a investigação jornalística – e também policial – referente a Paulo César Farias, seguindo uma implacável ordem cronológica, de seus tempos de pequeno empresário em Maceió até sua transformação em “vilão número um do Brasil”, dono de uma fortuna incalculável e conexões com o grande empresariado brasileiro, a máfia italiana e o narcotráfico internacional.

A narrativa é vibrante como uma boa história policial, mesclando melodrama, suspense e comédia e mostrando a todo momento o quanto aquela trajetória individual estava intimamente imbricada com a nossa formação histórica, política e cultural. Fotos e filmes domésticos, reportagens televisivas, depoimentos em CPIs, recortes de jornal, gráficos, animações – todos os recursos são usados para conferir clareza e vitalidade ao universo retratado.

Baseado livremente no livro Morcegos negros, de Lucas Figueiredo, o documentário traz depoimentos esclarecedores do próprio Figueiredo e de outros jornalistas que cobriram o personagem, como Xico Sá e Mario Sergio Conti, além de ouvir parentes de PC (filha, irmão, cunhada), políticos (Collor, FHC), peritos e policiais que participaram, no Brasil e no exterior, das investigações sobre seus crimes e sua morte nebulosa.

Premiado na última edição do festival de documentários É Tudo Verdade, Morcego negro despertou algumas críticas por seu formato supostamente televisivo, mas o fato é que ele realiza com grande competência seu objetivo: iluminar a história política brasileira por meio de um personagem ao mesmo tempo singular e emblemático (ou sintomático).

Lupicínio

Se Morcego negro segue uma progressão de drama policial, Lupicínio Rodrigues – Confissões de um sofredor se constrói em círculos concêntricos, por assim dizer, mostrando a inserção do biografado (e seu impacto) em vários momentos da cultura brasileira.

O filme já começa com uma sequência de arrepiar: o clássico “Nervos de aço” cantado alternadamente por intérpretes tão díspares quanto Caetano Veloso, Adriana Calcanhoto, Marisa Monte, Arto Lindsay, Paulinho da Viola, Arrigo Barnabé e Ney Matogrosso, concluindo com um depoimento de Cazuza sobre a coragem de Lupicínio em expor sentimentos considerados “bregas”.

Desde esse início, Lupicínio é apresentado como um manancial que se espalhou em várias vertentes nas gerações que se seguiram. Com base em entrevistas do próprio Lupicínio, realizadas entre 1968 e 1974, e em depoimentos de parentes e amigos, traça-se a história pessoal do compositor, desde sua infância pobre no bairro porto-alegrense de Ilhota até o reconhecimento internacional, mas não de modo cronológico, e sim num movimento pendular que vai do dado biográfico à discussão da influência estética e cultural, e vice-versa.

Nesse processo, nada fica de fora: da vida boêmia de Lupicínio à história dos clubes negros e do ambiente racista de Porto Alegre; do machismo de certas letras ao tema recorrente da “cornitude” (neologismo criado pelo poeta Augusto de Campos); da utilização sem crédito da canção “Se acaso você chegasse” no musical norte-americano Dançarina loura (1944) à busca genealógica dos ancestrais escravizados do compositor.

A montagem, usando trechos de reportagens, documentários e filmes de ficção, além de crônicas de Lupicínio na voz de Paulo César Pereio, é de uma criatividade notável. E a relação entre som e imagem jamais é óbvia ou redundante.

O que ressalta disso tudo é a grandeza da obra, sua faculdade de atravessar as épocas ganhando novos significados e mantendo sua vitalidade. Lupicínio compôs sambas, tangos, guarânias e boleros, entre outros gêneros. Canções como “Felicidade”, “Esses moços”, “Vingança”, “Se acaso você chegasse”, “Nervos de aço”, “Volta” e uma infinidade de outras foram cantadas por intérpretes que ora exacerbavam (com intenção irônica ou não) sua dramaticidade (Francisco Alves, Linda Batista, Elza Soares, Jamelão, Maria Bethânia, Ney Matogrosso, Arrigo Barnabé), ora a atenuavam (João Gilberto, Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Adriana Calcanhoto).

O próprio Lupicínio, que dizia se inspirar em Mário Reis, tinha um canto discreto e suave como sua prosa. Mansidão é a palavra perfeita usada por Gilberto Gil para descrevê-lo. O contraste entre essa mansidão e a turbulência dramática de algumas de suas letras não deixa de ser um dos encantos desse imenso artista.

Confusão no hotel

Uma história contada por Paulinho da Viola numa entrevista que não está nos filmes talvez aproxime os universos contrastantes dos dois documentários abordados. Paulinho chegou certa vez a uma cidade do Nordeste (se não me engano) e foi se instalar num hotel. No saguão, encontrou um alvoroço de jornalistas, fotógrafos e curiosos. Perguntou ao rapaz da recepção o que estava acontecendo. “Você não sabe? O PC Farias vem aí, está todo mundo esperando.” Paulinho disse então que tinha uma reserva. “Em nome de quem?”, perguntou o funcionário. “No meu mesmo”, respondeu o sambista: “Paulo César Faria”.

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