Cinema: Os demônios do lar

Uma família feliz é um título irônico: por trás de um casal e filhos “de comercial de margarina”, fervilham ciúme, ressentimento e loucura. Entre reviravoltas, obra levanta uma questão: quando uma história sobre a crueldade passa a ser, ela mesma, cruel?

.

Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS

Em Uma família feliz, de José Eduardo Belmonte, que chega aos cinemas na semana que vem, nada é o que parece ser – a começar pelo título, evidentemente irônico, e a terminar pela coda, já na sequência dos créditos, que confere uma dimensão sutilmente política ao conjunto.

Por trás da felicidade sorridente de uma família “de comercial de margarina” – casal jovem e bonito de classe média alta, filhas gêmeas encantadoras, bebê rechonchudo – fervilha um mundo de ciúme, ressentimento e loucura que explode em violência crescente.

Não vai nesse resumo nenhum spoiler, já que os primeiros minutos do filme apresentam Eva (Grazi Massafera) enterrando uma criança num jardim, jogando outra dentro do carro e saindo em disparada pela estrada, na contramão. Depois desse início vertiginoso, o filme se constrói como um longo flashback que mostrará como se chegou àquele ponto de não retorno.

Vicente, o marido de Eva (Reynaldo Gianecchini), é um advogado bem-sucedido, prestes a se tornar sócio da firma onde trabalha. Eva fabrica artesanalmente bebês hiper-realistas, vendidos a mulheres que perderam seus filhos – circunstância que desde o começo tinge a trama com um tom sinistro. Logo saberemos que Eva não é a mãe, mas a madrasta das gêmeas Sara (Luiza Antunes) e Angela (Juliana Bim), e que as meninas sentem falta da mãe biológica, morta em circunstâncias obscuras. Está formado assim o magma de tensões prestes a entrar em erupção.

Drama, suspense, terror

Mas, como já se disse, nada é o que inicialmente parece ser, e o roteiro de Raphael Montes (especialista em séries e filmes policiais) espalhará pistas falsas e manipulará até o fim as suspeitas e as emoções do espectador. Dá a impressão de que sempre haverá uma câmera oculta para desmentir o que parecia ser uma certeza.

Trafegando na tríplice fronteira entre o suspense, o drama familiar e o terror, Uma família feliz traz à tona uma porção de temas de uma atualidade candente: violência doméstica, opressão da mulher, linchamentos virtuais etc.

A condução cinematográfica desse amálgama dramático atesta o amadurecimento de Belmonte como diretor, com uma construção visual crescentemente sombria e uma montagem ágil que ora serve para fazer avançar a ação, ora a carrega de significados.

Um omelete que vira carvão, esquecido numa frigideira, expressa de modo eloquente a perturbação emocional de Eva como desfecho de uma discussão com o marido. Do plano de uma das filhas deitada de lado na cama, amuada, depois que o pai disse que não dormiria com ela, corta-se para um enquadramento idêntico da madrasta, igualmente amuada, no quarto onde Vicente entra. Dos gemidos eróticos de Eva na cama com o marido, salta-se para seus gritos lancinantes na mesa de parto.

Cinema da crueldade

Várias cenas são pontuadas por imagens dos bebês manufaturados por Eva. Na mais macabra delas, a cabeça de um deles é “cozida” num micro-ondas. Passa pela mente do espectador cinéfilo uma infinidade de referências do cinema de terror, de Chuck, o brinquedo assassino às meninas gêmeas de O iluminado, passando pelo manequim no forno de Ensaio de um crime, de Buñuel.

A habilidade do roteiro e da realização (que inclui uma ótima direção de atores, tanto dos adultos como das crianças) não abole, entretanto, uma questão ética fundamental: qual é a linha divisória em que um filme sobre a crueldade passa a ser, ele mesmo, cruel? Tenho a impressão de que Uma família feliz experimenta perigosamente esse limite.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *