Cinema: No coração selvagem da Clarice

A bela burguesa. O quartinho da empregada. A barata esmagada. A paixão segundo G.H não reproduz o livro de Clarice Lispector: emula uma linguagem, uma aventura ética e estética. Inventivo e intenso, filme é um mergulho em um mundo prestes a desmoronar

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS

A esta altura, mesmo quem não leu A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, sabe do que se trata: a escultora G.H., uma beldade da elite carioca, entra no quartinho da empregada recém-demitida e vivencia uma epifania às avessas ao se deparar com uma barata. Mergulha no coração selvagem da vida. Mais importante do que esse escasso entrecho é o que a escritora faz dele: uma busca desesperada de transcender os limites da linguagem verbal, por meio de uma escrita que se desfaz e refaz a todo instante.

Como transpor essa experiência-limite para o cinema sem cair na mera ilustração ou paráfrase? Foi esse o desafio que se propôs o diretor Luiz Fernando Carvalho, de Lavoura arcaica e tantas minisséries notáveis de TV. O resultado é um filme sui generis, que tenta dialogar de igual para igual com o texto soberbo que o inspirou.

No começo ouvimos sons de máquina de escrever, vemos um cigarro aceso por mão feminina. Signos visuais e sonoros que dizem claramente: estamos no mundo de Clarice, no universo de sua ficção. Seguem-se imagens distorcidas, entre o figurativo e o abstrato, dentro de um enquadramento mais “quadrado”, menos horizontal que o costumeiro. “Estou procurando”, diz a voz de G.H. (Maria Fernanda Cândido). “Tenho medo desta desorganização profunda.”

Aventura ética e estética

Desde o início, portanto, a tentativa não é de reproduzir um relato, mas de emular uma linguagem, uma aventura ética e estética. Ao longo das próximas duas horas veremos (e ouviremos) vários procedimentos com esse objetivo: o de encontrar a forma audiovisual de expressar a queda livre dessa mulher no horror e na maravilha da existência.

“O que era eu?”, pergunta a protagonista, desencadeando em flashback imagens de um apartamento elegante, com movimentos suaves de câmera e cores em tom pastel em que predomina um azul diáfano. É esse mundo refinado e bem composto que está prestes a desmoronar, como parecem anunciar as aparições fragmentadas da empregada negra, Janair (Samira Nancassa), movendo-se pelo apartamento vazio – um ser estranho ao ambiente, que em certo momento, mais tarde, encara a câmera com o ar desafiador de quem reage contra sua condição subalterna.

Ao entrar no recém-desocupado quartinho da empregada, G.H. dará início a um mergulho no abismo que abalará simultaneamente sua tripla condição: a condição burguesa, a condição feminina e a condição humana. Luiz Fernando Carvalho e sua co-roteirista Melina Dalboni parecem empenhados em não deixar de lado nenhuma dessas dimensões, em especial a social-racial, apenas sugerida no livro. Não por acaso, na porta do quarto de Janair está colada com durex uma bandeira do Brasil de papel. É também nesse país vertiginosamente desigual que G.H. entra ao cruzar aquela porta/portal.

Não caberia aqui (e em lugar algum) descrever todos os procedimentos audiovisuais de que o diretor lança mão para recriar a descida da protagonista aos infernos de seu próprio ser. Talvez nem todos sejam bem-sucedidos; afinal, uma empreitada de risco inclui a possibilidade do erro e do fracasso. Mas alguns são particularmente inspirados.

O desenho e a barata

Ao se deparar com um desenho traçado a carvão por Janair na parede do quarto, G.H. tem seu primeiro choque. É como se aquilo fosse uma pintura rupestre ancestral, um recado, um sortilégio, uma ameaça a sua condição de patroa e senhora. No filme, a descoberta é entrecortada pela imagem de mão negra traçando o desenho a carvão – um homem, uma mulher, um cão, vistos no mesmo enquadramento com a bandeira brasileira na porta entreaberta do quarto.

Tudo condensado ali: a herança escravista, a desigualdade, o ódio de classe, o medo de classe. G.H. tenta apagar o desenho com as unhas, com uma espátula, e por fim joga água na parede. Corta para um breve flashback de G.H. mergulhando numa piscina, antes do retorno a seu horror no quarto. Esse movimento pendular, entre o passado seguro e confortável da protagonista e seu presente convulso, será uma constante no filme.

O segundo choque, o encontro de G.H. com a barata, é uma experiência radical que fica em algum lugar entre a iluminação zen-budista (o satori) e o horror súbito de Roquentin diante de uma raiz disforme de árvore em A náusea, de Sartre. “O mundo todo vivo tem a forma de um inferno”, diz ela. Num instante vertiginoso G.H. se descobre como parte do cosmo, respirando junto com tudo o que é vivo.

Momento decisivo

Como esse momento decisivo é recriado no filme?

G.H. entreabre a porta do armário. É vista de dentro, na contraluz. Vemos a silhueta de seu rosto. Um grito súbito, um recuo, os olhos cobertos por uma prateleira. Gritos, sons de asas de inseto amplificados. Horror no rosto, na trilha sonora. Ela fecha bruscamente o armário e a tela fica escura. Reabre a fresta, aproxima o rosto. “Meu coração embranqueceu, como cabelos embranquecem.” Corta para o rosto negro da empregada, como se fosse o contraplano, isto é, como se a empregada estivesse no armário, olhando para ela. “Grite, grite” – e vemos a imagem de G.H. gritando, sem som, e em seguida um plano de antena de barata superampliada, como uma lança.

Haveria inúmeras maneiras de montar/mostrar a cena. Luiz Fernando Carvalho optou por essa, que me parece extraordinária. O modo como a barata reaparece de quando em quando no filme também é digno de nota. Ela nunca surge inteira, mas sempre aos fragmentos, como nos sonhos que queremos esquecer.

Um exemplo entre tantos. “Adeus, beleza do mundo”, diz G.H., e vemos seu rosto que se contorce, suas mãos que amassam a pele e desgrenham cabelos, é ela toda que se deforma desesperadamente. Corta para a gosma saindo da barata, em superclose. “Quero Deus naquilo que sai do ventre da barata”, diz a protagonista.

Em outras passagens, a barata falada, verbalizada, suscita imagens aparentemente incongruentes, que multiplicam os sentidos e associações de ideias. G.H. diz: “Vista de perto, a barata é um objeto de grande luxo, uma noiva de pretas joias”. E, em vez do inseto, o que se mostra é a protagonista nua, de costas para a câmera, deitando-se languidamente na cama, como a “Vênus ao espelho”, de Velázquez.

Em suma, o jogo entre imagem, palavra, ruídos e música (Bach, Mahler, Ligeti, Schubert, Duke Ellington por Billie Holiday, o Hino à Bandeira…) é quase sempre inesperado e estimulante. A inquietação existencial e estética de Clarice Lispector encontra aqui um interlocutor à altura. E o cinema brasileiro ganha um grande filme.

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