Seres e lugares no cinema brasileiro

Em Sem Coração, grupo de adolescentes de distintas classes experimenta, com vigor e delicadeza, a relação com o mundo que os cerca. Uma baía propõe, em flashes, um ensaio poético-geográfico-social sobre Guanabara, seus personagens e seu entorno

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Chegam aos cinemas ao mesmo tempo dois filmes brasileiros que não devem passar batidos: o documentário Uma baía e o drama ficcional Sem coração. Vamos a eles.

Dirigido pelo tarimbado e consagrado Murilo Salles, Uma baía é um ensaio poético-geográfico-social sobre a baía de Guanabara e seu entorno. Mais propriamente, um conjunto de oito ensaios autônomos, como se fossem oito curtas-metragens, cada um deles dedicado a um pedaço da imensa baía: Maré, Ilha do Governador, São Gonçalo, Paquetá etc.

A absoluta ausência de locução, de entrevistas e de textos explicativos resulta numa obra ao mesmo tempo estimulante e inquietante. Cada parte encontra seu ritmo e sua construção visual e sonora de acordo com a paisagem natural e humana retratada.

O primeiro segmento, por exemplo, dedicado ao Cais 18 da área portuária, se concentra num enorme armazém convertido, ao que parece, em sede social de diversos sindicatos (estivadores, conferentes, vigias etc.) e em seu entorno. O que vemos primeiro, antes mesmo das figuras humanas, são as máquinas em movimento – navios, caminhões, guindastes –, num balé das coisas que lembra Jacques Tati.

Personagens e ambientes

Não há, nessa primeira parte, personagens que se destacam. O interesse está no ambiente, sobretudo no enorme galpão em que acontece de tudo: reuniões sindicais, cultos religiosos, homens dormindo em redes, gente vendo noticiário na TV. É por essas notícias entreouvidas que ficamos sabendo que estamos em pleno governo Temer. Sim, Uma baía foi rodado entre 2016 e 2018, finalizado em 2021 e só agora chega às telas, o que diz muito sobre o destino do cinema independente no Brasil.

Os outros segmentos do filme são dedicados a atividades e personagens específicos: um homem que é pedreiro de dia e pescador à noite, outro que cata caranguejos no mangue para vender na feira, um terceiro que arranca mariscos grudados nas pilastras da ponte Rio-Niterói, um barbeiro de vila pesqueira que dorme no próprio salão e é estudioso da Bíblia, e por aí vai. Um cavalo que puxa charrete de passeio é o protagonista da parte dedicada à ilha de Paquetá – à maneira do jumento Balthasar de Robert Bresson ou do Eo de Jerzy Skolimowski.

Desse meticuloso painel, que ganhou o prêmio de melhor montagem (de Eva Randolph) no Festival do Rio, emerge um mundo extremamente vivo e multifacetado, com foco na relação do homem com seu ambiente.

Sem coração

Sem coração, da alagoana Nara Normande e do pernambucano Tião (assim mesmo, sem sobrenome), é o desenvolvimento do belo curta-metragem homônimo que a dupla dirigiu em 2014. Ambientado em 1996, retrata um grupo de adolescentes e suas peripécias num lugarejo no litoral de Alagoas, misto de aldeia de pescadores e local de veraneio.

A narrativa se desenvolve entre o romance de formação e a crônica de geração, oscilando entre as ações coletivas – passeios de bicicleta, brincadeiras, namoros, masturbação em grupo, pequenas delinquências – e o exame mais íntimo de duas personagens, Tamara (Maya de Vicq), garota branca de família de classe média, que está prestes a deixar o lugar para estudar em Brasília; e Sem Coração (Eduarda Samara), moça negra, filha de pescador que deseja seguir o caminho do pai.

Sem Coração, que tem esse apelido porque sofreu uma cirurgia cardíaca não explicada, é mantida afastada da turma, embora seja usada pelos garotos em suas primeiras experiências sexuais. Tamara se encanta por ela, e o que ocorre entre as duas é melhor não antecipar aqui.

Por meio de uma narrativa episódica bastante realista, mas não isenta de sonho e poesia, vem à tona uma porção de temas morais e sociais candentes: o machismo, a homofobia, os preconceitos de classe. Nada, contudo, é forçado. Não há uma intenção política ou moralizante que se imponha sobre a ação, muito pelo contrário.

A vida que pulsa

O que importa aqui é mostrar a vida que pulsa num grupo de jovens e em sua relação com o mundo que os cerca, e isso se faz com frescor, vigor e delicadeza, aproveitando ao máximo a riqueza da paisagem: coqueirais, mangues, praias, recifes, ruínas de casas e hotéis.

Nesse conjunto cinematograficamente impecável, destacam-se a comovente atuação das duas jovens protagonistas e a beleza inexcedível das pescarias noturnas. Não foi por acaso que Sem coração ganhou o prêmio da crítica na Mostra Internacional de São Paulo e o de fotografia (de Evgenia Alexandrova) no Festival do Rio.

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