Canção ao longe: As vantagens da demolição

O pai negro, distante. A filha, também negra, em sua família branca. Mas não é um melodrama. Com poética urbana, filme aborda com força e sutileza o racismo e, através da desconstrução de certos aços afetivos, esboça outras redes de acolhimento

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema

As palavras “racismo” e “machismo” não são ditas sequer uma vez em Canção ao longe, primeiro longa-metragem “solo” de Clarissa Campolina, em cartaz no IMS Paulista e outros cinemas. No entanto, esses temas perpassam toda a trajetória da protagonista, a jovem arquiteta Jimena (Mônica Maria).

Enquanto busca retomar por carta o contato carta com o pai distante – Arturo, que mora no Peru –, Jimena finaliza o projeto e acompanha as obras da nova sede de uma grande orquestra, em Belo Horizonte, e procura um lugar para morar. Quando o filme começa, ela ainda vive com a mãe (Margô Assis) e a avó (Matilde Biadi). Ambas são brancas e Jimena é negra.

Aos poucos, em fiapos de conversas, silêncios e meias-palavras, compreenderemos que o pai, Arturo, é um negro peruano que nunca se sentiu realmente aceito no seio da família mineira. A própria Jimena se sentia fora do lugar. Cresceu tendo que dizer a todos que não era adotada e evitando tomar sol “para não ficar preta demais”. Por tudo isso, sentia-se abandonada pelo pai, de quem herdara a cor da pele, o cabelo encaracolado e os dedos longos.

Dito assim, pode dar a impressão de um melodrama familiar. Nada disso. O filme extrai sua força justamente da sutileza com que aborda seus temas mais lancinantes. Seu ponto de equilíbrio é a própria Jimena, encantadora em sua mistura de doçura e altivez. Nunca levanta a voz nem perde a suavidade. Pode-se dizer, talvez, que se trata de um modo bem mineiro, de viés e em surdina, de encarar os assuntos cruciais.

A linha metafórica adotada pela narrativa é a da demolição e construção. Começa com uma casa vazia sendo derrubada, com a protagonista dentro. É um pesadelo de Jimena, mas de fato a casa em frente estava sendo demolida. E o ofício da moça é construir: desenha projetos, visita o canteiro de obras, contempla ao final sua realização – que, claro, é uma obra coletiva.

Família, famílias

Paralelamente, há a desconstrução de uma família – caracterizada como uma célula que ao mesmo tempo acolhe e constringe – e o esboço de novas famílias: com o namorado músico e seu filho pequeno, ou com as amigas que, não por acaso, falam sobre homens que abandonam as parceiras quando elas engravidam. A própria orquestra é, de certo modo, uma família diversificada e harmônica.

A cidade também é uma presença marcante, não apenas em sua arquitetura (casas antigas convivendo com arranha-céus e viadutos), mas em sua pulsação cotidiana. Em sua jornada, Jimena se enfurna num sebo de livros, passa diante de um supermercado que baixa as portas, de um templo onde um pastor vocifera e de uma barbearia em que se ouve um rap; entra num bar onde um casal de mulheres embriagadas dança ao som de uma música brega, etc.

Em contraste com a algaravia da metrópole, o ápice dessa poética urbana é a cena em que, numa madrugada vazia, uma vizinha anônima (a cantora Juliana Perdigão) canta lindamente à capela, da janela de seu apartamento, a canção que inspirou o título do filme, “Alguém cantando”, de Caetano Veloso. É como se houvesse uma comunicação entre solidões, um afeto possível entre desconhecidos, uma família potencial de solitários.

Por essas vias, a noção de família se questiona e se amplia para muito além da “tradicional família mineira”. Como dizem os versos de Marina Lima e Antonio Cícero, “pátrias, famílias, religiões e preconceitos – quebrou não tem mais jeito”.

A praga e os trópicos

Estão chegando aos cinemas também dois outros filmes brasileiros radicalmente autorais, cada um à sua maneira: A praga, média-metragem inédito de José Mojica Marins, que durante décadas foi julgado perdido, e o grandioso Luz nos trópicos, de Paula Gaitán. Abordei A praga brevemente por ocasião de uma exibição especial na Cinemateca Brasileira, em São Paulo.

Ao contrário da concisão de A praga, Luz nos trópicos se expande por mais de quatro horas e conecta poeticamente Nova York e o Pantanal, o sol do Xingu e a neve da Nova Inglaterra. Sua construção é descontínua, contrapondo rituais e afazeres de indígenas atuais à excursão de colonizadores europeus de séculos atrás. Liderados, aparentemente, por um personagem nobre vivido por Arrigo Barnabé, estes últimos alternam frases em português, francês e espanhol. São brancos e europeus, é o que importa. Em dados momentos, esses mundos distintos se interpenetram.

A liberdade narrativa e dramatúrgica é total, com as sequências se conectando mais por associações poéticas e, digamos, filosóficas do que por relações consecutivas ou de causa e efeito. A par de uma contemplação quase extática da natureza exuberante, sobressai uma celebração da beleza, da força e da resiliência dos povos originários, tanto os da mata brasileira como os das florestas da Nova Inglaterra. Um filme belo e estranho, que exige uma entrega total do espectador a seus planos longos e a seu fluxo irregular.

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