Cinema: a cidade que pulsa nos corpos

Em cartaz, Seus ossos e seus olhos é um estudo do corpo e de seus embates. Na história, um cineasta vive diversos encontros e situações numa cidade — São Paulo — vista como um ser vivo: com perigos, promessas e abismos sociais e existenciais

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema

Um dos filmes mais interessantes da temporada corre o risco de passar despercebido, esmagado por blockbusters americanos no degradado circuito exibidor brasileiro. Estou falando de Seus ossos e seus olhos, o segundo longa-metragem “solo” de Caetano Gotardo, diretor de O que se move e codiretor (com Marco Dutra) de Todos os mortos.

Qualquer sinopse seria enganosa e redutora. Aqui vai uma possível: o cineasta João (o próprio Caetano Gotardo) vive diversos encontros e situações na cidade de São Paulo: com o namorado, com uma amiga e com pessoas fortuitas que o abordam pelos mais variados motivos.

Jogos de cena

Cada uma dessas situações é filmada de modo autônomo, sem uma conexão direta, consecutiva, entre elas. Em vez disso, as relações entre as sequências são mais enigmáticas, subterrâneas, revelando cada uma delas como construção, jogo de cena. Há um rebote constante: uma conversa desenvolvida numa cena é repetida com variações em outra, um mesmo diálogo se repete em outro cenário, uma história vivida (isto é, vista por nós) é relatada ou mostrada de modo diferente em outro momento.

Uma sequência-chave no meio do filme realça o aspecto de representação de tudo o que se vê e ouve. Numa sala de mixagem, João repassa com o técnico de som uma cena que vimos antes: João conversando com a amiga Irene (Malu Galli) na sala do apartamento dela. O diretor pede ao técnico de som que inclua ruídos produzidos fora do quadro (especificamente, de garrafas de cerveja sendo abertas). Revemos então a cena toda, sem os diálogos, só com ruídos. Só que ela é totalmente diferente da que tínhamos visto antes, o que nos leva a repensar todas as outras sequências como realidades construídas, encenadas.

Em outra passagem, o namorado de João, o ator Álvaro (Vinicius Meloni), conta a ele o episódio de uma garota que teria desmaiado ou fingido um desmaio numa aula de teatro. Só que, meia hora antes, o próprio João ouviu (e ouvimos com ele) a mesma história ser relatada por outra pessoa num ensaio teatral em que Álvaro estava presente. Onde está a mentira? Onde a verdade?

Promessas e perigos

A despeito dessa consciência do caráter de representação, Seus ossos e seus olhos tem um frescor invulgar, transmitindo a pulsação dos seres e dos lugares. O filme todo pode ser lido como um estudo do corpo e de seus embates: com outros corpos, com a cidade, consigo mesmo. A própria metrópole se apresenta como um corpo vivo, pleno de promessas e perigos, potencializados pelas diferenças sociais e existenciais.

Nos intercursos homoeróticos de João (com o namorado ou com um desconhecido que encontrou no metrô) os corpos se engalfinham como numa luta, desajeitados, com braços e pernas que parecem estar sobrando. Na cidade, o protagonista foge correndo de um homem que, no fim, só queria dinheiro para comprar um lanche. Sozinho, João não encontra posição confortável para seu corpo na sala do apartamento da amiga. Em outra sequência, realiza uma mímica em que parece estar numa luta encarniçada consigo mesmo.

Imagem e imaginação

Na poética audiovisual de Caetano Gotardo há um procedimento formal que se repete quase invariavelmente: parte-se de um plano geral ou médio e a certa altura passa-se ao close de fragmentos dos corpos. Isso se dá tanto numa cena de entrevero amoroso como na observação de matiz documental de uma dança break de jovens numa praça da cidade. Ou mesmo na bela passagem em que João e Irene contemplam na Pinacoteca o quadro “Saudade”, de Almeida Júnior. Sempre o movimento do olhar vai do geral ao detalhe.

Na cena da contemplação do quadro, emerge a questão do quanto projetamos de nós naquilo que vemos, ou do quanto uma imagem atiça a imaginação de quem vê. Não por acaso, as duas palavras têm a mesma raiz. A moça na pintura observa uma fotografia, mas antes de saber disso João fantasiava que ela estava lendo uma carta, e imaginava histórias alternativas sobre seu teor e seu remetente.

A todo momento, enfim, o filme nos faz refletir sobre as relações entre imagem e palavra, entre o que se diz e o que se vê, o que se recorda ou se imagina. Tudo é construção e tudo, no fundo, é verdade. Até as mentiras.

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