A voz que acompanha o Brasil de volta a si

Em meio à turnê Que tal um samba?, cantora relembra sua trajetória, desde quando topou com Chico Buarque nos bastidores de seu primeiro espetáculo, até estar ao seu lado – cantando todo o sentimento de um país em busca de reencontrar-se

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Por Mônica Salmaso em depoimento a Thallys Braga na Piauí

Nossa primeira apresentação em São Paulo com o show Que tal um samba? aconteceu no dia 2 de março, quinta-feira. Eu estava apreensiva, as estreias sempre são assim. No meu caso, pesava ainda o fato de estrear na minha própria cidade, com uma plateia cheia de amigos e familiares. Eu me sentia insegura por causa disso, mas a realidade é que não tem muito como dar errado com um repertório como esse, um show tão bem feito por tanta gente boa no que faz e com a celebração, de base, de estarmos todos, palco e plateia, ao lado de Chico Buarque.

Tenho 28 anos de carreira, mas o que estou vivendo agora é uma experiência inédita. No final de 2020, Chico Buarque me convidou para participar de alguns shows que ele faria em comemoração aos 50 anos do disco Construção. Parecia um devaneio. Eu cresci ouvindo a voz do Chico na vitrola dos meus pais, no rádio do meu quarto e no fone de ouvido. Construção foi lançado no ano em que eu nasci. Cantar ao lado dele, saindo do gigantesco deslocamento da pandemia, seria catártico. Aceitei imediatamente. 

Mas houve uma nova onda de Covid, seguida de quarentena, e a ideia foi adiada e modificada – até que, em 6 de setembro de 2022, aconteceu a estreia, em João Pessoa, do show Que tal um samba?. A partir de então, começamos a percorrer o país.

A ideia do Chico, desde o início, era que eu me apresentasse sozinha na abertura e, depois em momentos pontuais, dividisse o palco com ele em algumas canções. Ele me deixou à vontade para que eu escolhesse aquilo que gostaria de fazer sozinha e, por e-mails e telefonemas, levantamos uma lista de possíveis duetos (considerando as formas, os assuntos e as tonalidades). Chico ensaiou com os músicos duas semanas e, comigo, mais cinco no Rio de Janeiro, entre julho e agosto de 2022. Os ensaios fizeram com que eu ganhasse mais segurança para interagir com ele, a equipe e os músicos – todos já meus amigos e conhecidos de longa data –, que formam, com o Chico, um corpo de trabalho de mais de trinta anos. Existe entre eles um modo de convivência tão calmo e respeitoso que faz com que a música aconteça da melhor maneira possível. Era curioso: um pedaço de mim sentia o peso da enorme responsabilidade, e outro, de cara, sentiu estar em um ambiente muito familiar.

Cheguei ao Rio crente que iria visitar os meus amigos, ver o Samba do Trabalhador, o Forró da Gávea, todos os eventos possíveis, cheia de saudade de viajar e encontrar todo mundo, depois de tanto tempo de pandemia. Mas rapidamente me dei conta de que não poderia fazer absolutamente nada disso porque precisaria fazer uma rigorosa preservação da minha voz, em vista do volume de ensaios e da gincana de viagens e shows. 

Todas as noites chego em casa falando pouco, quase nada, e bem baixinho. Faço exercícios de fonoaudiologia de aquecimento e de desaquecimento vocal antes e depois de cantar. Não como nem bebo o que faz mal para a voz. Vou ao otorrino (que chamo de luthier), sigo as ordens da fono. Meu filho, Théo, e meu marido, o músico Teco Cardoso, viraram parceiros incríveis nessa fase de seguidas viagens e da minha rotina de cuidados, que é mais fácil de seguir à risca quando estou viajando, porque chego no quarto do hotel e fico em silêncio até dormir. Aos 30 anos, eu me cuidava menos e tinha maior resistência. Aos 52, qualquer bobeada pode provocar um efeito-cascata porque não há tempo hábil para tratamento e recuperação, com tantos shows – nas temporadas do Rio de Janeiro e de São Paulo, quatro noites seguidas e três dias de descanso. Na condição de convidada, não quero prejudicar o Chico, o show, toda a equipe e o público. Muita responsabilidade e uma vontade enorme de viver essa experiência, esse presente, esse momento histórico da forma mais bonita possível.

Depois de João Pessoa, a turnê passou por oito cidades antes de chegar em São Paulo. Neste ano, começamos com uma sequência de dezesseis apresentações no Rio de Janeiro, todas com ingressos esgotados e uma enorme procura. A produção e o Chico decidiram abrir mais duas datas extras com ingressos a preços mais acessíveis e sem mesas na pista para que mais gente pudesse ver o show. Acabamos gravando e filmando essas duas noites. Foram apoteóticas! 

Houve uma época na música brasileira em que temporadas de shows assim, com essa quantidade de datas seguidas, eram comuns, mas eu faço parte de uma geração de artistas em que isso não acontece com frequência. Nossas temporadas (quando acontecem como temporadas) são mais curtas e espaçadas.

Antes de estrear em São Paulo, tivemos o mês de fevereiro quase inteiro de férias, pude voltar para a minha casa, no bairro da Aclimação, e ficar um pouco mais com meu marido e meu filho, que tem 16 anos. Pudemos ir para nossa casa no interior de São Paulo, descansar. Essa pausa me encheu de vontade de voltar ao palco e começar tudo outra vez. A gente se acostuma com toda a equipe do espetáculo e, quando fica longe, sente saudades. Antes de a turnê começar, eu olhava para a agenda e pensava, assustada, no tanto de shows e de viagens, com medo de não dar conta. Agora que estamos prestes a encerrar a turnê, me bate uma dorzinha no peito. 

Assisti a vários shows do Chico Buarque na minha vida. Ele é certamente o artista que mais ouvi desde a infância. Depois que comecei a cantar, alguns compositores e estilos musicais viraram meus objetos de estudo e, naturalmente, acabei incorporando suas influências e seus aprendizados ao meu trabalho. Mas com o Chico não foi desse jeito. Como os discos dele fizeram parte da minha formação, eu os escutava sem pensar nas características que deveria absorver se quisesse me tornar cantora. Menina, eu nem sabia direito sobre os sentimentos adultos que ele descrevia tão bem, mas, mesmo sem entender algumas músicas, elas foram criando em mim um acervo de emoções. É o que a música faz, com a poesia costurada na melodia e vestida pela harmonia. Ouvir o Chico era assim: ele me despertava muitas vezes algo que eu não entendia e era incapaz de elaborar, mas que gerava tristeza, saudade, alegria, intensidade, tudo isso vivido de forma afetiva, não cerebral. Um movimento muito potente, enorme dentro de mim, e que me compõe.

Quando eu era criança, ninguém na minha casa fazia qualquer tipo de arte. Cresci sem conhecer nenhum artista pessoalmente. Mas meus pais compravam discos, e com isso eu me apaixonei pela música muito cedo. Escutava aqueles LPs coloridos de historinhas infantis com composições do Braguinha que ainda hoje acho maravilhosas. Eu me concentrava nos detalhes das músicas, e um mundo de prazer e emoções se abria para mim. Quando tinha 7 ou 8 anos, um grupo de amigos dos meus pais vinha em nossa casa (um sobradinho) algumas noites para tocar e cantar junto com um professor de violão. Eu descia do quarto, e os adultos me deixavam participar. O que quer que eles tocassem, eu tratava logo de aprender a cantar: Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Milton Nascimento, Caetano Veloso, João Bosco, Gilberto Gil. E Chico Buarque.

Eu fazia um certo sucesso por ser tão pequena, interessada e afinada. Claro, isso me fazia bem. Uma vez, um dos presentes me deu um papel com a letra de O Cio Da Terra, do Milton Nascimento e do Chico, para eu decorar e cantar no próximo sarau. Tem um verso da música que diz “Cio da terra, propícia estação”, mas a pessoa tinha escrito a letra com uns garranchos, e a palavra “propícia” ficou parecendo “propécia”. Na noite do sarau, fui com tudo e cantei, cheia de vontade: “Cio da terra, propécia estação.” Todo mundo ficou se entreolhando e rindo. Quando descobri o erro, morri de vergonha. Hoje é uma lembrança divertida. Aqueles saraus foram o meu parquinho de diversões, e me deixava contente ouvir dos adultos que eu tinha inclinação para cantar. Um comentário assim funciona como estímulo: cantar virou o meu lugar do prazer e a atividade que eu sabia que me renderia elogios.

Durante a adolescência, nos anos 1980, fui aos shows de vários artistas da mpb, como Caetano Veloso, Gal Costa e Milton Nascimento. Também comecei a frequentar festivais de jazz em São Paulo. Eram espetáculos realizados em grandes espaços, para uma plateia gigantesca. Na época, eu não tinha o costume de ir a shows em teatros menores. Ser artista, para mim, significava pertencer a uma gravadora multinacional, aparecer nos programas de televisão e novelas, tocar em rádios e cantar em palcos enormes, e isso parecia estar longe demais da realidade, um sonho para muito poucos, o que anulava qualquer pretensão minha de virar cantora profissional.

Durante o ensino médio, que eu fiz no Colégio Equipe, comecei a tocar “violão de acampamento”. Tive também um amigo incrivelmente musical (hoje advogado) que cantava e tocava bem, fazia rodas de música e me chamava pra cantar. Um dia, andando pelo bairro da Vila Madalena, vi esse meu amigo saindo todo feliz da escola Espaço Musical. Ele me contou que estava fazendo aulas de guitarra e de percepção musical. Eu estava com 18 anos e fazia cursinho para o vestibular. Queria cursar jornalismo, por influência da minha prima, a jornalista Renata Lo Prete. 

O cursinho era uma experiência insuportável: a tradicional turma de Humanas (formada por todos aqueles que se reconhecem nessa área, como eu, e todos os outros que não têm ideia do que querem fazer), espremidos em uma sala sem janelas, com um professor tentando animá-los ora com musiquinhas para decorar, ora com lançamento de giz para acordá-los. Enfim, era o purgatório.

Decidi assistir a uma aula de canto da Espaço Musical e conheci a professora Regina Machado – hoje coordenadora do curso de canto da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e dona da escola Canto do Brasil –, que viria a se tornar a minha primeira referência de cantora profissional. Fiquei fascinada, porque ela não era uma estrela da tevê, mas uma trabalhadora comum, uma pessoa com quem eu poderia conversar e perguntar: “E aí, como é esse negócio de viver de música? Se eu escolher essa profissão, vou conseguir me sustentar, mesmo não sendo o equivalente ao Cristiano Ronaldo da indústria musical?”

Nas aulas de canto, com o auxílio do piano, pude me inteirar sobre a extensão da minha voz, entendi o papel da respiração, do apoio do diafragma. Minha voz fez ginástica, ganhou corpo, cresceu. Comecei a escutar os cantores de outra forma, a estudá-los. Dois meses depois, cheguei em casa e anunciei: “Pessoal, não quero mais fazer o vestibular de jornalismo porque vou viver de música. E descobri que isso é possível.” Como eu era uma jovem responsável e sempre fui bem na escola, meus pais concordaram, depois de fazerem algumas perguntas. O cenário da época apresentava novidades: os pequenos selos musicais se multiplicavam, e a Unicamp estava prestes a abrir inscrições para o curso de graduação em música popular de São Paulo.

Estudei por cerca de um ano e meio na Espaço Musical, intercalando as aulas teóricas com as de violão, canto e percepção musical. Estava diariamente cercada de outras pessoas que também viam a música como uma possibilidade de trabalho. Agora eu escutava os discos de outra maneira, buscando referências para aprender e pensar sobre música. Tentando entender como tudo funcionava e me conscientizar de quem eu seria ou como seria minha estrada. Um tempo depois, a mãe de uma amiga do ensino médio me elogiou para a atriz Rosi Campos, e ela, mesmo sem me conhecer, indicou o meu nome para o diretor de teatro Gabriel Villela. 

Ele estava para montar a peça O Concílio do Amor, no Centro Cultural São Paulo, um espetáculo que não era um musical, mas tinha uma personagem cantante, a Verônica, que vai na frente das procissões da Paixão de Cristo, abrindo o Santo Sudário e cantando diante das casas. Gabriel me ligou, fiz um teste e entrei para o elenco. Cantar, por si só, oferece à pessoa um lugar de destaque. Começar uma carreira no centro do palco, com a luz dos holofotes sobre si, pode ser assustador para iniciantes rígidos como eu era. Nenhuma pessoa está preparada para esse salto, principalmente se for tímida, como eu também era. Começar em uma companhia de teatro era o que eu precisava para ganhar segurança, porque o ambiente e os atores eram acolhedores, o papel era um entre muitos, mas importante como todos na composição geral da peça. Ensaiamos muito, costuramos figurinos, pintamos cenários e eu mergulhei fundo nas apresentações, que começaram em novembro de 1989, e a peça ficou em cartaz cerca de um ano, acho. Foi uma experiência linda que carrego para sempre.

Em determinado momento, depois de me apresentar na peça, comecei a cantar em bares, onde conheci outros músicos. Formei um primeiro grupo com amigos da minha geração, começamos a fazer shows e decidi que era hora de me dedicar a isso. Saí de O Concílio do Amor, mas fui assistir muitas vezes, inclusive no último dia de apresentação, quando Gabriel me disse para voltar para casa e me vestir toda de preto, porque naquele dia teríamos uma Verônica a mais. Fui sem piscar, e ao voltar ao teatro, esbaforida, abri a porta e dei de cara com Chico Buarque, Marieta Severo e Silvia Buarque, que estavam lá para assistir à peça. Puxei o ar com força e prendi a respiração. Por instantes, fiquei travada, com os olhos bem abertos, diante do Chico. Foi a primeira vez que me encontrei com ele. Estava atrasada demais para continuar ali e então saí correndo, sem falar nada.

Nessa época, os meus amigos começaram a frequentar os bares da Vila Madalena e de Pinheiros. Dois eram especialmente legais para escutar música ao vivo, o Café Paris e o Vou Vivendo. Os artistas eram bons, e aos poucos fui me introduzindo a eles, cantando uma música aqui, outra ali. Eu participava do show de todo mundo, era incansável. Se alguém me convidava, eu ia, mesmo depois de ter me apresentado em algum lugar, e cantava até não poder mais. Acabei sendo contratada.

O compositor Eduardo Gudin frequentava o Vou Vivendo e um dia me convidou para participar de um disco que queria fazer com outros cantores, chamado Notícias dum Brasil. Foi o meu primeiro trabalho profissional. O Gudin também me provocou para fazer um disco só meu. Um tanto insegura, respondi que não tinha um trabalho próprio, nem saberia criar um às pressas. Jamais faço alguma coisa se tenho dúvidas, não sei ser assim. Ele disse para eu ter calma porque era ainda muito jovem, com várias possibilidades por explorar, e me sugeriu gravar Os Afro-Sambas, de Baden Powell e Vinícius de Moraes. 

Dos Afro-Sambas, eu conhecia apenas os mais conhecidos, Berimbau, Canto de Ossanha e Consolação, gravados por muitos cantores. Nunca tinha ouvido o disco original. A jornalista Maria Luiza Kfouri, estudiosa da música brasileira, amiga do Gudin e hoje minha amiga muito querida, me copiou uma fita cassete do LP original, de 1966, e fiquei embasbacada. Aquilo era coisa muito séria: no final da bossa nova, surgiu esse material com células rítmicas africanas, misturando a densidade amorosa do Vinicius de Moraes com os orixás. É um disco lindo, de um tipo de projeto raro na música brasileira. Achei que era um projeto seguro para eu começar a minha estrada e um presente imenso fazê-lo (também ideia do Gudin) com o violonista, compositor e arranjador Paulo Bellinati, músico incrível e generoso, que àquela altura já tinha uma carreira internacional de solista. Gravamos o disco em duo e o lançamos em 1995. Foi um desafio pra mim, um início honroso e uma escola musical.

Nos anos seguintes, gravei discos no selos Pau Brasil e Eldorado (por ter vencido o Prêmio Visa), viajei muito com o Bellinati com nosso show dos Afro-Sambas e recebi um convite para gravar três discos pela recém-criada gravadora Biscoito Fino (onde fiz até hoje oito CDs e dois DVDs). Em 2006, recebi com surpresa o convite do Chico para gravar com ele a música Imagina, parceria com Tom Jobim (que eu conhecia e amava há anos), no CD Carioca. Era inacreditável estar no estúdio com o ídolo da minha infância, cantando uma composição cuja letra eu conhecia de trás pra frente. Foi a segunda vez que o encontrei, desde aquele dia nos bastidores do teatro.

A gravação me deu vontade de agradecer a Chico Buarque, na forma de um disco dedicado à obra dele, o que eu sabia que faria em algum momento. No mesmo ano, comecei a selecionar as canções (eu era tão tímida que sequer considerei a possibilidade de convidá-lo para participar do projeto). Quando planejava esse disco, que chamei de Noites de Gala, Samba na Rua, já estava grávida do Théo, e decidi incluir a canção Você, Você, que o Chico escreveu para o primeiro neto. Cantei no estúdio “imaginando o imaginário” de alguém que ainda estava para nascer e que, desde sua chegada, se tornou um maravilhoso companheiro de viagem, um legítimo “filho de circo” ou um “menino-milhas” como a gente o apelidou. 

Em 2008, consegui, pela primeira vez, patrocínio para realizar uma turnê. A de Noites de Gala, Samba na Rua foi também a primeira de grande porte que eu fiz. Rodei o Brasil com ela. Eu e o Teco não paramos de trabalhar desde o nascimento do Théo, levando nosso filho nas viagens, até ficar inviável – não para nós, mas para ele. Todas as escolhas que fazíamos visavam garantir segurança e o melhor cuidado para o Théo. A gente se divertiu muito! Esse momento que estou vivendo de uma turnê grande novamente, com muitos dias fora de casa, aconteceu em uma hora boa e possível, já que o Théo está crescido e o Teco está trabalhando em casa, compondo e escrevendo arranjos para um trabalho solo, e escrevendo um livro. 

Vivi o período de isolamento social de maneira muito restrita, sentindo ansiedade, uma angústia absurda e também compaixão e vontade de ajudar o mundo. A pandemia interrompeu a minha agenda de shows e a do Teco, e tivemos que reduzir as despesas. Fizemos as malas e fomos com o nosso filho para uma chácara em Sarapuí, no interior de São Paulo, onde o custo de vida é bem menor que na capital. Havia quintal, espaço para pegar sol, cachorros, galinhas, varal para pendurar as roupas, segurança física e emocional, o que era fundamental naquele momento. 

Logo no início da pandemia, em março de 2020, entrei no Instagram e tentei cantar em uma live com Alfredo Del-Penho, meu amigo. Mas havia o delay que tornava impossível sincronizar a minha voz com a dele. Foi engraçado e curioso, e me dei conta de que não só estava impedida de trabalhar como não poderia cantar com os meus amigos.

No dia seguinte, acordei e disse ao Teco que queria consertar o embaraço daquela live. Fiz uma proposta ao Alfredo: “Você topa gravar comigo um vídeo cantando e tocando A Cor da Esperança, do Cartola e Roberto Nascimento? A gente combina a forma da música previamente, você grava da sua casa um vídeo, tocando e cantando, e deixa os vazios onde eu vou cantar. Manda pra mim que eu faço aqui a minha parte e depois junto um ao lado do outro, para a gente se encontrar.” O Teco sugeriu que eu cantasse olhando para um lado e o Alfredo para o outro, assim, depois de editar os vídeos, ficaria parecendo que estávamos interagindo. 

Publiquei o vídeo no Instagram e no YouTube, com o nome de Ô de Casas, em referência ao chamado das visitas no portão, embora ali, naquela gravação, cada um estivesse na sua casa. Fiquei feliz e aliviada com a brincadeira que me fez tão bem e afastou minha cabeça daquele momento difícil. Logo outros amigos viram e disseram que queriam fazer também. Foi uma enxurrada. Fizemos 75 vídeos seguidos, um por dia. Lotou a memória do iPad e do celular, precisei buscar o computador e um HD  externo em São Paulo. Assim como fiz com outros compositores amigos, a cada vez que uma música deles era gravada na série, eu mandava o link por e-mail ou WhatsApp, com o anúncio: “Saiu mais um pão quentinho”, mandava para o Chico as gravações das músicas dele. De vez em quando, inspirada no bem que esses vídeos caseiros e amorosos faziam para a gente e para as pessoas que passaram a esperar por eles (fizemos 175, no total), num ato de coragem que eu não tinha antes, eu convidava o Chico a gravar uma música. 

Um dia me lembrei de uma gravação ao vivo da música João e Maria, do Chico Buarque, no Tokio Marine Hall, o mesmo teatro em que nós dois estamos nos apresentando agora, em São Paulo. E convidei o Chico a gravar comigo essa música, no mesmo tom e arranjo, com a participação do Luiz Cláudio Ramos, que toca com ele há anos. O Teco poderia tocar a flauta, e eu cantaria os trechos que ele quisesse. Era uma sexta-feira. Ele me respondeu: “Pode ser na segunda-feira?” Fiquei exasperada. Combinamos o que cada um cantaria, liguei correndo para o Luiz Claudio, que topou e fez o primeiro vídeo. Gravei a minha parte em casa, mandei para o Chico, ele gravou a dele e me enviou. Dali a alguns dias, publicamos o vídeo.

O que se seguiu foi um incêndio numa caixa d’água. Acho que, como eu, as pessoas sentiram conforto em ver o rosto e escutar a voz de Chico Buarque num momento de tanta solidão e angústia, como aquele. E acho também que esse momento de convivência à distância, mas cheio de afeto, significado e confiança, foi um dos motivos de ele me convidar para o seu show.

Agora que os encontros presenciais voltaram, descobri que há coisas, pessoas e modos de conduzir a vida dos quais não preciso mais e que parecem estar relacionados a vidas passadas. Tendo sido obrigada a parar tudo por causa da pandemia e me “encontrado” à distância com tanta gente, pude parar e ter, pela primeira vez, uma percepção que nunca tive: a de que consegui construir uma carreira. Fiz um site novo com esse olhar. Por quase dois anos, não trabalhei nem vi o público, e estava com uma vontade absurda de subir ao palco. O fato de estar fazendo a turnê do Chico e o modo como tenho me apresentado são o resultado de respostas encontradas por uma pessoa que viveu a pandemia dessa forma. É indissociável, como acho certo que seja, tamanho o deslocamento, tamanho o susto e as perdas que tivemos, especialmente no Brasil com sua condução desumana, irracional e negacionista. 

Quando começamos a conversar sobre o repertório do espetáculo, no ano passado, contei ao Chico que a cantora Teresa Cristina e eu fizemos algumas batalhas musicais temáticas no Instagram durante a pandemia. Nós somos muito amigas, e a Teresa estava naquela produção diária de transmitir lives com convidados. Em certa ocasião, o tema da batalha foi “canções para crianças”. Ela selecionou algumas, eu outras, e varamos a noite cantando. 

Já de madrugada, eu me lembrei de Todos Juntos, uma música linda do Chico para o espetáculo infantil Os Saltimbancos. Comecei a cantar totalmente desarmada e motivada pela saudade da infância, e a Teresa me acompanhou, numa alegria bonita de ver. Tudo ia bem até chegar nos versos “Ao meu lado há um amigo/Que é preciso proteger/Todos juntos somos fortes/Não há nada pra temer”. Naquela hora, em plena quarentena, a música ganhou o peso do seu real significado. Eu chorei de um lado, a Teresa do outro, as duas alagaram suas telas, enquanto as pessoas que nos assistiam enviavam uma chuva de centenas de emojis de choro. Chico deu risada dessa história, adorou. Perguntou se eu teria coragem de cantar Todos Juntos no show. E eu respondi: “Eu tenho!”.

Em casa, fui brincar de tocar a música na kalimba, um instrumento musical de origem africana que tem algo de caixinha de música. Tenho uma kalimba pequena, com um pesinho bom, que achei numa lojinha de artesanato de beira de estrada. Mostrei para Chico, Luiz Claudio Ramos e Vinícius França, que disse categórico: “Isso tem que abrir o show.” Pensei: “Vixe!” O público estaria esperando ansiosamente pelo Chico e, quando as cortinas se abrissem, apareceria eu, cantando uma música de criança com voz e kalimba. Mas a ideia era bonita, inclusive conceitualmente, porque localiza o momento em que o Chico entrou na vida de muitas pessoas. Há uma geração que cresceu escutando Os Saltimbancos. Eu mesma assisti ao show com meus pais, nos anos 1980, no Teatro Tuca, em São Paulo, uma das primeiras montagens do musical.

No início da turnê Que tal um samba?, nós vivemos um momento histórico muito agudo, com a proximidade e a chegada da eleição. O show começou a percorrer o país em setembro a partir do Nordeste, a região que poderia ser fundamental para o fim do governo Bolsonaro. Era catártico. A maioria das pessoas na plateia usava máscaras, para muitas delas era a primeira vez que iam a um show depois da pandemia, estavam em estado de euforia por estar no mesmo ambiente que Chico Buarque – o que seria em qualquer tempo um enorme acontecimento –, poder encontrar seus pares e sua própria identidade afetiva, assim como a do país em que se reconheciam. Atravessamos o período entre os dois turnos com agonia, somada a muita força e esperança. Os shows foram vividos com um grau de emoção difícil de explicar. E, depois das eleições, acrescentou-se o sentimento de alívio e confraternização de voltar para casa, uma casa machucada, cheia de estragos, mas que é onde a gente se reconhece.

De todas as rasteiras que o Brasil sofreu nos últimos anos, a pior delas foi pensar que nós, talvez, poderíamos ter perdido nossa identidade. O país foi parar em um tenebroso lugar de mentira e ódio institucionalizados. Um lugar desumano, não só por causa de sua histórica e imperdoável desigualdade social (que temos que resolver, como tantas outras coisas estruturais), mas desumano até mesmo no discurso. Uma espécie de Brasil bizarro, como um mundo paralelo, uma realidade paralela. Sem falar nas pessoas que perdemos para a Covid e para a ignorância. Viver isso distante dos amigos na pandemia potencializou a sensação de “Cadê a minha casa? Cadê todo mundo?”. E então, de uma hora para a outra, nos vimos dentro de um teatro lotado de pessoas, e todas elas são irmãs, porque se identificam umas com as outras – e o show do Chico virou catártico, afetivo, de um modo que eu nunca vi, por propiciar essa celebração da vida, quase da ordem do religioso. Era muito mais que estar no show de um artista de quem gostamos tanto. Para mim, foi um privilégio máximo viver esses momentos em cima do palco e ao lado do Chico.

Que tal um samba? não é um showmício. O Chico teve o cuidado de fazer uma setlist que capta a indignação e a denúncia social, mas também os afetos, os valores que devolvem a identidade de brasileiro. Tudo em nome da esperança. Isso é ainda mais forte, ainda mais profundo. Nós tememos o resultado das eleições. É bem possível que a turnê parasse caso o resultado fosse outro. Como renovar a esperança? O que iríamos dizer àquelas pessoas? Como conseguiríamos? Abraçaríamos o choro? Incentivaríamos a coragem?

E então veio o alívio. Sempre digo que essa turnê significa para mim dois presentes. Primeiro, ter a chance de ver esse momento da história do Brasil de cima do palco. Ver, oferecer e receber plateias enormes e emocionadas. O segundo presente é o Chico ter reconhecido no meu trabalho uma identidade com a música dele. A minha sensação é de que fiz as escolhas certas. Tomei as decisões certas, segui os caminhos coerentes e verdadeiros para mim. É um presente gigante.

A minha carreira se encaixou por muito tempo no que chamam de música de segmento. Eu a defino como sendo a carreira de uma “cantora-instrumentista”, porque fiz uma estrada que aprendi com colegas músicos que admiro. As oportunidades e as escolhas que fiz também colaboraram para eu me tornar uma artista autoral. Por causa disso, o meu público foi sendo construído com capilaridade, a indústria fonográfica (já na minha geração atravessando mudanças radicais) não impôs o meu trabalho a ninguém nem ele foi moldado por ela. Agora sei do meu ofício, moro nele, tenho uma vida nele há 28 anos. Isso conta e faz diferença.

As pessoas às vezes me perguntam o que eu acho que essa turnê vai representar para o futuro da minha carreira. Eu, honestamente, não tenho resposta. Se eu fosse mais nova, provavelmente olharia de outro jeito para o convite que recebi e teria outras expectativas com o que virá depois. Sei que esta turnê está me dando uma visibilidade maior e nova. Ficarei feliz se esse novo público se identificar com o meu trabalho e se somar à minha estrada. O combinado que eu fiz comigo mesma é viver da melhor maneira possível o período musical ao lado do Chico. Essa turnê é para mim, além de um presente muito bonito, uma experiência importante, um sonho lisérgico. Tenho plena consciência disso e brinco, cumprimentando o público: “Boa noite, aqui quem fala é a Cinderela.”

Lancei dois discos depois da pandemia, Cantor Sedutor, com o Dori Caymmi, e Milton, com o André Mehmari, que foram apresentados poucas vezes em shows. Sinto vontade de cantar essas músicas ao vivo para o público. E gostaria de gravar um monte de canções que aprendi durante o isolamento social. 

Minha vontade de cantar e o amor pelo meu ofício só aumentaram. Minha vida ganhou outros sentidos na pandemia, minha percepção, minha forma de viver, de ouvir o outro, de escolher o que vale ou não a pena, de me relacionar com o público através das redes sociais, tudo mudou muito. Mas meus pés estão bem no chão, enquanto meu coração está nas nuvens.

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