Elza Soares, rebelde invencível

Em junho, a indomável cantora do Planeta Miséria completaria 93 anos. Documentário revela a face do país que a perseguiu e injuriou – seja por ser mulher e negra, seja por seu amor em linhas tortas por Garrincha. Ela, no entanto, jamais sucumbiu

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Por Urariano Mota, no Portal Vermelho

A sexta-feira 23 de junho é dia do nascimento da cantora, intérprete e guerreira Elza Soares. A sua vida, a perseguição que sofreu por amar demais, terminaram por crescer diante da arte da cantora inesquecível. Pois se tornou impossível lembrá-la sem falar a sua relação com Garrincha, o maior driblador de futebol que já houve.   

No amor imenso e último por Garrincha, o quanto Elza Soares foi insultada e caluniada, quando começou o casamento com o craque. Falavam que ela era oportunista, gananciosa, que estava a fim da fama e do dinheiro de Garrincha. Logo ela, tão famosa em todo o Brasil, que possuía mais dinheiro que ele, que era a mulher escolhida pelo gênio em seus mais memoráveis jogos.  

Esses eram os melhores comentários sobre Elza Soares, digamos, públicos.  Nos piores, ela foi vista como prostituta, destruidora do lar, doce lar de Garrincha. Ela, Elza, a outra, quando já era a primeira. Ela, a busca da paz impossível do craque, ela que tentou segurar o alcoolismo de Garrincha, ela que escondia garrafas de álcool, ela que foi até mesmo espancada pela raiva estúpida do jogador. Não importava. Elza era a puta do bordel. Mas assim é o mundo, cruel e injusto até para com a maior generosidade. E por isso mesmo difama e calunia.

Depois, a gente lembra a primeira apresentação de Elza, num programa de calouros dirigido por Ary Barroso. Ela vestiu o seu melhor vestido, aprontou-se toda para a exibição, mas não conseguiu esconder os traços, modas e modos dos pobres mais miseráveis. Então o grande compositor de Aquarela do Brasil perguntou a ela, para fazer piada, pra fazer graça para o público do rádio e do auditório:

– De que planeta você vem?

E Elza, a jovem agredida, respondeu no ato:

– Do planeta Miséria!

E cantou e ganhou o prêmio que recompensava um pouquinho o talento, não importava de onde viesse. E assim Elza Soares continuou até o fim dos seus dias: em briga contra o mundo desigual, em vitória contra a miséria do mundo, pelo simples fato de ser mulher negra e cantora que resistiu e resiste.

Agora, recupero o que escrevi sobre o documentário “Elza & Mané – amor em linhas tortas”. Para os dois, a Globoplay anuncia:

“Dois gênios brasileiros. Elza e Mané formaram um dos casais mais famosos do Brasil. Uma relação que combateu preconceitos e foi marcada pelo amor”.

Mas não se enganem. O anúncio é mais que simples, é simplório, porque a série documentário é mais. As imagens flagram o sofrimento de pessoas geniais em entrevistas e filmes da época. Avulta um Brasil mesquinho, conservador, estúpido, que perseguiu Garrincha e Elza por defenderem com atos o legítimo campo do amor. O craque teria abandonado sete filhas para viver com Elza Soares. Da minha infância, eu lembro de ouvir nos rádios o sucesso “Volte pra casa” na voz de Noite Ilustrada:

Isso quando Garrincha era bicampeão de futebol. A condenação era implacável: “Você subiu demais, mas não caia por favor. E não esqueça jamais daquela que o ajudou. A sua verdadeira companheira o suportava quando a sorte o abandonava”. Ele havia de viver sem amor, para conforto da hipocrisia em uma sociedade em que os homens possuíam amantes, massacravam a esposa legal, mas mantinham a família unida. Sob opressão. No entanto, nesse encontro apaixonado entre Garrincha e Elza Soares há matéria e alma para uma canção maior de afeto e paixão para os dois. Retrato neles que é de todos nós.

Destaco agora que a diretora Caroline Zilberman no documentário fez crescer a pessoa de Elza Soares. Em parte, acredito, por ter entrevistas com a cantora viva na ocasião, ou por escolha que se impôs devido à figura trágica de Elza Soares, Mas se olharmos bem, pela conclusão das vidas o trágico foi Mané Garrincha. E recuo da frase, porque não importa aqui a comparação entre Inferno 1 e Inferno 2. Ambos passaram pelo fogo da sociedade brasileira. E, justiça seja feita, Elza, a cantora negra que veio do Planeta Fome, possuía mais características eloquentes da exclusão cruel do Brasil: mulher, negra, miserável, discriminada, oprimida até a infâmia.

Então voltamos às imagens do importante documentário. Eu ia dizer belo, mas suspendi o impulso. É triste e revoltante. Ao vê-lo ontem, várias vezes chorei ou permaneci em discreto e abafado silêncio. Nos personagens ou pessoas que dão depoimentos, os melhores são Chico Buarque, Caetano Veloso e Zeca Camargo. Juca Kfouri também. E os dignos depoimentos dos jogadores Gerson, Afonsinho e Jairzinho.

Eu penso que na história de Elza Soares e Mané Garrincha existem vários documentários ou mesmo ficções, daquelas de que mais gostamos: a ficção da vida real. Isto é, eles são motivo para uma vigorosa novela sobre amor e paixão. Em mais de um momento, Elza declara o seu amor inesgotável por Garrincha. E o gênio, por sua vez, só queria estar junto da sua negona. Medo talvez de perder o fogo indomável da mulher, que ele conhecia, para outro homem. E mais os conflitos do álcool, da marvada que venceu a “malvada” companheira. Outro documentário seria somente sobre Garrincha, diferente de tudo que já se filmou até hoje, pois as imagens seriam lidas ou vistas pelo fundo futuro do seu último desfile na escola de samba Mangueira. Que tristeza, meu Deus! Isso não se faz com um homem.

Por fim, penso num terceiro documentário somente sobre Elza Soares, somente sobre a infâmia da perseguição a um talento, ao gênio de uma mulher, cujos defeitos eram ser negra, mulher, cantora com o desejo de ser livre. Mas que só conseguiu suas asas nas quedas física e pessoal.

Mil e um beijos para o talento brasileiro.

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