A poesia que brota na porta do bar

Nos 20 anos do Sarau da Cooperifa, a voz rebelde (e boêmia) de Sergio Vaz. Contundente, mas sem messianismo, ele aposta nos afetos e na emancipação popular. Em vez do revide, propõe pólvora adocicada e antropofagia periférica

Foto: Nenê/Divulgação
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Por Eleilson Leite, na coluna Literatura dos Arrabaldes

Tendo em vista a comemoração dos 20 anos do Sarau da Cooperifa, que será celebrado no próximo 13 de outubro, data que passou a ser oficialmente dedicada à literatura periférica na cidade de São Paulo por conta de lei aprovada na Câmara Municipal1, resolvi comentar livros do poeta Sergio Vaz. Fujo assim um pouco do padrão que adotei para os meus textos aqui na coluna nos quais sempre analiso dois ou três livros de autores distintos. O artigo discorre sobre os dois primeiros livros publicados pelo autor na fase pós-cooperifa: Poesia dos deuses inferiores (2004) e Colecionador de Pedras (2006), ambos editados de forma independente. O segundo, porém, foi reeditado pela Global Editora em 2007. Por ser uma antologia, Colecionador de Pedras traz poemas dos quatro livros anteriores do poeta, especialmente do derradeiro que é aqui abordado. Lançado em dezembro de 2006, esta obra também é objeto de efeméride, pois completa 15 anos de sua primeira publicação.

Sergio Vaz estreou como poeta em 1988 com o livro Subindo a ladeira mora a noite que publicou de forma independente e em parceria com a poeta Adriana Mucciolo. A cena cultural que começava a se desenhar na periferia paulistana na época por conta do emergente Movimento Hip Hop estava fora do seu radar. Sua influência artística na literatura era toda ela vinculada a autores consagrados brasileiros e estrangeiros, aos quais teve acesso por incentivo de seu pai que lhe dava livros de presente e também por inspiração das canções da MPB. Ao longo da década de 1990, Vaz publicou outros dois livros de poesia: A margem do vento (Scortecci, 1991) e Pensamentos Vadios (Scortecci, 1994 – com segunda edição em 1999).

Foi na segunda metade da década de 1990 que Sergio Vaz teve mais contato com o Movimento Hip Hop e passou a se inspirar na poesia engajada do RAP. Ele já fazia vários agitos culturais no município de Taboão da Serra, quando resolveu criar um sarau em parceria com o falecido poeta Marco Pezão. Em outubro de 2001 surgia a Cooperifa no Bar do Garajão sediado naquele município da Grande São Paulo que faz divisa com o bairro do Campo Limpo, periferia da Zona Sul da Capital. Dois anos depois, o Sarau perdeu seu espaço devido à súbita venda do estabelecimento que lhe servia de abrigo. Os poetas então migraram para o Bar do Zé Batidão no Jardim Guarujá, distrito do Parque Santo Antonio em São Paulo, onde está até hoje.

Um ano depois, em 2004, Vaz lança Poesia dos Deuses Inferiores, encerrando um jejum de 10 anos sem publicar um livro inédito. A cena cultural da periferia estava efervescente e sua obra surge como causa e efeito desse movimento. Ferréz estava com dois livros no mercado e havia lançado os três suplementos da Literatura Marginal na Revista Caros Amigos; o Samba da Vela contava quatro anos de existência; o Racionais MC’s encontrava-se no auge ainda colhendo os louros de seu CD Nada Como Um Dia Após O Outro dia (2002). No final de 2003, a então prefeita Marta Suplicy lança o VAI – Valorização de Iniciativas Culturais, edital público de fomento a projetos culturais de jovens dos bairros de periferia, política pública que, junto com os CEUs (Centros de Educação Unificado) veio a ser central na expansão da produção cultural periférica em São Paulo.

Com 18 anos de carreira e quatro livros na bagagem, Vaz resolveu fazer sua primeira e única antologia. Publicado em 2006, Colecionador de Pedras marcou também a inserção do autor no mercado editorial quando a obra foi republicada pela Global Editora no ano seguinte. O livro é também sua derradeira obra exclusivamente de poesia, uma vez que os dois livros publicados posteriormente mesclam prosa e poesia, sendo que Literatura, pão e poesia (2011, Global Editora) é majoritariamente de prosa enquanto que em Flores de Alvenaria (2015, Global Editora) predomina a escrita poética.

A poesia dos deuses inferiores

Dos 92 poemas inéditos do livro A poesia dos deuses inferiores (a obra tem 115), 23 são em estilo narrativo. São textos longos (para o padrão do autor) de 30 a 45 versos dispostos em um só conjunto, sem estrofes, com uso escasso de rimas. Todos eles abordam diferentes dimensões do sofrimento dos moradores das periferias e os problemas sociais que afligem o povo pobre em geral do Brasil. O livro não tem numeração de página e por essa razão não as indicarei nas referências.

O conjunto dos poemas formam seis blocos, sendo que o grupo dos MC’s aborda vários dos temas que aparecem nos demais grupos. A esses rappers, o autor rende homenagem, duas delas póstumas (Sabotage e Jay) e outra a Mano Brown, justamente no poema cujo título tornar-se-á uma importante marca do autor e nome de seu próximo livro de poesia: Colecionador de Pedras. O livro tem um subtítulo que está impresso somente na página de rosto e na quarta capa: A Biografia Poética da Periferia. Embora sem destaque, este subtítulo é um dado importantíssimo da obra e explica a grande ocorrência de poemas em forma de narrativas longas e que, na maioria das vezes, abordam histórias reais de pessoas com quem Sergio Vaz conviveu em seu bairro, como ele mesmo conta na orelha do livro: “são fotografias de uma gente simples que vi crescer neste chão árido e escuro da senzala moderna chamada periferia. Uma homenagem a pessoas que, ao curso de uma vida, tiveram apenas o CIC e o RG como registro de passagem pelo planeta. É uma 3×4 da minha infância. Um clic na dor alheia. É a raiva que escarra da lente dos meus olhos….”

Essa preocupação em contar tais histórias levou o autor ao uso recorrente de um recurso estilístico na composição dos primeiros versos dos poemas dedicadas à memória das pessoas as quais ele se refere. Treze dos poemas que narram histórias de vida começam de forma muito semelhante com o anúncio do nascimento do personagem abordado. Veja alguns exemplos: “Filha de Saturnina/Maria nasceu em ladainha” (Maria das Dores); “Jay/Nasceu Jailson” (Jay) ou “Paulo/ Nasceu na rua seis” (Paulão).

Aos personagens de que trata Vaz, nascer foi uma das poucas experiências significativas de uma existência trágica. Dali em diante, o destino tratou de corromper a trajetória do ser que surgiu impunemente. Alguns deles, é verdade, inverteram o curso de sua morte anunciada, mas a maioria padeceu à desgraça que lhe serviu como destino. Vaz, desde muito cedo conviveu com a morte, posto que dois de seus irmãos faleceram antes mesmo de nascer. Já em São Paulo, aos oito anos testemunhou a morte de um homem no bar de seu pai. O sujeito foi alvejado com um tiro na testa e caiu sobre as garrafas.

Esse episódio é narrado pelo autor em um poema do livro de título A Bala: “Um homem/ caído sobre as garrafas/guardava na memória uma bala/O garoto/Com o olhar caído sobre o homem/guardava na memória/a primeira vala”. Entendo que para Vaz o nascimento seja um evento significativo também porque a morte lhe era corriqueira, dada a frequência com que convivia com óbitos a sua volta a ponto de um cemitério ser erguido no terreno em que jogava bola. Os que morreram levaram consigo a memória. Ao recuperar as trajetórias dessas pessoas relegadas ao anonimato, Vaz lhes dá a oportunidade de nascerem de novo. Essa busca, declarada na apresentação do livro, a meu ver, explica a recorrência da citação do ato de nascer nas suas poesias. Ao negar-se como obituário, sua obra se converte num livro de registro de nascimento.

O nascer é assim um alento de vidas inglórias e que não aparece apenas nos primeiros versos. Em Barbe, Patrícia é uma menina que nasceu paupérrima num barraco assentado num barranco, filha de mãe e pai catadores de lixo. O casal vive a frustração de não poder presentear à criança a tão desejada boneca que dá título ao poema. Até que um dia, Pati foi violada sexualmente e, aos treze anos, ganhou finalmente “uma linda menininha/Com quem pode morar/E brincar de casinha”. Em tom sarcástico, o autor expõe o ciclo de miséria numa história que começa e termina com nascimentos. Na saga distinta de Vitor e Hugo, no poema Os Miseráveis, o nascimento dá o tom da trajetória de cada um. “Vitor nasceu erva daninha, sem pai, sem mãe/ Hugo não nasceu; ‘estreou’”. Branco, Hugo é filho de família rica: “teve escola e fada madrinha”. Ambos viraram ladrões, porém, o rico tinha colarinho branco e não usava capuz para operar seus negócios ilícitos. Já Vitor roubava à luz do dia e era preso com retrato falado e “cara na notícia” enquanto Hugo “fazia pose pra revista”. O ladrão de revólver na mão “apodrece penitente” e o salafrário da caneta “enriquece impunemente”. O destino dos dois, diz o poeta, é a Bíblia na mão para o pobre e a presidência para o rico.

Nesses dois poemas, Vaz, a partir do nascimento, traça uma trajetória de fracasso para os pobres, porém não absolve os ricos da condenação pela falta de ética, atribuindo a usura destes à habilidade que desenvolveram no uso da caneta. Aqui Vaz estabelece uma crítica que relativiza o conhecimento letrado como fator de emancipação, algo que os escritores da Literatura Hip Hop enaltecem e almejam para que o povo possa libertar-se da ignorância que os pune. Vaz acredita no conhecimento popular e na capacidade do povo se emancipar por suas próprias virtudes. É disso que ele fala no poema Colecionador de Pedras que escreveu para homenagear Mano Brown.

Ao tratar do livro Poesia dos deuses inferiores na autobiografia Coooperifa – Antropofagia Periférica (Aeroplano Editora, 2008), obra que me serve de fonte para traçar o perfil do poeta, Vaz diz apenas que Brown é um dos homenageados ao lado de outras pessoas vivas e mortas, cujos nomes dão título aos respectivos poemas, como “Maria das Dores, dedicada a sua falecida mãe ou os também falecidos rappers Sabotage e Jay. Não obstante, é possível identificar o homenageado através de passagens onde há referência ao personagem como o primeiro verso: “Pedro.” Este é o nome do rapper, Pedro Paulo. Depois vem a citação de Dona Ana, nome da mãe de Brown no quinto verso; ao pai que desapareceu deixando apenas o “esperma”. Na sequência, o poema se desenvolve abordando aspectos muito comuns a crianças pobres das periferias. Mas nos derradeiros versos do poema fica mais evidente de quem o autor está falando: “O poeta canta sua dor/E rima a dor alheia/E sem deixar pedra sobre pedra/Do rancor, o amor ele sampleia”2.

É essa a mensagem que Sergio Vaz quer deixar no seu livro. Embora fale muito do sofrimento ele enaltece a capacidade do povo renascer, como no poema Semente de Fé, do seu primeiro livro já citado anteriormente como uma composição definidora da visão do autor: “Dos invernos mais brutos/ O povo florescerá”. Ou seja, transformará o rancor em amor, como sugere no poema citado acima. Pedro recebeu muitas pedradas ao longo de sua vida sofrida, virou rocha e “se tornou pedregulho no rim do sistema”. Só de resistir e não padecer, Pedro já é um vencedor: “contrariou as estatísticas”, como canta Mano Brown no clássico RAP Capítulo 4, versículo 3. Porém, mais do que resistir, Pedro se tornou “rocha onde a vida queria grão de areia”. Guardou as pedras e com elas construiu sua própria fortaleza.

Essa imagem é representativa da estrutura de sentimento revelada na obra de Sergio Vaz e que caracteriza toda a literatura denominada Periférica. Uma crença na força popular e no envolvimento direto e nivelado do artista como agente transformador. Uma transformação que não virá pelo revide e sim por uma nova ordem que superará o estado atual de desigualdade e injustiça. Ao se fixar na memória, Vaz realiza com seu livro Poesia dos Deuses Inferiores aquilo que o sociólogo José de Souza Martins formula quando diz que no subúrbio a memória é o “documento vivo da história vivida”. Este autor argumenta que nesses espaços, assim como nas periferias, “a memória sempre foi e ainda é o repositório da história residual e, portanto, da identidade. Em consequência é o fundamento da esperança, das aspirações de mudança, do projeto social e coletivo”3Tal formulação encontra na obra de Sergio Vaz, especialmente em Poesia dos Deuses Inferiores, sua materialização em forma de poesia.

Colecionador de pedras

Em menos de dois anos, Vaz publicou um novo livro dando a ele o título do poema que fez para Mano Brown: Colecionador de Pedras. Publicado em dezembro de 2006, como já foi dito, trata-se de uma antologia. Há apenas 18 poemas inéditos. A obra foi republicada em 2007 pela Global Editora e teve uma reedição em 2011 com base na qual faço as citações dos poemas comentados.

“Pedra” é uma metáfora recorrente na obra do autor. Não por acaso, seu poema de 1991 serve de epígrafe do livro: “As pedras não falam/ Mas quebram vidraças”. Mas a capa de sua primeira edição, feita de forma independente, como todos os seus livros até então, traz um desenho colorido de um garoto no alto de uma laje de uma casa periférica empinando uma pipa que disputa espaço em um céu densamente ocupado por outras pipas num dia ensolarado numa quebrada qualquer. Essa imagem contraria um pouco o tom agressivo do poema citado acima.

A estética da poesia de Sergio Vaz está muito associada às memórias de sua infância pobre, porém feliz. A logomarca da Cooperifa é um menino empinando pipa. Um dos poemas inéditos de Colecionador de Pedras fala de meninos que nascem, crescem, morrem e ficam eternos num filme feito por um cineasta com alma de menino. Dedicado a Jefferson De, este poema chamado Um Dia, tem uma passagem especialmente marcante: “Um dia inteiro/de uma vida/cabe dentro da eternidade/do menino/Num dia/nasce/vive/e morre/depois vira filme/nas mãos/ de um outro menino/que o socorre(p. 32).

O frescor da infância vivida nas ruas da periferia, jogando bola e empinando pipa, é uma importante chave para entender porque a literatura de Sergio Vaz, apesar de aguerrida e contundentemente crítica, não se alinha ao tom rancoroso que, por vezes, a literatura hip hop assume. Ele consegue ver graça sob os escombros da pobreza que o cerca. Sua poesia é mais açúcar do que pólvora ou uma pólvora adocicada. É uma criação encharcada de afetividade e não só um instrumento de conscientização das massas.

Em seu Manifesto da Antropofagia Periférica, ele afirma: “A periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor” (publicado no livro Literatura , pão e poesia, 2011, Global Editora). A dor e a cor estão abundantemente abordadas na Literatura Hip Hop. Vaz introduz o amor como um elemento de convergência do povo periférico. Ou seja, ele dá à afetividade um lugar central na sua literatura e com isso consolida a estrutura de sentimento que marca toda a geração que se identifica com a literatura periférica aglutinada nos saraus. O próprio sarau é representativo dessa estrutura de sentimento na medida em que é um encontro com grande carga afetiva, celebrativo e festivo como é a literatura periférica: “uma poesia que brota na porta do bar” como diz o mesmo manifesto anteriormente citado.

Uma literatura assim é generosa com o povo, celebra os negros, as crianças e as mulheres tão subestimadas por autores vinculados à Literatura Hip Hop como já foi discutido em textos que publiquei anteriormente. Às mulheres, Vaz dedicou poemas de exaltação como Este Ser Mulher cujos versos da segunda estrofe são uma ode à condição feminina: “Quem seria um ser/não fosse esse ser/frágil/somente/no momento de ser bela?” (p. 75),

Carregada de metáforas e outras figuras de estilo, a poesia de Vaz se converte ela própria numa alegoria ao voar, literalmente. Há 15 anos (outra efeméride), sempre no mês de abril, a Cooperifa lança poesias ao vento, amarradas em balões brancos personalizados com a marca do Sarau. É o Poesia no Ar. Centenas de pessoas comparecem ao sarau neste dia. Cada uma recebe um papel timbrado da Cooperifa no qual escrevem um poema, ou uma mensagem, colocam-no em um saquinho plástico perfurado que, por sua vez, é amarrado à linha atada no balão. Por volta das 22h30, todos saem à rua e, após uma rápida contagem regressiva, soltam simultaneamente as bexigas com seus poemas.

Sergio Vaz quer com isso reverter o estigma da periferia como lugar onde se convive com balas perdidas, oferecendo poemas que caem nos quintais, lajes ou na rua. Essa alegoria que expressa o objetivo de combater a violência com uma mensagem de paz em tom alegre, numa grande celebração coletiva, é muito representativa da estética que define literatura que surge dos saraus aqui denominada de Literatura Periférica.

O poeta que fez do boteco um centro cultural

Como foi dito no início, a publicação dos dois livros abordados neste texto se dá na fase pós-cooperifa e nessas obras Sergio Vaz faz uma importante reflexão sobre sua condição de poeta ressaltando sua aproximação com o RAP que se acentuou no final dos anos 90 como ele mesmo diz ao se referir ao livro Poesia dos deuses inferiores: “era muito mais agressiva e bem alinhada com o rap, com quem, há muito tempo vivia flertando. Também era um livro de homenagens às pessoas em que sempre acreditei: Lamarca, Zequinha, Dona Ana, Miltinho, Sabotage, Mano Brown, minha mãe, etc. Pessoas que, conhecidas ou não, sempre fizeram parte da minha vida”.4

A aproximação com o RAP pode ter elevado o tom da crítica da poesia de Sergio Vaz, porém, não alterou sua proposta estética que se manteve praticamente inalterada desde o livro Pensamentos Vadios, inclusive, contando novamente com um projeto editorial que dá a cada poema uma forma de diagramação distinta, podendo ser também apreciado como objeto gráfico. Vaz não absorveu do RAP a forma da escrita, mantendo sua poesia dentro do parâmetro mais próximo da norma culta e tampouco escreveu poesia rimada como manda a tradição do rythm and poetry, embora as utilize em algumas composições, não obstante, obedecendo a seu padrão estético já sedimentado. Mas o fato de ter se dedicado mais à crítica social, tendo histórias de vida como inspiração, fez com que ele criasse mais poemas com traço épico, atenuando o lirismo que caracteriza sua poesia.

Fundamentalmente, essa identificação com o RAP e o Hip Hop reivindicada pelo autor se dá pela sua inserção num movimento cultural possibilitado pela criação da Cooperifa e do êxito do sarau como espaço de fruição, articulação e reprodução do movimento cultural da periferia. Vaz começa a fazer uma poesia marcada por esse contexto. Ele passa a integrar a frátria. Seu lugar de fala agora é polifônico; não está mais isolado como estava até os anos 1990. Ao observar-se dentro de uma coletividade, na qual tem um papel de destaque, sua poesia ganha um acréscimo de engajamento que poderá ser notado na análise de seis dos dez poemas que ele publicou em Poesia dos Deuses Inferiores que abordam a sua condição de poeta.

São poemas curtos, sem título, com no máximo dez versos igualmente curtos e que nas páginas do livro ganham uma diagramação que acentua as pretensões do autor de soltar fragmentos de pensamentos que identifiquei como aforismos poéticos. Todos eles são inéditos e compostos, possivelmente, já no contexto do Sarau da Cooperifa, portanto, reveladores da nova fase do poeta como podemos ver nos seguintes versos:

“Não faço poesia/ Jogo futebol de várzea/No papel”

“Poesia/Tem alto teor alcoólico/O poeta/Encheu a cara de rimas ( …)

“Os poemas assassinos/ são feitos para matar o tempo/ Os poetas sabem/ Mas não fazem nada/São cúmplices

“Ser poeta/Não é escrever poemas/É ser poesia”

“A minha poesia/ apesar de pouca e rala/cabe na tua boca/ dentro da tua fala (…)

“A poesia/ É o esconderijo do/ açúcar/ E da pólvora/Um doce/ Uma bomba/ Depende de quem/Devora”

Dispostos dessa forma, os poemas revelam tons distintos sobre a condição do poeta, nenhum deles, porém, aponta explicitamente o papel social e o engajamento como missão do poeta. No primeiro bloco predomina inclusive um certo tom descompromissado do autor apelando para sua inclinação boêmia em dois deles. Esse traço é representativo da personalidade de Sergio Vaz, sujeito adepto do hedonismo e que de tanto frequentar bares resolveu criar um sarau num deles, fazendo do boteco um centro cultural. Embora muito ativo e empreendedor, Vaz nunca fez apologia do trabalho, principalmente do trabalho alienado que sacrifica o povo. Desprovido de moralismos inerentes à vida laboral, gosta de ser chamado de “vagabundo nato”, tratamento afetivo habitual entre os poetas na Cooperifa e de “vira-lata”, como se autodefine.

Há vinte anos à frente do Sarau da Cooperifa, com mais de 30 anos de poesia, oito livros publicados, inúmeros prêmios e condecorações, Sergio Vaz certamente é um dos novos modernistas que atualizam os ideais da Semana de Arte Moderna de 1922. Isso me faz pensar que se o evento liderado por Oswald e Mario de Andrade teve o Teatro Municipal como palco principal, a celebração do centenário daquele evento poderia ser, também, no boteco de quebrada mais importante de São Paulo: o Bar do Zé Batidão, casa do Sarau da Cooperifa, um bar que já foi do pai do poeta quando Vaz era um menino, um boteco em cuja porta brota a poesia periférica.


1 Lei 711/19, de 19/11/2020, de autoria do vereador Celso Giannazi (PSOL) inclui no calendário de eventos da Cidade de Sâo Paulo o Dia da Literatura Periférica.

2 Essa observação está na minha dissertação de mestrado (Mesmo céu, mesmo CEP – produção literária na periferia de São Paulo – EACH/USP) defendida em 2014. Percebi que mais recentemente, o poeta tem mencionado que o poema é em homenagem ao Mano Brown.

3 Martins, José de Souza. A aparição do demônio na fábrica – origens sociais do eu dividido no subúrbio operário: Editora 34, 2008 (pag. 60)

4 Vaz, Sergio, Cooperifa ´antropofagia periférica. Aeroplano Editora, Rio de Janeiro, 2008

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