A dopagem não química que introduz as drogas

O filme Spiderhead provoca: afinal, o que nos leva a aceitar, conscientemente, a medicalização de nossas vidas e padecimentos psíquicos? Talvez, sem o sabermos, algo que estreita a experiência humana seja aplicado antes da primeira pílula

Jamel Akib/Getty Images/Ikon Images
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Diante dos filmes em cartaz nas salas de cinema ou nas plataformas de streaming, ficou convencionada uma classificação didática e esquemática da relação entre as produções cinematográficas e a indústria cultural. De um lado, haveria os filmes de arte, orientados para uma reflexão do estatuto estético do cinema, mas também para a discussão de temas sociais e políticos. De outro, os de entretenimento, com o objetivo de distrair o espectador de suas preocupações diárias ao oferecer um roteiro padronizado de pequenas satisfações.

Evidentemente, essa classificação é reducionista e empobrecedora. Em primeiro lugar, entende não haver nenhum pressuposto estético no entretenimento oferecido pela indústria cultural, assim como não haveria qualquer interesse da arte em entreter o público. Em segundo lugar, desconsidera que algumas produções cinematográficas podem se encontrar em uma região de fronteira entre o que seria o entretenimento e a arte, talvez até mesmo nos fazendo questionar os limites que estabelecemos entre arte e indústria cultural e entre arte e sociedade. Não acho que toda produção que se encontra nessa fronteira seja revolucionária, mas há um filme recente cuja aparência de entretenimento é acompanhada por uma crítica profunda da indústria farmacêutica e do discurso que a acompanha. Estou me referindo ao filme, que se encontra na plataforma da Netflix, Spiderhead (2022). Quem não assistiu a esse filme e não está interessado em spoilers, sugiro que sua leitura seja interrompida por aqui.

Dirigido por Joseph Kosinski e baseado no conto Fuga de Spiderhead, do escritor George Saunders, Spiderhead conta a história de um programa de experimento científico com os prisioneiros da instituição de mesmo nome do título. Essa instituição é ao mesmo tempo uma colônia penal e um laboratório de experimentação química com os prisioneiros, que voluntariamente se submeteram às diretrizes do programa. A administração de Spiderhead não somente é realizada pelo setor privado – situação comum nos Estados Unidos, mas não no Brasil –, mas também por uma indústria farmacêutica: a Abnesti Pharmaceuticals, cujo proprietário é Steve Abnesti.

Ao longo do filme, as intenções ocultas de Steve com a realização do programa com os prisioneiros de Spiderhead vão se revelando. Inicialmente, o programa se mostra como uma nova modalidade de disciplinarização e ressocialização dos prisioneiros. Não existem celas, e o convívio entre Steve, seus funcionários e os voluntários de Spiderhead é livre e praticamente irrestrito, permitindo que se acredite estar diante de um encarceramento mais humanista. Entretanto, conversas entre Steve e seu assistente Mark e reviravoltas protagonizadas principalmente pelo voluntário Jeff revelam ao público que os prisioneiros não são voluntários de uma nova modalidade de encarceramento, e sim cobaias em um laboratório de testes para novas drogas psicotrópicas.

As drogas utilizadas no programa de Spiderhead, por sua vez, depois de concluídos os testes, devem ser amplamente comercializadas, ou seja, o objetivo do programa é avaliar a eficácia das drogas psicotrópicas. Todas as drogas, desde aquela que estimulava o encontro sexual até aquela que induzia estados intensos de medo e pânico, se mostraram eficazes, com exceção de uma: a droga nomeada como B-6. A droga B-6 devia tornar o voluntário obediente e submisso às ordens de Steve. Todas as vezes em que Steve pedia permissão para a aplicação da dose de uma das drogas, os voluntários a concediam. Mesmo circulando pela instituição sem algemas, os voluntários não se maltratavam nem maltratavam os funcionários, pois obedeciam cegamente às regras institucionais. Mas restava ainda uma última etapa para avaliar a eficácia da droga B-6: se o voluntário, por ordem de Steve, provocaria sofrimento nas pessoas que amasse. Nessa etapa, a droga fracassou.

A droga B-6, no contexto em que aparece em Spiderhead, é a droga que torna todos os voluntários dóceis ao uso das demais drogas. Sempre que uma droga era oferecida, o voluntário aceitava sua aplicação, pois já estava predisposto a obedecer às sugestões de Steve. Curiosamente, contudo, nenhum dos voluntários foi consultado sobre a aplicação da droga B-6, mas sua dose era aplicada mesmo assim. Portanto, a aparência de uma penitenciária mais humanista, pois respeitava as opiniões dos prisioneiros e sempre os consultava antes de tomar qualquer decisão, ocultava um ambiente fortemente controlado e administrado. As respostas e os comportamentos dos voluntários eram mais ou menos esperados, pois sem o saber já estavam submetidos ao funcionamento opressor daquela instituição por conta da droga B-6. Assim, precisamos responder a duas perguntas. Primeiro: o que é essa droga B-6, mãe de todas as drogas? Segundo: por que a droga B-6 foi a única considerada ineficaz?

Vamos começar com a segunda pergunta por ser mais fácil. A droga B-6 devia interferir na capacidade de decisão do voluntário/prisioneiro, submetendo-o integralmente às ordens de Steve. A obediência irrestrita, contudo, não pode ser alcançada por meio de uma droga, pois o livre-arbítrio, um dos pilares da sociedade moderna, não pode ser eliminado. A história de Spiderhead aposta, em última instância, na capacidade do indivíduo de fazer suas próprias escolhas e de não se submeter, contra a sua vontade, às decisões alheias. Aqui, eu poderia fazer mais um longo comentário a respeito do significado atribuído ao livre-arbítrio na sociedade moderna, mais especificamente a estadunidense, mas isso tornaria este texto relativamente longo.

A primeira pergunta é um pouco mais complexa. O uso das demais drogas era sistematicamente permitido somente porque os voluntários estavam sob o efeito da droga B-6 – apesar de não ser totalmente eficaz. A droga B-6, mãe de todas as drogas ou droga “zero”, pois é ela que induz ao uso de todas as outras drogas, pode ser mais bem compreendida se não a entendermos como uma droga, e sim como um discurso – parodiando o que se diz por aí, não é a maconha, e sim o discurso que é a “porta de entrada para todas as outras drogas”. Estamos falando daquilo que ficou conhecido como discurso da medicalização, proposto pelo Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade.

O discurso da medicalização, ao contrário do que possa parecer, não é o discurso que sustenta o abuso de drogas psicotrópicas, mas é aquele discurso que “prepara” o indivíduo para o uso indiscriminado de medicamentos. Essa “preparação” envolve a simplificação da complexidade da experiência humana. Os efeitos das interações simbólicas com a cultura, da qualidade do ambiente familiar e profissional e das condições sociais e políticas, apenas para mencionar alguns exemplos, são reduzidos a meras questões individuais psíquicas e, principalmente, orgânicas. O contexto em que o indivíduo adoecido está inserido é completamente ignorado, e seu adoecimento se torna mero reflexo de distúrbios neurofisiológicos ou de transtornos mentais.

Com a redução da complexidade humana, a criança, por exemplo, que não se submete a ordens que não lhe fazem sentido ou que não consegue se manter sentada por um elevado período de horas pode ser, pura e simplesmente, diagnosticada com um transtorno psiquiátrico, desconsiderando-se todo o contexto em que ela se encontra. A partir do momento em que a criança e mesmo o adulto foram capturados pelo discurso da medicalização, o uso de medicamentos psicotrópicos é apenas um passo. A coisa se passa mais ou menos dessa maneira: não se escolhe estar submetido ao discurso da medicalização (droga B-6), mas a partir do momento em que a complexidade de sua experiência humana é reduzida a transtornos orgânicos e psíquicos, facilmente se concede permissão para o uso indiscriminado de psicotrópicos, acreditando-se que se trata verdadeiramente de uma decisão sem nenhuma influência de qualquer droga discursiva.

Estamos longe de superar o discurso da medicalização – e não se trata, aqui, de uma condenação do uso de medicamentos psicotrópicos (longe disso), e sim de uma crítica ao seu uso indiscriminado. Nem mesmo no espectro da esquerda política existe um consenso a respeito disso. A mãe de todas as drogas, ou seja, o discurso da medicalização, circula sorrateiramente, como quem não quer nada, tanto na direita como na esquerda, tanto entre conservadores e liberais como entre progressistas. Talvez, a única maneira de efetivar essa superação seja abrindo mão da droga B-6 para agarrar com as duas mãos sua própria história – e tudo aquilo que ela comporta, para o bem e para o mal, com ou sem medicação.

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3 comentários para "A dopagem não química que introduz as drogas"

  1. Vagner Augusto disse:

    É uma pena que Eduardo Guimaraes não tenha feito um longo comentário a respeito do significado atribuído ao livre-arbítrio na sociedade moderna, mais especificiamente a estadunidense.

  2. Alfredo da Costa Pereira Junior disse:

    Péssimo filme! Perdi meu tempo. Não percam o seu. Que raios de análise absurda para um blockbuster de baixíssima qualidade!

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