David Cronenberg: os rasgos de Crimes do futuro

Novo filme do cineasta investiga as belezas internas do corpo, a partir de olhar questionador sobre a arte e o próprio cinema. Análise de sua filmografia convida a refletir sobre a dialética entre a estética do choque e a racionalidade cirúrgica

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Agradeço a Bia Almeida por fornecer algumas das especificações técnicas aqui utilizadas

Dentre vários outros elementos, Crimes do futuro (2022), mais recente filme de David Cronenberg, traz uma belíssima reflexão sobre o lugar atual das artes, sobretudo, evidentemente, a cinematográfica. Os protagonistas Saul Tenser (Viggo Mortensen) e Caprice (Léa Seydoux), uma dupla de artistas performers, estão em busca do Belo. Ali, todavia, a categoria se afasta do imaginário platônico. Como diz insistentemente David Cronenberg: “o corpo é realidade”, não ideia. E o Belo não está dele apartado. Emerge no excesso da carne despedaçada e exposta à voracidade do olhar.

Em certo sentido, Crimes do futuro passa pelas experiências da body-art e descende da pintura barroca, especialmente de A Lição de Anatomia do Doutor Tulp (1632), de Rembrandt. A presença exuberante da carne e os contrastes de luzes e sombras, próprios do Barroco, indicam os inevitáveis tropeços da pretensão renascentista, que seguiu seu empenho pelo Iluminismo e pela ciência médica dedicada ao corpo humano. Na visão científica, o cadáver anônimo, dissecado sob olhares sedentos de curiosidade, esconde o Gozo inerente ao gesto investigativo. A pintura de Rembrandt e o filme de David Cronenberg devolvem o erotismo ao exame científico minucioso no interior da carne. Devora-se pelo olhar – a visão apalpa e penetra o corpo despudoradamente.

Por isso, Saul e Caprice enfatizam o interesse em uma beleza interior, bastante encarnada: aquela que emana de órgãos mutantes em constante nascimento no organismo de Saul. Nos diálogos que correm pelo filme, sabe-se que ali a dor deixou de existir na espécie humana. Modulando e teatralizando a excepcional agonia de Saul, Caprice, com auxílio técnico da empresa Formas de Vida e do Registro Nacional de Órgãos, transfigura em beleza o que supõe serem tumores causados pela alteração da espécie humana. Os espetáculos artísticos acontecem em uma lendária e instrumentalizada cama de autópsia, que já deixou de ser produzida pela empresa. Criar órgãos mutantes não é comum. Advém do desejo inconsciente, isto é, ocorre à revelia da vontade deliberada de Saul. Extirpá-lo diante da plateia, que anseia por prazer sensual e dor, significa atiçar o desejo escópico e sadomasoquista do público.

Um órgão mutante não é novidade na filmografia de Cronenberg. Videodrome (1983) apresenta o misterioso Professor Brian O’Blivion que pensava ter um tumor cerebral. Logo descobre-se que o câncer abrigado em seu cérebro era um órgão inédito e sinal da evolução da espécie, que transformava alucinações em realidade carnal. O órgão prenunciava uma “nova carne”, assim como na filmografia de Cronenberg Videodrome já anunciava Crimes do futuro, cujo roteiro, embora escrito ainda na década de 1990, foi filmado agora.

Dialeticamente, Crimes do futuro parece ser a antítese de Crash: estranhos prazeres (1996). Enquanto no filme de 1996 assistimos ao colapso total dos Road Movies em sucessivas e impactantes colisões de carros, provocadas por um grupo sexualmente estimulado pelos choques dos impactos e pelos corpos destroçados nos acidentes, em Crimes do futuro os traumas ininterruptos e excitantes são substituídos pelo olhar penetrante que rasga e perfura cirurgicamente membranas plasmáticas e extrai suntuosas vísceras do interior da carne corpórea.

Além do enredo girar em torno de colisões premeditadas, Crash segue uma estética expressionista, perceptível nas cicatrizes dos corpos, no olhar alucinado de Robert Vaughan (Elias Koteas) e nos carros estropiados pelas estrondosas batidas. Em contrapartida, Crimes do futuro apresenta uma perspectiva pós-moderna na qual o inumano não emerge apenas em sua faceta fantástica nas versões kafkianas, como assistimos, por exemplo, em A Mosca (1986), nem no perfil estropiado, como se observa em sujeitos arrasados pelos avanços desgovernados do progresso capitalista – nessa linha, o personagem Benno Levin (Paul Giamatti), de Cosmópolis (2012), talvez seja um de seus maiores exemplos.

Os avanços imprevisíveis da modernidade transfiguraram o humano de maneira absolutamente palpável e a transmutação da espécie é notícia cotidiana nos jornais – mais recentemente a noção de finitude, exaltada pelos existencialistas franceses como marca diferencial do que era propriamente humano, especialmente em Todos os homens são mortais de Simone de Beauvoir, acaba de se dissolver com o anúncio, dado pela BBC, de que uma mulher rejuvenesceu trinta anos após passar por experimentos laboratoriais anteriormente desenvolvidos na ovelha Dolly.

Como se vê a cada segundo, mudanças técnicas e nanotecnológicas afetam todas as esferas sociais. É importante notar que tais mudanças também atingem formalmente a estética cinematográfica. David Cronenberg não só aborda o conteúdo dessas transformações científicas e tecnológicas nos temas centrais de seus filmes, como também as ilumina na própria forma dada a cada uma de suas cenas.

Da década de 1990 – quando Crash foi filmado – para cá, o cinema passou da película, com sua limitação em número de fotogramas e da consequente duração do tempo de filmagem, à câmera digital, que temporalmente estende o processo de captação das cenas em uma continuidade ininterrupta. Em Crimes do futuro, David Cronenberg usou a lente Zeiss Master Prime, o que comparativamente favorece a nitidez das filmagens em relação à Anamorphic, usada para Crash: estranhos prazeres.

Talvez estejamos assistindo a um tempo no qual a lógica perceptiva do widescreen, iniciada ainda na década de 1950, esteja sendo substituída por uma outra forma visual, na qual as câmeras são capazes de promover mergulhos focais mais exatos e captar detalhes minuciosos de uma superfície unitária de imagens, sem as rupturas impostas pela película e os grãos nas imagens obtidas pelas câmeras Panavision.

É possível que a técnica analógica promovesse modelos cinematográficos com imagens mais adensadas, já que as cenas eram materialmente construídas e captadas in loco, delas se extraindo o máximo em função da limitação de tempo das películas. Nesse modelo, o setting de filmagem preservava maior complexidade material e os resultados mais importantes eram dele extraídos.

Na versão digital, as imagens são captadas de maneira mais simples e contínua e o material torna-se mais “lavado”, mas ele recebe um minucioso tratamento cirúrgico na pós-produção. Talvez ferir imagens dessa superfície mais limpa e menos densa, como em Crimes do futuro, seja uma tendência explorada formalmente hoje. Com as câmeras digitais, como Arri Alexa Mini, usada agora por Cronenberg, se obtém uma alta definição e pouquíssimos ruídos para a fotografia dos filmes. Tal exatidão imagética, adquirida pela técnica digital, não deixa de trazer uma lógica cirúrgica para o cinema, o que se enlaça ao próprio enredo de Crimes do futuro.

Grosso modo, os Road Movies mais cults podem ser pensados como desvios e abalos na perspectiva de progresso profetizada pelo Manifesto Futurista de Marinetti (1909). Incitado pelo fascismo já circundante na Itália, o autor bradava em favor do perigo e estimulava “o hábito da energia e da temeridade” contra “a imobilidade pensativa, o êxtase, o sono”. Queria o “movimento agressivo, a insônia febril, o passo de corrida, o salto mortal, o bofetão e o soco”. Para o futurismo, a beleza estaria na velocidade e no rugido dos automóveis. A obra-prima deveria ser agressiva como nas guerras. Em 1909, declarava que tempo e espaço já tinham atestado de óbito. Estaríamos diante da “eterna velocidade onipresente”. Conclamava a queima do passado reunido em museus e bibliotecas.

Vimos que a velocidade e a agressividade não atendem apenas à lógica do progresso profetizado no manifesto, mas caminham igualmente em direção ao Gozo oriundo de traumas que se repetem à exaustão de maneira mortífera e erótica. Cosmópolis e Crash são retratos disso. Agora, porém, estamos diante de outras modalidades de Gozo – ao contrário do que queria Marinetti, o passado e a tradição se impõem. O Gozo de resgatar nostalgicamente afetos, dores e prazeres, que uma vez foram comuns à humanidade, mostra que os objetos de nossas experiências não podem ser simplesmente queimados ou apagados. Rasgando corpos e expondo feridas sentimo-nos mais próximos daquilo que um dia nos definiu. Seguindo o gesto de Luís Buñuel em Um cão andaluz (1929), Cronenberg rasga o corpo de imagens artísticas repletas de referências temáticas e estéticas e nos devolve ao vigoroso rubro das belezas internas da carne.

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