8 em Istambul: a Turquia senta no divã

Série constrói mosaico psicológico e cultural do país. Adoecidos pelo clima de medo, insegurança e ressentimento, os personagens vivem o avanço do conservadorismo de Erdogan. Mostra: o autoritarismo pode ser um adoecimento coletivo

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Em um café em Istambul, Peri, uma psiquiatra de classe alta, com formação no exterior e de família secular, conversava informalmente com Melisa, uma atriz popular de novelas na Turquia. Quando Melisa perguntou para Peri se na família dela havia mulheres de véu, ela respondeu instintivamente: “Não, nós somos todos normais”. Essa afirmação, em certa medida, reflete o grau dos conflitos sociais gerados pelo acirramento da polarização política, ideológica, cultural e religiosa da sociedade turca desde meados de 2012, quando o partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), do atual presidente Recep Tayyip Erdogan, tomou o poder na Turquia.

Desde então, a sociedade turca se dividiu em muitos grupos sectários e conflitantes entre si. Contudo a polarização mais visível ocorre, por um lado, entre uma porção populacional situada na elite econômica e intelectual, caracterizada como secular e ocidental e, por outro, pelos setores mais populares da sociedade turca, considerada mais religiosa e conservadora nos costumes. Além da polarização social, foi instituído um clima de medo, de insegurança e silêncio capaz de impedir a população de se expressar sobre o autoritarismo, a violência e a desigualdade social.

A série da Netflix, 8 em Istambul (Bir Baskadir) é, antes de tudo, política, porém sua abordagem vai muito além da atual polarização política e social da Turquia. A série, inscrita e dirigida por Berkun Oya e Ali Farkhonde, traz uma apresentação profunda e complexa dos conflitos psicológicos dos personagens centrais, simbolicamente atrelado à protagonista, a personagem Meryem, uma estudante pobre de uma família conservadora residente na área rural de Istambul. Logo no primeiro capítulo da série, Meryem procura o consultório psiquiátrico para, a princípio, tratar de seus desmaios repentinos. A psiquiatra que atende Meryem é Peri. Em sua primeira sessão de terapia é possível reparar a impaciência de Peri com a dificuldade de Meryem em falar abertamente sobre a sua paixão reprimida pelo seu patrão, Sinan, um playboy turco deprimido, pelo qual Meryem presta serviços como empregada doméstica.

Posteriormente às sessões com Meryem, em uma sessão psiquiátrica com a supervisora, Gülbin, uma mulher secular, mas de família conservadora, Peri expõe, de maneira exaltada, a sua dificuldade em lidar com mulheres de véu, ao mesmo tempo que admitia condenar o seu ressentimento e o seu preconceito dentro do ambiente profissional.

A expressão e a fala são os temas centrais da série 8 em Istambul. Afinal o que pode acontecer quando reprimimos as nossas emoções? Muitos psiquiatras concordam que todos nós podemos adoecer quando permanecemos em silêncio. E, é exatamente isso o que ocorre com os personagens de 8 em Istambul. Dentro do círculo familiar da protagonista Meryem, a sua cunhada, Ruhiye, violentada antes do casamento com o seu irmão, Yasin, um ex oficial do exército e que agora trabalha como segurança de uma casa noturna de Istambul, é acometida por uma depressão profunda a ponto de ter pensamentos suicidas. Fora do círculo familiar de Meryem, mas na mesma aldeia, Hayrunnisa, uma jovem homossexual, filha de um Hodja (“Mestre” ou “Professor”), um líder religioso da aldeia, é obrigada a reprimir a sua sexualidade dentro de contexto conservador familiar.

No consultório psiquiátrico de Istambul, além da psiquiatra Peri viver angustiada com os seus preconceitos e ressentimentos mal resolvidos, a sua supervisora, Gülbin, tem de lidar diariamente com uma família conservadora e que se opõe ao seu estilo de vida. Em algumas cenas é possível assistir confrontos físicos entre Gülbin e sua irmã, Gulan, uma mulher muçulmana tradicional, sobretudo quando Gülbin decide, por conta própria, tratar o seu irmão, portador de paralisia cerebral, com um tratamento alternativo e pouco usual na Turquia, o uso de canabis.

8 em Istambul traduz o clima psicológico decorrente da situação política. Em 2012, em um discurso voltado à juventude turca, o então primeiro-ministro Erdogan afirmou publicamente: “um jovem ideal carrega um computador em uma mão e o Alcorão na outra” (TOPAL, 2012). O processo de islamização da Turquia ocorre desde 2002, quando Erdogan foi eleito pela primeira vez ao cargo de primeiro-ministro da Turquia. E, desde então, qualquer jovem considerado fora dos padrões oficiais descrito pelo partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) é imediatamente considerado “imoral” ou “inapropriado” ao projeto político e social em curso. A imposição do islamismo na juventude turca gerou uma série de reações através de manifestações organizadas por oponentes do governo, estigmatizados como ateístas e como uma ameaça ao projeto político do presidente Erdogan.

De acordo com a professora do departamento de Sociologia da Universidade Yeditepe, em Istambul, Demet Lüküslü (2016), a transformação da Turquia, de um estado laico e secular rumo a um estado confessional, ocorre pela via de transformação da educação através da expansão das escolas confessionais e pela islamização do currículo escolar. Desde 2010, a quantidade de escolas religiosas aumentou em torno de 73%. Os pais de alunos que procuram por escolas e colégios não religiosos, laicos, passaram a enfrentar uma enorme dificuldade. As poucas escolas não religiosas são mais concorridas e, consequentemente, mais caras quando comparadas a grande oferta de escolas religiosas. Desse modo, a porção populacional que se opõem ao projeto de islamização autoritária da Turquia tornou-se, com o passar do tempo, mais elitizada. São poucos os alunos que conseguem ter acesso privilegiado a uma educação não religiosa e contestadora. Geralmente são jovens de classes mais abastadas, com condições de viajar ao exterior e de se expressarem em inglês pelas redes sociais através de seus smartphones e Iphones. Situação muito diferente quando imaginamos os jovens turcos retratados em 8 em Istambul que vivem na zona rural da cidade, acostumados a consultarem o Hodja antes de tomarem quaisquer decisões.

As manifestações massivas no parque Gezi e na praça Taksim em 2013, conhecidas internacionalmente, foram consideradas o auge da contestação política na Turquia. Foi a oportunidade de muitos jovens protestarem publicamente contra o projeto de islamização, através da redução de escolas e colégios seculares e, através da restrição de publicidade e venda de bebidas alcoólicas nos estabelecimentos da Turquia. As manifestações, reprimidas com força, ocasionou no acirramento da oposição da diáspora turca, estabelecida em alguns países ocidentais, notadamente na Alemanha e nos Estados Unidos. Nessa ocasião houve muitas denúncias de violação de direitos humanos na imprensa estrangeira que passou a retratar a insatisfação da diáspora turca pelo aumento do autoritarismo do estado da Turquia.

A agenda islamista de Erdogan, do mesmo modo, atinge os patrimônios históricos. Muito recentemente, em julho de 2020, o Conselho de Estado da Turquia revogou a condição de museu da basílica de Santa Sofia, de modo a pôr em prática o projeto de transformação da basílica em uma mesquita. A conversão da basílica de Santa Sofia em uma mesquita foi condenada pela UNESCO e por muitos acadêmicos nacionais e estrangeiros, sobretudo por se tratar de uma decisão unilateral sem quaisquer consultas a sociedade turca.

O silenciamento social na Turquia impulsionado pelo autoritarismo e pela truculência do Estado é responsável pelo adoecimento da população turca. Em muitos casos as doenças geradas pelo silêncio ensurdecedor se manifestam através de sintomas como o preconceito, a frustração e o ressentimento. O remédio para esse mal é justamente a quebra do silêncio, simbolizado pelas denúncias, pelos debates e pelas manifestações públicas e democráticas. Ao contrário, a Turquia continuará sendo acometida por uma sociedade deprimida e apática.

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4 comentários para "8 em Istambul: a Turquia senta no divã"

  1. Patrícia Schmidt de Oliveira disse:

    A série trata principalmente das questões do inconsciente e como este atua, mesmo qdo não o desejamos. E neste texto, assim como o “retrato” da personagem Peri, a autora se “fixa “na questão Islâmica.

  2. Patrícia Schmidt de Oliveira disse:

    A série trata principalmente das questões do inconsciente, e como este atua mesmo qdo não queremos o desejamos. E neste texto, assim como o “retrato” da personagem Peri, a autora se “fixa “na questão Islâmica.

  3. Edeli Gonçalves Saba disse:

    Assunto relevante e tratado de maneira muito bem cuidada. Faço ressalvas a alguns equívocos gramaticais que merecem ser revisados.

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