Um boneco de carne e osso

Animais falantes, tubarão-baleia, fadas, um mundo mágico… devastado pela pobreza. Pinóquio de Matteo Garrone distancia-se da versão ensolarada da Disney, mostrando-o como anti-pícaro, um ingênuo entre o trabalho e o estudo, o prazer e a realidade crua

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

Por algum motivo insondável, há de repente no mundo uma proliferação de Pinóquios.

Entra em cartaz nesta quinta (21 de janeiro) nos cinemas brasileiros a mais recente versão italiana com atores, dirigida por Matteo Garrone. Uma nova animação assinada por Guillermo del Toro e Mark Gustafson deve ser lançada este ano, e está em pré-produção outra versão live action produzida pela Disney, sob a direção de Robert Zemeckis, com Tom Hanks no papel de Gepeto. Ou seja: três longas-metragens com assinaturas de cineastas importantes num período de dois anos, sem que haja qualquer efeméride “redonda” relativa ao livro original, de 1883, ou ao seu autor, o italiano Carlo Collodi (1826-90).

Os atores Roberto Benigni e Federico Ielapi em cena do filme Pinóquio, de Matteo Garrone.

Do mito judaico do Golem ao Edward mãos de tesoura, passando por Frankenstein, a criação de vida humana a partir da matéria inanimada é uma fantasia recorrente na literatura e nas artes. Pinóquio, pelo visto, é um capítulo importante dessa história.

No cinema, a versão mais conhecida, evidentemente, é o clássico Disney de 1940, que simplifica e edulcora bastante a narrativa de Collodi para torná-la mais apetecível às crianças da época.

A maldade do mundo

De Matteo Garrone, conhecido pelo realismo brutal de filmes como Gomorra, Reality e Dogman, alguém poderia esperar uma visão sombria e violenta da fábula, vetada para crianças. Mas não chega a tanto: mais próxima do texto original de Collodi do que a luminosa animação da Disney, sua versão é um misto de aventura picaresca e conto moral.

Há uma imprecisão no que acabei de dizer: na verdade, o Pinóquio de Garrone é o anti-pícaro. Tropeça de uma peripécia a outra movido não pela astúcia (atributo do pícaro), mas pela falta dela. É, antes de tudo, um ingênuo. O que a sua trajetória revela é a maldade do mundo à sua volta, os inúmeros perigos que espreitam por trás de cada situação.

Uma palavra prévia sobre o livro de Collodi. Escritas a partir de 1881 e publicadas em série numa revista infantil, as histórias do boneco de pau foram reunidas em livro dois anos depois. Ao que parece, o autor foi escrevendo-as ao sabor do sucesso junto aos leitores, sem ter uma ideia prévia do destino de sua criatura. É uma narrativa episódica e um tanto desigual. O desenho de Walt Disney optou pela síntese, deixando de fora a maioria dos episódios e impondo uma leitura coerente, unívoca. O filme de Garrone manteve, tanto quanto possível, o caráter episódico, ambíguo e contraditório da narrativa original.

Outra diferença importante: no desenho clássico, Pinóquio ganha vida graças à intervenção da fada azul, que atende a um desejo do artesão Gepeto. No filme, como no livro, a vida humana já estava contida, de maneira inexplicada, no tronco de madeira em que o boneco foi esculpido. Não vem de fora, mas da sua seiva interna, por assim dizer.

Acúmulo de prodígios

Não é o caso de ficar cotejando diferenças entre uma versão e outra. O importante é destacar que no filme de Garrone acontecem muito mais coisas, mas de um modo quase “natural”, sem a ênfase dramática e/ou poética do desenho animado. Seu encanto se constrói pelo acúmulo de eventos prodigiosos, logo assimilados como normais, e não tanto pelo relevo dado a cada um deles.

A abordagem mais prosaica já aparece nas primeiras imagens, em que Gepeto (Roberto Benigni) oferece seus préstimos de marceneiro a um estalajadeiro em troca de um prato de comida. O tópico da escassez e da necessidade, praticamente ausente do universo Disney, marca a versão Garrone, mesmo que esta abrace sem reservas a fantasia do original (animais falantes, vida dentro de um tubarão-baleia, metamorfose de meninos em burros, sortilégios de fada, etc.).

Ao mundo do estudo e do trabalho, regido pelo princípio da realidade (e da esperteza), contrapõe-se a certa altura a Terra dos Brinquedos (ou dos Prazeres), para onde Pinóquio (o ator mirim Federico Ielapi) é levado por influência do bad boy Espoleto (Alessio Di Domenicantonio). É uma espécie de paraíso infantil onde impera o princípio do prazer.

O conflito entre essas duas esferas (a realidade e o prazer) é bem mais matizado e menos moralista em Garrone do que em Disney. Cabe esperar o que vão fazer dele Guillermo del Toro e Robert Zemeckis, dois autores que trafegam no terreno da fantasia com abordagens bem diversas. (Tento imaginar como seria uma versão Tim Burton. Pinóquio parece um livro escrito especialmente para ele.)

Uma última palavra sobre Benigni. O ator tem uma atuação surpreendentemente sóbria como Gepeto, quase o avesso de seu histrionismo no papel de Pinóquio na versão esquecível que ele próprio dirigiu em 2002. Parece até um mea-culpa.

Carne

Por falar em animação, um filme brasileiro excepcional está qualificado para concorrer ao Oscar de curta-metragem documental. É também um dos finalistas do prêmio espanhol Goya na categoria curta de animação. Estou falando de Carne, coprodução Brasil-Espanha de doze minutos dirigida pela estreante Camila Kater.

Alternando os depoimentos de cinco mulheres (uma delas, a atriz e cineasta Helena Ignez) sobre sua relação com o próprio corpo, o filme utiliza de modo altamente criativo diversas técnicas de animação. Para quem quiser conferir, Carne está disponível gratuitamente na plataforma Op-Docs do New York Times.

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