Três reflexões sobre a Cultura do Automóvel

Um obser­va­dor extra­pla­ne­tá­rio terá notado: em algum momento, espécie humana foi suplan­tada e colocada em sujeição por novo organismo

Por Pablo Babro, em seu blog

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Um obser­va­dor extra­pla­ne­tá­rio terá notado: em algum momento do século 20, espécie humana foi suplan­tada e colocada em sujeição por novo organismo à base de metal e borracha

Por Pablo Babro, em seu blog

Como carecemos de histórias milenares e de longas dinastias que jus­ti­fi­quem os nossos tem­pe­ra­men­tos, nas Américas adotamos desde cedo uma nova mitologia, uma narrativa ori­en­ta­dora que alongamos dos des­co­bri­men­tos e das caravelas: a ideia de que ocupar espaços – em alguns casos, sim­ples­mente transpor espaços – é uma coisa boa, sufi­ci­ente e admirável.

É a mesma música que rege as entradas dos ban­dei­ran­tes no século dezessete, o avanço dos norte-americanos Oeste adentro no século 19 e a cons­tru­ção de Brasília no século 20. Até hoje, nas Américas, nos con­si­de­ra­mos muito mais ocupantes do espaço do que da história.

Um emblema da paixão con­ti­nen­tal pela narrativa da ocupação do espaço é a nossa relação com o automóvel. O automóvel é ideia popular em todo o mundo, mas foi no Novo Mundo que o alçamos à condição de mito. Na narrativa con­tem­po­râ­nea das Américas, o grande ritual da matu­ri­dade não é casar-se ou entrar no mercado de trabalho; não é ter um filho, comprar uma casa ou matar um tigre: é desenhar com as mãos a cir­cun­fe­rên­cia da direção de um carro, o seu carro.

No Velho Mundo é diferente, mas no Novo ser privado de um carro é ser sim­bo­li­ca­mente privado de autonomia e de poder. Embalados pelo discurso de liberdade do neo­li­be­ra­lismo, vemos um automóvel não como uma máquina que se move sozinha, mas como uma máquina que nos move sozinhos. Como insígnia de autonomia e auto­de­ter­mi­na­ção, a posse de um automóvel nos parece coisa ine­ren­te­mente boa, e um mundo em que cada um tem o seu carro um mundo ajustado e justo.

Permita-me apontar três coisas que a cultura do automóvel pode ter levado você a esquecer.

1. Um carro é uma arma

Num dos manuais de trânsito que os anos me obrigaram a ler está escrito que cada pro­ta­go­nista do trânsito deve sentir-se res­pon­sá­vel pela segurança dos con­du­to­res de veículos que podem causar menor estrago do que o veículo dele. Desse modo, caminhões devem zelar pela segurança de auto­mó­veis, auto­mó­veis devem zelar pela segurança de moto­ci­cle­tas, moto­ci­cle­tas devem zelar pela segurança de bici­cle­tas, e todos devem zelar pela segurança dos pedestres.

Esse cenário me enternece o coração, e depois de vê-lo descrito desse modo nunca consegui pensar no trânsito de uma outra forma. Porém essa bem-desenhada utopia esconde uma lógica brutal: se ela faz sentido é só porque gente armada deve sentir-se logi­ca­mente res­pon­sá­vel pela segurança de gente desarmada.

Mesmo quando falam das mortes no trânsito, as retóricas oficiais procuram evitar esse modo de dizer, mas um automóvel não é menos que uma arma.

Se você precisa de esta­tís­ti­cas que deem peso à com­pa­ra­ção, não tardará a encontrá-las. Dou-lhe três: no Brasil o número de mortes no trânsito cresceu 40% entre 2002 e 2012. Estima-se que em 2014 o trânsito bra­si­leiro vai matar 48.349 pessoas; são 4029 mortes ao mês, 132 mortes por dia, 6 mortes por hora, uma morte a cada 10 minutos. Não somos conhe­ci­dos como um país pouco violento, mas o número de bra­si­lei­ros mortos no trânsito ultra­pas­sou recen­te­mente o número de vítimas de homi­cí­dios – querendo dizer, o esforço acumulado (e nada negli­gen­ciá­vel) de todos os assas­si­nos e todas as armas de fogo do Brasil não consegue matar de modo mais eficaz do que as inte­ra­ções entre seres humanos e veículos acima do asfalto.

Se não estamos habi­tu­a­dos a pensar num automóvel como uma arma é porque não convém à narrativa glit­te­ri­zada propagada pela indústria. Milhões em pro­pa­ganda são alocados no esforço de fazer a sua cabeça e de mantê-la feita. Você sentiria grave des­con­forto se o obri­gas­sem a manusear um revólver carregado, mas sente-se à vontade dirigindo um automóvel. Qual é a diferença?

2. Para reclamar do trânsito basta fazer parte do problema

Não é coisa inédita ver pedestres, ciclistas e usuários do trans­porte público mal­di­zendo os embaraços do tráfego, mas para reclamar com ver­da­dei­ros pro­fis­si­o­na­lismo, paixão e con­sis­tên­cia é preciso ter um automóvel. Só quem tem um carro entende o quanto as agruras do trânsito tolhem o avanço e a mobi­li­dade que nos parecem nossos por direito – que seriam nossos por direito, se o nosso veículo tivesse ocasião de fluir com a liberdade que foi desenhado para ter, a liberdade que nos prometem… os anúncios de automóvel.

O ponto cego dessa equação, natu­ral­mente, está em que os que reclamam com maior sen­ti­mento da amarração do trânsito são os maiores res­pon­sá­veis por ela. Não é que a lentidão do trânsito torna difícil a exis­tên­cia dos pro­pri­e­tá­rios de automóvel; são os pro­pri­e­tá­rios de automóvel que tornam possível a exis­tên­cia da lentidão do trânsito.

O automóvel ultra­pas­sou há muito tempo aquilo que Ivan Illich chama de “segundo divisor de águas” – o momento em que uma solução tec­no­ló­gica que parecia ini­ci­al­mente sensata e con­ve­ni­ente acaba pro­du­zindo os próprios problemas que se dispunha a solu­ci­o­nar. A dis­po­ni­bi­li­dade universal de carros cada vez mais velozes não tornou o trânsito menos lento, não tornou o des­lo­ca­mento mais ágil e não nos deu a liberdade de perder menos tempo no trânsito. Ao contrário: “os veículos acabaram criando dis­tân­cias maiores do que as que ajudaram a cobrir”.

Você reclama do trânsito, mas bastam o seu carro e o carro do seu vizinho Celso para seques­trar o espaço de um ônibus de quarenta lugares (e a mate­má­tica é generosa: um único ônibus de quarenta lugares pode repre­sen­tar quarenta auto­mó­veis a menos entupindo as veias do trânsito). Você escolheu a sua resi­dên­cia para fugir da opressão da cidade, mas acaba criando para si mesmo novas formas de opressão – inclusive o cons­tran­gi­mento de passar mais tempo em trânsito ouvindo Enya do que des­fru­tando da tran­qui­li­dade que você está pagando sua casa para representar.

Essas duas aparentes con­ve­ni­ên­cias – o automóvel que segundo a lenda pode levá-lo a qualquer lugar quando você quiser e a casa “tranquila” longe do trabalho – transmutaram-se em enormes incon­ve­ni­ên­cias, tanto para você quanto para os outros1. O tráfego lento, amarrado e agressivo da vida real é o resultado coletivo do acúmulo de um número incrível de ilusões indi­vi­du­ais. Não será a primeira vez que o capi­ta­lismo terá con­se­guido engodá-lo com a promessa canalha do excep­ci­o­na­lismo, a ideia de que com você vai ser diferente: que você é especial e pode con­tri­buir para saturar um sistema sem ser pre­ju­di­cado pela saturação dele.

3. O automóvel não é a medida das coisas

Um obser­va­dor extra­pla­ne­tá­rio não terá deixado de notar que em algum momento do século 20 a raça humana foi suplan­tada e colocada em sujeição por uma nova espécie de organismo à base de metal e borracha.

Os auto­mó­veis evoluíram rápido: em poucas décadas já usavam os seres humanos para se alimentar, para repor membros com­pro­me­ti­dos, para curar doenças cir­cu­la­tó­rias e – acima de tudo – para se mul­ti­pli­car em ritmo espantoso. Os seres humanos sujei­ta­ram a terra por muitos milhares de anos, mas a população de auto­mó­veis (que há cem anos pra­ti­ca­mente não existia) em algumas regiões do planeta já ultra­pas­sou a população de homo sapiens. E, não havendo vacina conhecida, ninguém sabe quando os auto­mó­veis vão parar de usar seres humanos para se multiplicar.

Ini­ci­al­mente, os carros usaram os seres humanos para locomover-se de um lugar para outro, mas logo sua postura tornou-se mais agressiva. Através do controle da mente, os auto­mó­veis con­ven­ce­ram as pessoas a transfor­mar radi­cal­mente as suas próprias cidades e vias de acesso – tornando-as aco­lhe­do­ras para auto­mó­veis, mas intei­ra­mente hostis para os seres humanos insub­mis­sos que insis­tis­sem em deslocar-se a pé. Planícies férteis e riachos mais velhos do que a huma­ni­dade foram aplai­na­dos em esta­ci­o­na­men­tos – enormes praias de concreto sem mar, feias, áridas, impro­du­ti­vas e des­fa­vo­rá­veis a toda vida orgânica – só para fornecer aos novos senhores do mundo um habitat. E, como sinal decisivo da supre­ma­cia dos auto­mó­veis, os seres humanos apren­de­ram a desejar que houvesse um esta­ci­o­na­mento nos lugares em que não encontram habitat favorável para o automóvel do qual são hospedeiros.

Para se entender por completo a extensão dessa lavagem cerebral é preciso pisar um lugar que tenha sido poupado dos seus efeitos: visitar uma cidade medieval europeia (de pre­fe­rên­cia na Itália, onde as gerações resistem mais tei­mo­sa­mente a des­fi­gu­rar as feições da história). Cidades como Siena, Assis e Mon­te­pul­ci­ano (e uma infi­ni­dade de outras menos conhe­ci­das) oferecem uma pers­pec­tiva que no Novo Mundo eli­mi­na­mos ou des­co­nhe­ce­mos: uma paisagem urbana intei­ra­mente desenhada com o homem como medida. Tudo na cidade medieval foi projetado para o deleite de pés e de olhos humanos: as dis­tân­cias entre um lugar e outro, a largura das vias, a oferta de lojas e serviços, a gentil curvatura das ruas, a pers­pec­tiva dos arcos, o abrigo das colunatas, a dis­po­si­ção de praças e igrejas e monu­men­tos. Tudo pode ser per­cor­rido a pé e para ser per­cor­rido a pé foi concebido; tudo que leva o nome de humano divide sem com­pe­ti­ção o mesmo espaço vital: comer­ci­an­tes e resi­dên­cias, artesãos e serviços públicos, mercados e igrejas, escolas e museus, res­tau­ran­tes e fontes de água. Pra­ti­ca­mente não há lugar para esta­ci­o­nar porque, natu­ral­mente, ninguém previu e ninguém deveria ter de prever um espaço que não seja para gente.

Hoje em dia você encontra um carro ou outro nessas cidades medievais, mas são pouco numerosos e são pequenos – e não há quem não entenda que são os auto­mó­veis os estranhos naquele ambiente. Em com­pa­ra­ção, tudo nas metró­po­les bra­si­lei­ras é hostil aos homens e acolhedor para os auto­mó­veis. Há curiosos indícios de que nos horários de pico a forma mais rápida e eficiente de deslocar-se dentro da metrópole é a pé, mas essas indi­ca­ções não são usadas para corrigir a realidade: nada na cidade grande é feito pensando em priorizar a expe­ri­ên­cia dos pedestres.

Quem precisa ter medo de um levante de robôs e de inte­li­gên­cia arti­fi­cial, quando sem a inter­ven­ção desses fatores já nos mostramos dispostos a alterar a face do mundo em favor das máquinas? É assim: a medida das coisas deixou de ser o homem e passou a ser o automóvel. Basta pisar uma cidade grande sem o apa­dri­nha­mento de um veículo para entender o status secun­dá­rio do ser humano na paisagem urbana. Quem está a pé está sozinho contra uma multidão armada.

 

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3 comentários para "Três reflexões sobre a Cultura do Automóvel"

  1. Sim, caro Michel, andar de ônibus em muitas metrópoles é um tormento, um tormento planejado para nos convencer de que a única forma para soluciona-lo é a aquisição de um carro, a emancipação individualizada e atomizada que desconsidera a regressão coletiva e social como resultado dos agregados individuais “emancipados”.
    Até porque o “ônibus”, ora, esse objeto intrinsecamente malévolo que humilha seres humanos ao comprimi-los em espaços inconcebíveis, não é passível de transformação e reformulação, não há como ser priorizado por políticas públicas que lhe forneça os recursos necessários para ser um veículo eficiente, confortável e que respeite a dignidade humana. Isso é impossível, pois a indústria automobilística precisa de toda atenção, de toda as energias para si, nem que seja a custa do embrutecimento de outras mobilizações alternativas. A roda do capital não pode parar.

  2. Michel disse:

    O sistema de transporte público é indigente, massacrante, estúpido. Um horror! Experimente pegar o metro das 7h30 às 9h e verá sua cidadania paulistana escorrer para o lixo, depois de ter sido encoxado, empurrado, aviltado, claro. No ônibus, o motorista despeja seu ódio (pela jornada excessiva, baixo salário, barulho, calor, trânsito infernal) nos passageiros, fazendo todo o possível para que o desgraçado pague os pecados que ainda não cometeu. Freiadas e arrancadas bruscas, paradas longe da sarjeta, mal tratos aos idosos, sem falar no excesso de lotação, o gado humano ali em pé.
    Por isso quem pode vai de carro. Recomendo, compre logo o seu e caia fora dessa indigência que é o transporte público brasileiro, de esquerda ou de direita. Melhor o engarrafamento com rádio ligado, minhocões e viadutos, que essa infâmia diária e massacrante. Por esse motivo todo mundo quer um carro. Montepulciano é minúscula, economicamente inexistente e vive do turismo. Experimente andar a pé diariamente pelas sete colinas de Roma ou na enorme Milão. Aliás, tentaram me roubar no lotadíssimo metrô de Roma — que é bem civilizado que o de São Paulo.
    Vamos deixar de cinismo. Deixe você, autor do artigo, seu carro em casa e ande de ônibus. O povo brasileiro queima ônibus porque tem ódio justificado deles.

  3. ELISABET GOMES DO NASCIMENTO disse:

    Essa lógica da cidade para os automóveis, vem sendo mudada de alguma forma, com as faixas exclusivas de ônibus e com as ciclofaixas e ciclovias, implementadas pelo Grande prefeito Fernando Haddad. O paulistano vem experimentando uma nova forma de mobilidade.
    Acredito que aos poucos, com essas medidas, vamos mudando a mentalidade daqueles que acham que São Paulo não tem jeito.

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