Três reflexões sobre a Cultura do Automóvel
Um observador extraplanetário terá notado: em algum momento, espécie humana foi suplantada e colocada em sujeição por novo organismo
Por Pablo Babro, em seu blog
Publicado 28/09/2014 às 10:34
Um observador extraplanetário terá notado: em algum momento do século 20, espécie humana foi suplantada e colocada em sujeição por novo organismo à base de metal e borracha
Por Pablo Babro, em seu blog
Como carecemos de histórias milenares e de longas dinastias que justifiquem os nossos temperamentos, nas Américas adotamos desde cedo uma nova mitologia, uma narrativa orientadora que alongamos dos descobrimentos e das caravelas: a ideia de que ocupar espaços – em alguns casos, simplesmente transpor espaços – é uma coisa boa, suficiente e admirável.
É a mesma música que rege as entradas dos bandeirantes no século dezessete, o avanço dos norte-americanos Oeste adentro no século 19 e a construção de Brasília no século 20. Até hoje, nas Américas, nos consideramos muito mais ocupantes do espaço do que da história.
Um emblema da paixão continental pela narrativa da ocupação do espaço é a nossa relação com o automóvel. O automóvel é ideia popular em todo o mundo, mas foi no Novo Mundo que o alçamos à condição de mito. Na narrativa contemporânea das Américas, o grande ritual da maturidade não é casar-se ou entrar no mercado de trabalho; não é ter um filho, comprar uma casa ou matar um tigre: é desenhar com as mãos a circunferência da direção de um carro, o seu carro.
No Velho Mundo é diferente, mas no Novo ser privado de um carro é ser simbolicamente privado de autonomia e de poder. Embalados pelo discurso de liberdade do neoliberalismo, vemos um automóvel não como uma máquina que se move sozinha, mas como uma máquina que nos move sozinhos. Como insígnia de autonomia e autodeterminação, a posse de um automóvel nos parece coisa inerentemente boa, e um mundo em que cada um tem o seu carro um mundo ajustado e justo.
Permita-me apontar três coisas que a cultura do automóvel pode ter levado você a esquecer.
1. Um carro é uma arma
Num dos manuais de trânsito que os anos me obrigaram a ler está escrito que cada protagonista do trânsito deve sentir-se responsável pela segurança dos condutores de veículos que podem causar menor estrago do que o veículo dele. Desse modo, caminhões devem zelar pela segurança de automóveis, automóveis devem zelar pela segurança de motocicletas, motocicletas devem zelar pela segurança de bicicletas, e todos devem zelar pela segurança dos pedestres.
Esse cenário me enternece o coração, e depois de vê-lo descrito desse modo nunca consegui pensar no trânsito de uma outra forma. Porém essa bem-desenhada utopia esconde uma lógica brutal: se ela faz sentido é só porque gente armada deve sentir-se logicamente responsável pela segurança de gente desarmada.
Mesmo quando falam das mortes no trânsito, as retóricas oficiais procuram evitar esse modo de dizer, mas um automóvel não é menos que uma arma.
Se você precisa de estatísticas que deem peso à comparação, não tardará a encontrá-las. Dou-lhe três: no Brasil o número de mortes no trânsito cresceu 40% entre 2002 e 2012. Estima-se que em 2014 o trânsito brasileiro vai matar 48.349 pessoas; são 4029 mortes ao mês, 132 mortes por dia, 6 mortes por hora, uma morte a cada 10 minutos. Não somos conhecidos como um país pouco violento, mas o número de brasileiros mortos no trânsito ultrapassou recentemente o número de vítimas de homicídios – querendo dizer, o esforço acumulado (e nada negligenciável) de todos os assassinos e todas as armas de fogo do Brasil não consegue matar de modo mais eficaz do que as interações entre seres humanos e veículos acima do asfalto.
Se não estamos habituados a pensar num automóvel como uma arma é porque não convém à narrativa glitterizada propagada pela indústria. Milhões em propaganda são alocados no esforço de fazer a sua cabeça e de mantê-la feita. Você sentiria grave desconforto se o obrigassem a manusear um revólver carregado, mas sente-se à vontade dirigindo um automóvel. Qual é a diferença?
2. Para reclamar do trânsito basta fazer parte do problema
Não é coisa inédita ver pedestres, ciclistas e usuários do transporte público maldizendo os embaraços do tráfego, mas para reclamar com verdadeiros profissionalismo, paixão e consistência é preciso ter um automóvel. Só quem tem um carro entende o quanto as agruras do trânsito tolhem o avanço e a mobilidade que nos parecem nossos por direito – que seriam nossos por direito, se o nosso veículo tivesse ocasião de fluir com a liberdade que foi desenhado para ter, a liberdade que nos prometem… os anúncios de automóvel.
O ponto cego dessa equação, naturalmente, está em que os que reclamam com maior sentimento da amarração do trânsito são os maiores responsáveis por ela. Não é que a lentidão do trânsito torna difícil a existência dos proprietários de automóvel; são os proprietários de automóvel que tornam possível a existência da lentidão do trânsito.
O automóvel ultrapassou há muito tempo aquilo que Ivan Illich chama de “segundo divisor de águas” – o momento em que uma solução tecnológica que parecia inicialmente sensata e conveniente acaba produzindo os próprios problemas que se dispunha a solucionar. A disponibilidade universal de carros cada vez mais velozes não tornou o trânsito menos lento, não tornou o deslocamento mais ágil e não nos deu a liberdade de perder menos tempo no trânsito. Ao contrário: “os veículos acabaram criando distâncias maiores do que as que ajudaram a cobrir”.
Você reclama do trânsito, mas bastam o seu carro e o carro do seu vizinho Celso para sequestrar o espaço de um ônibus de quarenta lugares (e a matemática é generosa: um único ônibus de quarenta lugares pode representar quarenta automóveis a menos entupindo as veias do trânsito). Você escolheu a sua residência para fugir da opressão da cidade, mas acaba criando para si mesmo novas formas de opressão – inclusive o constrangimento de passar mais tempo em trânsito ouvindo Enya do que desfrutando da tranquilidade que você está pagando sua casa para representar.
Essas duas aparentes conveniências – o automóvel que segundo a lenda pode levá-lo a qualquer lugar quando você quiser e a casa “tranquila” longe do trabalho – transmutaram-se em enormes inconveniências, tanto para você quanto para os outros1. O tráfego lento, amarrado e agressivo da vida real é o resultado coletivo do acúmulo de um número incrível de ilusões individuais. Não será a primeira vez que o capitalismo terá conseguido engodá-lo com a promessa canalha do excepcionalismo, a ideia de que com você vai ser diferente: que você é especial e pode contribuir para saturar um sistema sem ser prejudicado pela saturação dele.
3. O automóvel não é a medida das coisas
Um observador extraplanetário não terá deixado de notar que em algum momento do século 20 a raça humana foi suplantada e colocada em sujeição por uma nova espécie de organismo à base de metal e borracha.
Os automóveis evoluíram rápido: em poucas décadas já usavam os seres humanos para se alimentar, para repor membros comprometidos, para curar doenças circulatórias e – acima de tudo – para se multiplicar em ritmo espantoso. Os seres humanos sujeitaram a terra por muitos milhares de anos, mas a população de automóveis (que há cem anos praticamente não existia) em algumas regiões do planeta já ultrapassou a população de homo sapiens. E, não havendo vacina conhecida, ninguém sabe quando os automóveis vão parar de usar seres humanos para se multiplicar.
Inicialmente, os carros usaram os seres humanos para locomover-se de um lugar para outro, mas logo sua postura tornou-se mais agressiva. Através do controle da mente, os automóveis convenceram as pessoas a transformar radicalmente as suas próprias cidades e vias de acesso – tornando-as acolhedoras para automóveis, mas inteiramente hostis para os seres humanos insubmissos que insistissem em deslocar-se a pé. Planícies férteis e riachos mais velhos do que a humanidade foram aplainados em estacionamentos – enormes praias de concreto sem mar, feias, áridas, improdutivas e desfavoráveis a toda vida orgânica – só para fornecer aos novos senhores do mundo um habitat. E, como sinal decisivo da supremacia dos automóveis, os seres humanos aprenderam a desejar que houvesse um estacionamento nos lugares em que não encontram habitat favorável para o automóvel do qual são hospedeiros.
Para se entender por completo a extensão dessa lavagem cerebral é preciso pisar um lugar que tenha sido poupado dos seus efeitos: visitar uma cidade medieval europeia (de preferência na Itália, onde as gerações resistem mais teimosamente a desfigurar as feições da história). Cidades como Siena, Assis e Montepulciano (e uma infinidade de outras menos conhecidas) oferecem uma perspectiva que no Novo Mundo eliminamos ou desconhecemos: uma paisagem urbana inteiramente desenhada com o homem como medida. Tudo na cidade medieval foi projetado para o deleite de pés e de olhos humanos: as distâncias entre um lugar e outro, a largura das vias, a oferta de lojas e serviços, a gentil curvatura das ruas, a perspectiva dos arcos, o abrigo das colunatas, a disposição de praças e igrejas e monumentos. Tudo pode ser percorrido a pé e para ser percorrido a pé foi concebido; tudo que leva o nome de humano divide sem competição o mesmo espaço vital: comerciantes e residências, artesãos e serviços públicos, mercados e igrejas, escolas e museus, restaurantes e fontes de água. Praticamente não há lugar para estacionar porque, naturalmente, ninguém previu e ninguém deveria ter de prever um espaço que não seja para gente.
Hoje em dia você encontra um carro ou outro nessas cidades medievais, mas são pouco numerosos e são pequenos – e não há quem não entenda que são os automóveis os estranhos naquele ambiente. Em comparação, tudo nas metrópoles brasileiras é hostil aos homens e acolhedor para os automóveis. Há curiosos indícios de que nos horários de pico a forma mais rápida e eficiente de deslocar-se dentro da metrópole é a pé, mas essas indicações não são usadas para corrigir a realidade: nada na cidade grande é feito pensando em priorizar a experiência dos pedestres.
Quem precisa ter medo de um levante de robôs e de inteligência artificial, quando sem a intervenção desses fatores já nos mostramos dispostos a alterar a face do mundo em favor das máquinas? É assim: a medida das coisas deixou de ser o homem e passou a ser o automóvel. Basta pisar uma cidade grande sem o apadrinhamento de um veículo para entender o status secundário do ser humano na paisagem urbana. Quem está a pé está sozinho contra uma multidão armada.
Sim, caro Michel, andar de ônibus em muitas metrópoles é um tormento, um tormento planejado para nos convencer de que a única forma para soluciona-lo é a aquisição de um carro, a emancipação individualizada e atomizada que desconsidera a regressão coletiva e social como resultado dos agregados individuais “emancipados”.
Até porque o “ônibus”, ora, esse objeto intrinsecamente malévolo que humilha seres humanos ao comprimi-los em espaços inconcebíveis, não é passível de transformação e reformulação, não há como ser priorizado por políticas públicas que lhe forneça os recursos necessários para ser um veículo eficiente, confortável e que respeite a dignidade humana. Isso é impossível, pois a indústria automobilística precisa de toda atenção, de toda as energias para si, nem que seja a custa do embrutecimento de outras mobilizações alternativas. A roda do capital não pode parar.
O sistema de transporte público é indigente, massacrante, estúpido. Um horror! Experimente pegar o metro das 7h30 às 9h e verá sua cidadania paulistana escorrer para o lixo, depois de ter sido encoxado, empurrado, aviltado, claro. No ônibus, o motorista despeja seu ódio (pela jornada excessiva, baixo salário, barulho, calor, trânsito infernal) nos passageiros, fazendo todo o possível para que o desgraçado pague os pecados que ainda não cometeu. Freiadas e arrancadas bruscas, paradas longe da sarjeta, mal tratos aos idosos, sem falar no excesso de lotação, o gado humano ali em pé.
Por isso quem pode vai de carro. Recomendo, compre logo o seu e caia fora dessa indigência que é o transporte público brasileiro, de esquerda ou de direita. Melhor o engarrafamento com rádio ligado, minhocões e viadutos, que essa infâmia diária e massacrante. Por esse motivo todo mundo quer um carro. Montepulciano é minúscula, economicamente inexistente e vive do turismo. Experimente andar a pé diariamente pelas sete colinas de Roma ou na enorme Milão. Aliás, tentaram me roubar no lotadíssimo metrô de Roma — que é bem civilizado que o de São Paulo.
Vamos deixar de cinismo. Deixe você, autor do artigo, seu carro em casa e ande de ônibus. O povo brasileiro queima ônibus porque tem ódio justificado deles.
Essa lógica da cidade para os automóveis, vem sendo mudada de alguma forma, com as faixas exclusivas de ônibus e com as ciclofaixas e ciclovias, implementadas pelo Grande prefeito Fernando Haddad. O paulistano vem experimentando uma nova forma de mobilidade.
Acredito que aos poucos, com essas medidas, vamos mudando a mentalidade daqueles que acham que São Paulo não tem jeito.