Para compreender sentido e limites do Uber

Aplicativo precisa ser visto em suas contradições: livra seres humanos da intermediação clássica do capital, mas introduz uma nova. Esta não será superada por mágica da tecnologia…

Por Carla Rodrigues, no blog do IMS

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Aplicativo precisa ser visto em suas contradições: livra seres humanos da intermediação clássica do capital, mas introduz uma nova. Esta não será superada por mágica da tecnologia…

Por Carla Rodrigues, no blog do IMS

De pessoa para pessoa, tradução para o português da sigla P2P (person to person), é uma forma de relação social que se estabelece horizontalmente e, para isso, se vale de algum tipo de (nova) tecnologia para mediar esse encontro. Mediação é, pode-se resumir, a função da rede mundial de computadores, dos seus servidores espalhados pelo mundo com o desenho dos rizomas pensados pelo filósofo Gilles Deleuze, que ao mesmo tempo entendeu o formato anárquico da internet e sua potencialidade como instrumento para a passagem de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de controle. Mediação é também aquilo que ganha valor de mercado e remunera novos tipos de intermediário.

Nesse ambiente em que vida on-line e off-line já são a mesma coisa, sistemas são concebidos para se tornarem transparentes ao usuário, para usar o jargão do mundo dos programadores. A transparência não é uma qualidade como outra qualquer. Ao contrário, sobre ela repousa o fundamental da internet. Proporcionar mediação em interações não hierárquicas. É isso que o Uber – mas também o Airbnb, e muitos anos antes deles, o falecido Napster – faz.

Uma parte do aplicativo Uber, o Uberx, é de fato dedicada a mediar o interesse em locomoção entre pessoas. Se cadastrada, todos os dias, quando saio para o trabalho, poderia compartilhar o trajeto com vizinhos mais ou menos próximos. Com isso, ganhar um dinheiro para pagar o combustível e o estacionamento, sempre deixando 20% para o aplicativo que fez a mediação. São amadores fazendo um dinheiro extra via rede social. Há muito tempo, funciona em São Paulo o Unicaronas, uma rede social para estudantes universitários compartilharem trajetos longos, como sair da capital e ir para a Unicamp.

Tudo muito diferente do Uberblack, contra o qual os taxistas se insurgiram por considerarem concorrência. E é. Entre os requisitos do Uberblack está ser portador de uma carteira de motorista profissional, ter um carro modelo sedan quatro portas, preto, que oferece água gelada. Não raro – afinal, estamos no Rio de Janeiro – esse motorista tão educado e qualificado propõe pagamento da corrida por fora, em dinheiro, para aumentar sua margem de lucro e oferecer um desconto ao cliente.

A mesma lógica de pessoa para pessoa vale para o Airbnb, site que coloca em contato quem procura e quem oferece hospedagem em residências. Há resistências, seja da indústria hoteleira, seja de condomínios que consideram uma forma ou predatória ou irregular de hospedagem. Nem uma coisa, nem outra. Redes sociais de troca de residência entre pessoas, ou redes sociais específicas para troca de residência entre professores universitários, e até o divertido Couchsurfing, algo como “surfando pelos sofás”, são exemplos em que a tecnologia faz a mediação entre pessoas e ganha dinheiro com isso (a taxa de remuneração do Airbnb também é um percentual sobre o aluguel). Fazem sucesso por eliminarem algum tipo de institucionalidade, seja a dos aluguéis por contrato, seja as formalidades e os preços altos dos hotéis. São ambientes regulados, sem dúvida, mas a função é de mediação, não de submissão.

De uma maneira geral, sou muito crítica com quem é por demais otimista com a internet. Não, a rede não é como você usa, por que isso supõe um livre-arbítrio do usuário que não existe; não, a rede não é neutra, é um ambiente politicamente controlado; não, a rede não é espaço de economia criativa, porque por trás destes negócios estão grandes corporações que migraram sua fonte de lucro da velha para a nova economia.

Mas ao mesmo tempo em que mantenho um pé firme nesse viés crítico, também acho possível e mesmo necessário afirmar que sim, se há algo de diferente nestes negócios: o formato. Estamos de volta ao rizoma de Deleuze e Felix Guattari, tipo de planta aquática sem caule, em que qualquer ponto pode se ligar a qualquer ponto, um tipo de sistema que coloca em relação signos e não signos, não se deixa reduzir nem ao uno nem ao múltiplo, não tem começo nem fim, e é feito de “direções movediças”. A imagem do rizoma é usada por muitos autores para caracterizar a experiência de multiplicidade da rede, que se desmonta e se remonta em configurações contingentes e provisórias, expressão de um mundo cuja pretensão de fundamento se desmanchou no ar.

De pessoa para pessoa, o Napster – cuja troca de arquivos entre pessoas era gratuita – obrigou a poderosa indústria fonográfica a se reinventar, e com a plasticidade do capitalismo, a conseguir ganhar dinheiro com música digital. De pessoa para pessoa, há quem viva em Manhattan e só consiga pagar o aluguel no fim do mês por alugar um quarto em fluxo constante via Airbnb. Assim como há quem seja aposentado em Copacabana e ofereça um quarto para alugar só para ter oportunidade de “conhecer gente” (rápida pesquisa no site de aluguéis confirma que essa simpatia remunerada é a maior motivação declarada dos proprietários).

De pessoa para pessoa, o Uber não faria o barulho que faz. Não há nenhuma dúvida de que a briga com os taxistas no Rio de Janeiro é política, envolve prefeitos, ex-prefeitos e uma quantidade enorme de votos. De pessoa para pessoa, ao Facebook – apesar dos milhões de dólares e do controle total do Mark Zuckerberg – se atribui a força de mobilização da Primavera Árabe, das manifestações na Europa, dos protestos brasileiros. De pessoa para pessoa, contornando institucionalidades caducas, a rede vai mediando – e ao mesmo tempo controlando – as formas de vida contemporâneas.

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