Marxismo e intelectuais: notas sobre um afastamento

Fracasso da Revolução Alemã de 1918 abriu uma lenta ruptura, que se ampliaria com a “glaciação stalinista” e o flerte de uma geração de pensadores com o pensamento liberal. Haverá, agora, espaço para reaproximar teoria e prática?

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Por Razmig Keucheyan, no A Terra é Redonda

Por uma geografia da Teoria Crítica

Em Considerações sobre o marxismo ocidental (Boitempo) Perry Anderson mostrou que a derrota da Revolução Alemã nos anos 1918-23 provocou uma mutação significativa no marxismo. Os marxistas da geração clássica tinham duas características principais. Primeiramente, eram historiadores, economistas, sociólogos – isto é, preocupados com as ciências empíricas. Suas publicações eram, principalmente, conjunturais e focadas na atualidade política do momento. Em segundo lugar, eles eram líderes de partidos – isto é, estrategistas enfrentando problemas políticos reais. Carl Schmitt afirmou certa vez que um dos eventos mais importantes da era moderna foi a leitura por Lênin de Clausewitz. A ideia subjacente era a de que ser um intelectual marxista no início do século XX era encontrar-se na vanguarda da organização da classe trabalhadora de seu país. Na verdade, a própria noção de ‘intelectual marxista’ fazia pouco sentido, sendo o substantivo ‘marxista’ autossuficiente.

Essas duas características eram fortemente associadas. É porque eles eram estrategistas políticos que esses pensadores precisavam do conhecimento empírico para tomar decisões. Essa é a famosa “análise concreta de situações concretas” a que se referia Lenin. Por outro lado, seu papel de estrategista nutria suas reflexões com conhecimento empírico de primeira mão. Como escreveu Lenin em 30 de novembro de 1917 em seu posfácio para Estado e Revolução, “é mais agradável e útil atravessar a ‘experiência da revolução’ do que escrever sobre ela”. Nessa fase da história Marxista, a ‘experiência’ e a ‘escrita’ sobre a revolução estavam indissociavelmente ligadas.

O marxismo ‘ocidental’ do período subsequente nasceu do apagamento das relações entre intelectuais/líderes e organizações da classe trabalhadora que existiam no Marxismo clássico. Em meados dos anos 1920, organizações de trabalhadores eram derrotadas por todos os lados. O fracasso da Revolução Alemã de 1923, cujo resultado era tido como crucial para o futuro do movimento dos trabalhadores, deu sinal de parada para as esperanças de qualquer derrubada imediata do capitalismo. O declínio que se instaurou levou o estabelecimento de um novo tipo de relação entre intelectuais/líderes e organizações da classe trabalhadora. Gramsci, Korsch e Lukács foram os primeiros representantes dessa nova configuração. Com Adorno, Sartre, Althusser, Della Volpe, Marcuse e outros, os Marxistas que dominaram os anos 1924-68 possuíam características distintas àquelas daqueles do período precedente. De início, eles não tinham mais relações orgânicas com os movimentos trabalhistas e, em particular, com os partidos Comunistas. Eles não possuíam mais posições de liderança. Nos casos em que eram membros de partidos Comunistas (Althusser, Lukács, Della Volpe), suas relações eram complexas. Formas de ‘companheirismo de viagem’ podem ser observadas, como exemplifica o caso de Sartre na França. Mas uma distância irredutível entre intelectuais e partido persistia. E isso não se atribui necessariamente aos próprios intelectuais: lideranças de partidos Comunistas frequentemente desconfiavam deles.

A ruptura entre intelectuais e organizações da classe trabalhadora, característica ao Marxismo Ocidental, tinha uma causa significativa e uma significativa consequência. A causa era a construção, a partir dos anos 1920, de um Marxismo ortodoxo que representava a doutrina oficial da URSS e seus partidos fraternos. O período clássico do Marxismo foi de intensos debates sobre, em particular, o caráter do imperialismo, a questão nacional, a relação entre o social e o político, e o capital financeiro. A partir da segunda metade dos anos 1920, o Marxismo se fossilizou. Isso colocou os intelectuais em uma posição estruturalmente difícil, pois qualquer inovação no domínio intelectual lhes era, assim, negada. Isso foi uma razão importante para a distância que agora os separava dos partidos da classe trabalhadora. Ela os confrontou com a alternativa entre manter sua aliança ou manter sua distância. Com o tempo, a separação apenas aumentou, sobretudo porque outros fatores a agravaram, como a crescente profissionalização ou academização da atividade intelectual, que tendia a distanciar os intelectuais da política.

Uma consequência notável desta nova configuração foi que os marxistas ocidentais, diferentemente daqueles do período anterior, desenvolveram formas abstratas de conhecimento. Eles eram, na maior parte, filósofos e, frequentemente, estetas ou epistemólogos. Assim como a prática da ciência empírica se atrelou ao fato de que os Marxistas do período clássico tinham papéis de liderança em organizações trabalhistas, o distanciamento de tais papeis promoveu um ‘voo em direção à abstração’. Os Marxistas agora produziam conhecimento hermético, inacessível aos trabalhadores comuns, sobre campos sem qualquer relação direta com a estratégia política. Nesse sentido, o Marxismo Ocidental era não-Clausewitziano.

O caso do Marxismo Ocidental ilustra a forma com a qual desenvolvimentos históricos podem influenciar o conteúdo do pensamento que aspira a fazer história. Mais precisamente, ele demonstra a forma com a qual o tipo de acontecimento que é a derrota política influencia o curso da teoria que o sofreu. O fracasso da revolução Alemã, argumenta Anderson, levou a uma ruptura persistente ruptura entre os partidos Comunistas e os intelectuais revolucionários. Amputando os últimos da tomada de decisões políticas, essa ruptura levou-lhes a produzir análises que eram progressivamente abstratas e menos úteis estrategicamente. O traço interessante do argumento de Anderson é que ele explica de forma convincente a propriedade do conteúdo da doutrina (abstração) por uma propriedade de suas condições sociais de produção.

Partindo disso, a questão agora é determinar a relação entre a derrota sofrida pelos movimentos políticos da segunda metade dos anos 1970 e as teorias críticas atuais. Em outras palavras, ela consiste em examinar a forma com a qual as doutrinas críticas dos anos 1960 e 1970 se ‘mutaram’ em contato com a derrota, ao ponte de dar origem às teorias críticas que emergiram durante os anos 1990. Pode a derrota da segunda metade dos anos 1970 ser comparada com aquela sofrida pelos movimentos dos trabalhadores do começo dos anos 1920? Seus efeitos em doutrinas críticas têm sido similares àqueles experimentados pelo Marxismo depois dos anos 1920 e, em particular, ao “voo em direção à abstração” que lhe é característica?

De uma glaciação à outra

As teorias críticas de hoje são herdeiras do Marxismo Ocidental. Naturalmente, elas não foram influenciadas apenas por ele, pois são o produto de múltiplas conexões, algumas delas alheias ao Marxismo. Tal, por exemplo, é o caso do Nietzscheanismo Francês, particularmente as obras de Foucault e Deleuze. Mas uma das origens principais das novas teorias críticas pode ser encontrada no Marxismo Ocidental, cuja história está intimamente ligada àquela da New Left.

A análise de Anderson demonstra que a distância significativa separando intelectuais críticos das organizações da classe trabalhadora tem um impacto decisivo no tipo de teoria que eles desenvolvem. Quando esses intelectuais são membros das organizações em questão e, a fortiori, quando eles são seus líderes, as limitações da atividade política são claramente visíveis em suas publicações. Elas são significativamente menores quando esse laço se enfraquece, como é o caso do Marxismo Ocidental. Por exemplo, ser um membro do Partido Operário Social-Democrata Russo no começo do século XX envolvia tipos diferentes de obstáculos do que ser parte do comitê científico da ATTAC. No segundo caso, o intelectual em questão tem bastante tempo para seguir uma carreira acadêmica fora de seu engajamento político – algo incompatível com a associação a uma organização da classe trabalhadora na Russia do começo do século XX ou em outro lugar. Obviamente, a academia também mudou – mais precisamente, se massificou – consideravelmente desde a era do Marxismo clássico; e isso tem um impacto na trajetória potencial de intelectuais críticos. Acadêmicos pertenciam a uma categoria social restrita na Europa do final do século XIX. Hoje, eles estão muito mais difundidos, o que influencia de forma manifesta a trajetória intelectual e social dos produtores de teoria. Para entender as novas teorias críticas, é crucial compreender o caráter das associações entre os intelectuais que as elaboram e as organizações do momento. No capítulo 3 proporemos uma tipologia de intelectuais críticos contemporâneos para tratar dessa questão.

Existe uma geografia do pensamento – nessa instância, do pensamento crítico. O Marxismo Clássico era essencialmente produzido por pensadores da Europa Central e do Leste. A stalinização daquela parte do continente vetou desenvolvimentos subsequentes e empurrou o centro de gravidade do Marxismo em direção à Europa Ocidental. Esse é o espaço social no qual a produção intelectual crítica se instalou por meio século. Durante os anos 1980, como resultado da recessão da crítica teórica e política no continente, mas também por causa da atividade dinâmica de polos intelectuais como as revistas New Left Review, Semiotext(e), Telos, New German Critique, Theory and Society e Critical Inquiry, a fonte de crítica gradualmente se deslocou para o mundo Anglo-americano. Teorias críticas vieram se ser mais vigorosas onde anteriormente não eram. Enquanto as antigas regiões de produção continuavam a gerar e exportar autores importantes – basta pensar em Alain Badiou, Jacques Rancière, Toni Negri ou Giorgio Agamben – uma mudança fundamental se deu nos últimos trinta anos, o que está tendendo a relocar a produção de teorias críticas a novas regiões.

É preciso dizer que o clima intelectual deteriorou marcadamente para a Esquerda radical na Europa Ocidental, especialmente na França e na Itália – as terras escolhidas do Marxismo Ocidental – a partir da segunda metade dos anos 1970. Como foi indicado, o Marxismo Ocidental sucedeu o Marxismo clássico quando a glaciação Stalinista atingiu a Europa Central e do Leste. Ainda que diferente em muitos aspectos, uma analogia pode ser estabelecida entre os efeitos dessa glaciação e o que o historiador Michael Scott Christofferson chamou de ‘momento antitotalitário’ na França. A partir da segunda metade dos anos 1970, a França – mas isso também vale para os países vizinhos, especialmente aqueles onde o movimento trabalhador era poderoso – assistiu a uma ofensiva ideológica de larga escala, a qual, em um terreno diferente, acompanhou o avanço do neoliberalismo com a eleição de Thatcher e Reagan, seguidos por aquela de François Mitterand quem, apesar de seu pedigree ‘socialista’, aplicou receitas neoliberais sem remorso. Os movimentos nascidos na segunda metade dos anos 1950 estavam estagnando. O choque inicial do petróleo, em 1972, anunciou tempos economicamente e socialmente difíceis, com o primeiro aumento significativo da taxa de desemprego. O Programa Comum da Esquerda, assinado em 1972 e unindo os partidos Comunista e Socialista, fez a chegada da Esquerda ao poder algo concebível, mas no processo dirigindo sua atividade em direção às instituições, com isso arrancando ela de parte de sua anterior vitalidade.

No front intelectual, The Gulag Archipelago apareceu em tradução francesa em 1974. O hype da mídia em torno de Solzhenitsyn e de outros dissidentes do leste europeu era considerável. Eles não eram defendidos apenas por intelectuais conservadores. Na França, em 1977, uma recepção organizada em homenagem a dissidentes soviéticos reuniu Sartre, Foucault e Deleuze. Outros intelectuais críticos famosos, como Cornelius Castoriadis e Claude Lefort, atingidos pelo hino ‘anti-totalitário’, o último dedicando um livro entitulado Un homme em trop para Solzhenitsyn. É verdade que do Socialisme ou barbarie de 1950 foi uma das primeiras revistas a desenvolver uma crítica sistemática do Stalinismo. O ‘consenso anti-totalitário’ que reinava na França a partir da segunda metade dos anos 1970 se estendeu de Castoriadis, via Tel Quel e Maurice Clavel, para Raymond Aron (obviamente com nuances significativas). Do outro lado do palco, jovens ‘iniciantes’ no campo intelectual da época – os ‘novos filósofos’ – fizeram do ‘anti-totalitarismo’ seu negócio. Mil novecentos e setenta e sete – que escolhemos como o ponto de início do período histórico tratado neste capítulo – testemunhou sua consagração pela mídia. Naquele ano, André Glucksmann e Bernard Henri Lévy publicaram Les maitres penseurs e La Barbarie à visage humain, respectuvamente.

A tese dos ‘novos filósofos’ era de que qualquer projeto de transformação da sociedade levaria ao ‘totalitarismo’’ –  isto é, a regimes baseados no genocídio em massa em que o Estado subjuga todo o corpo social. A acusação de ‘totalitarismo’ foi dirigida não apenas à URSS e aos países do ‘socialismo real’, mas a todo o movimento dos trabalhadores. O empreendimento revisionista de François Furet na historiografia da Revolução Francesa, e sua subsequente análise da ‘paixão comunista’ no século XX, apoiava-se em uma ideia análoga. Durante os anos 1970, alguns ‘novos filósofos’ – muitos dos quais saíram da mesma organização Maoista, a Gauche prolétarienne – retinham algum radicalismo político. Em The Master Thinkers, Glucksmann contrapunha os plebeus ao Estado (totalitário), em acentos libertários que não seriam repudiados pelos autais defensores da ‘multitude’, o que explica de certa forma o apoio que recebeu de Foucault naquela época. Com o passar dos anos, porém, esses pensadores gradualmente se deslocaram para a defesa dos ‘direitos humanos’, das intervenções humanitárias, do liberalismo e da economia de mercado.

No coração da ‘nova filosofia’ havia um argumento sobre teoria. Ele era derivado do pensamento conservador Europeu tradicional, especialmente de Edmund Burke. Glucksmann o encapsulava da seguinte maneira: “Teorizar é terrorizar”. Burke atribuía as consequências catastróficas da Revolução Francesa (o Terror) ao ‘espírito especulativo’ dos filósofos insuficientemente atentivos à complexidade da realidade e a imperfeição da natureza humana. De acordo com Burke, as revoluções são o produto de intelectuais prestes a dar mais importância para as ideias do que para os fatos que passaram pelo ‘teste do tempo’. Em uma via similar, Glucksmann e seus colegas criticavam a tendência na história do pensamento ocidental que alegava compreender a realidade em sua ‘totalidade’ e, nessa base, procurava alterá-la – uma tendência que se remete a Platão e que, via Leibniz e Hegel, gerou Marx e o Marxismo. Karl Popper, é interessante notar, desenvolveu uma tese similar nos anos 1940, em particular em The Open Society and Its Enemies. Como é sabido, Popper é um dos santos patronos do neoliberalismo e seu argumento figura proeminentemente em seu corpus doutrinal até hoje. A assimilação de ‘teorização’ ao ‘terror’ é baseada no seguinte silogismo: entender a realidade em sua totalidade leva ao desejo de subjugá-la; essa ambição inevitavelmente leva ao Gulag. Nessas condições podemos ver por que teorias críticas desertaram seu continente de origem em busca de climas mais favoráveis.

O sucesso dos ‘novos filósofos’ pode ser visto como sintomático. Ele diz muito sobre as mudanças que ocorreram no campo político e intelectual de nosso tempo. Esses foram os anos da renúncia do radicalismo de 1968, do ‘fim das ideologias’, e da substituição dos intelectuais por ‘experts’. A criação, por Alain Minc, Furet, Pierre Rosanvallon e outros em 1982 da Fundação Saint-Simon, a qual (nas palavras de Pierre Nova) reuniu ‘pessoas que têm ideias com pessoas que têm recursos’, simboliza a emergência de um conhecimento do social supostamente livre de ideologia. The End of Ideology, do sociólogo americano Daniel Bell, data de 1960, mas foi apenas durante os anos 80 que esse leitmotif chegou à França e encontrou expressão em todas as áreas da existência social. Na esfera cultural, Jack Lang e Jean-François Bizot – o fundador da Actuel e da Radio Nova – elencam Maio de 68 como uma revolução fracassada mas um festival bem sucedido. No domínio econômico, Bernard Tapie, futuro ministro sob Mitterand, propagandeou a empresa como o campo de todo tipo de criatividade. Na esfera intelectual, o jornal Le Débat, editado por Nora e Marcel Gauchet, publicou sua primeira edição em 1980; em um artigo entitulado “Que peuvent les intelectuels?” Nora aconselhava os últimos a se confinarem em suas áreas de competência e parar de intervir na política.

A atmosfera dos anos 1980 deve ser relacionada às mudanças de ‘infraestrutura’ que afetaram as sociedades industriais depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Uma das mudanças principais foi a importância assumida pela mídia na vida intelectual. Os ‘novos filósofos’ foram a primeira corrente filosófica televisionada. Certamente, Sartre e Foucault também apareciam em entrevistas gravadas naquela época, mas eles teriam existido, assim como suas obras, na ausência da televisão. O mesmo não é verdade para Lévy e Glucksmann. Em vários sentidos, os ‘novos filósofos’ eram produtos da mídia, suas obras – assim como símbolos reconhecíveis como camisas brancas, penteados rebeldes, postura ‘dissidente’ – eram concebidas com as limitações da televisão em mente. A intrusão da mídia no campo intelectual abruptamente alterou as condições de produção de teorias críticas. Ela é um elemento adicional para explicar o clima hostil que se criou na França a partir dos fins dos anos 1970. Assim, um dos países onde teorias críticas mais tinham prosperado no período anterior – com contribuições de Althusser, Lefebvre, Foucault, Deleuze, Bordieu, Barthes e Lyotard em particular – viu sua tradição intelectual minguar. Alguns desses autores continuaram produzindo trabalhos importantes durante os anos 1980. Mille Plateaux de Deleuze e Guatarri apareceu em 1980, Le Différend de Lyotard em 1983, e L’Usage des plaisirs de Foucault em 1984. Mas o pensamento crítico francês perdeu a capacidade de inovação que outrora possuíra. Uma glaciação teórica se instaurou, da qual, em alguns sentidos, ainda temos de emergir.

O fenômeno dos ‘novos filósofos’ é decerto tipicamente francês, especialmente porque o perfil sociológico de seus protagonistas está intimamente atrelado ao sistema francês de reprodução das elites. Mas a tendência geral de abandono das ideias de 1968, notável a partir da segunda metade dos anos 1970, é internacionalmente visível, mesmo que ele assuma formas diferentes em cada país. Um caso fascinante, que ainda espera por um estudo aprofundado, é o do italiano Lucio Colletti. Colletti foi um dos filósofos Marxistas mais inovadores dos anos 1960 e 70. Membro do Partido Comunista Italiano desde 1950, ele decidiu deixá-lo na ocasião da insurreição de Budapeste em 1956, que (como vimos) foi a ocasião para diversos intelectuais romperem com o movimento Comunista (ainda que ele não tivesse oficializado sua partida até 1964). Ele se tornou progressivamente crítico do Stalinismo. Assim como Althusser na França (com quem ele correspondia e por quem tinha grande consideração), e sob a influência de seu mestre Galvano Della Volpe, Colletti defendeu a ideia de que o rompimento realizado por Marx com Hegel era mais profundo do que comumente se pensava. Essa tese é desenvolvida, em particular, em Marxism and Hegel, um de seus trabalhos mais conhecidos. Outro de seus trabalhos influentes foi From Rousseau to Lenin, que atesta a importância do materialismo de Lenin para seu pensamento.

A partir de meados da década de 1970, Colletti mostrou-se cada vez mais crítico do Marxismo e, especialmente, do Marxismo Ocidental, do qual ele era um dos representantes e teóricos chefe. Em uma entrevista publicada naquela época, falando com um tom pessimista que prenunciava sua subsequente evolução, ele declarou:“O Marxismo só poderá ser revivido se livros como Marxismo e Hegel não forem mais publicados, e, em vez disso, livros como Capital Financeiro de Hilferding e A acumulação do capital de Rosa Luxemburgo – ou até mesmo Imperialismo de Lenin, que foi um panfleto popular – forem escritos outra vez. Em suma, ou o Marxismo tem a capacidade – eu certamente não tenho – de produzir naquele nível, ou ele sobreviverá apenas como uma deficiência de alguns poucos professores universitários. Mas, nesse caso, ele estará bem e verdadeiramente morto, e os professores podem muito bem inventar um novo nome para seu clero.”

De acordo com Colletti, ou o Marxismo é bem-sucedido em reconciliar teoria e prática, e assim reparar a ruptura provocada pelo fracasso da revolução Alemã à qual nos referimos, ou ele não existe mais como Marxismo. Para ele, o ‘Marxismo Ocidental’ era, portanto, uma impossibilidade lógica. Nos anos 1980, Colletti se deslocou para o Partido Socialista Italiano, dirigido, naquela época, por Bettino Craxi, cujo grau de corrupção cresceu vertiginosamente com o passar dos anos. Nos anos 1990, em uma virada trágica à direita, ele aderiu ao Forza Italia, partido recentemente criado por Silvio Berlusconi, e tornou-se senador pelo partido em 1996. Na ocasião da morte de Colletti, em 2001, Berlusconi saudou a coragem que ele demonstrou ao rejeitar a ideologia Comunista e relembrou de suas atividades e seu papel no Forza Italia.

Do outro lado do mundo, uma evolução similar caracterizou os ‘Gramscianos argentinos’. As ideias de Gramsci entraram rapidamente em circulação na Argentina, em virtude da proximidade cultural entre ela e a Itália, mas também porque seus conceitos eram particularmente úteis para explicar o altamente original e tipicamente argentino fenômeno político do Peronismo (por exemplo, a noção de ‘revolução passiva’). Um grupo de jovens intelectuais provenientes do Partido Comunista Argentino, liderados por José Aricó e Juan Carlos Portantiero, fundaram a revista Pasado y Presente em 1963, aludindo a uma série de fragmentos dos Cadernos do Cárcere que portam esse título. Interessantemente, dez anos antes (1952), uma revista de mesmo nome Past and Present, foi criada no Reino Unido no entorno de historiadores marxistas como Eric Hobsbawn, Christopher Hill e Rodney Hilton. Assim como viria a acontecer com os revolucionários latino-americanos daqueles anos, os Gramscianos argentinos foram influenciados pela Revolução Cubana (1959), a hibridização da obra de Gramsci e aquele evento provocaram desenvolvimentos teóricos de grande fertilidade. Naquela época, a revista também serviu como interface entre a Argentina e o mundo, traduzindo e publicando autores como Fanon, Bettelheim, Mao, Guevara, Sartre e representantes da Escola de Frankfurt.

No começo dos anos 1970, quando a luta de classes passou por uma virada violenta na Argentina, Aricò e seu grupo se deslocaram em direção à esquerda Peronista revolucionária, particularmente para as guerrilhas Montoneras, que eram uma espécie de síntese de Perón e Guevara. A revista procurou refletir questões estratégicas enfrentadas pelo movimento revolucionário, no que dizia respeito às condições da luta armada, do imperialismo e o caráter das classes dominantes argentinas. Com o golpe de Estado de 1976, Aricò foi forçado a se exilar no México, assim como muitos Marxistas latino-americanos de sua geração. A partir disso, sua trajetória, assim como a de seus colegas, consistiu em um deslocamento gradual em direção ao centro. Para começar, eles proclamaram seu apoio à ofensiva argentina nas guerras Malvinas em 1982. Alguns deles, incluindo o filósofo Emilio de Ipola, teriam uma visão retrospectiva bastante crítica sobre isso. Defensores ardentes de Felipe Gonzales e do PSOE espanhol nos anos 80, eles terminaram defendendo o primeiro presidente democraticamente eleito após a queda da ditadura argentina, o radical (de centro-direita) Raúl Alfonsín. Eles foram parte do grupo especial de conselheiros do último; o grupo era conhecido como ‘Grupo Esmeralda’ e teorizava a ideia de ‘pacto democrático’. Seu apoio a Alfonsin se estendeu à adoção do que era, de certa forma, uma atitude ambígua em relação às odiosas Leyes de Obediencia y Punto Final anistiando os crimes da ditadura, que o Presidente Nestor Kirchner iria abrogar na primeira década dos anos 2000.

Podemos multiplicar o número de exemplos de deslocamentos de intelectuais para a direita. A virada neoliberal da China promovida por Deng Xiaoping nos fins dos anos 1980 teve um impacto marcante no pensamento crítico chinês, levando à apropriação (ou reapropriação) da tradição liberal ocidental por setores significativos da intelligentsia, e a adaptação dos debates sobre a teoria da justiça de John Rawls. Outro caso similar é aquele dos neo-conservadores norte-americanos – dentre eles Irving Kristol, frequentemente apresentado como o ‘padrinho do neo-conservadorismo’ – que surgiu da esquerda não-stalinista. Um documento instrutivo em relação a isso é ‘Memoirs of a Trotskyst’ publicado por Kristol no New York Times.

Novamente, não é questão de afirmar que esses autores ou essas correntes são idênticos. Os novos filósofos, Colletti e os Gramscianos Argentinos são intelectuais de calibre muito diferente; Marxistas inovadores como Colletti e Aricò não podem, obviamente, ser colocados no mesmo nível de impostores como Lévy. Suas trajetórias intelectuais são profundamente explicadas pelos contextos nacionais em que ocorreram. Ao mesmo tempo, eles também são a expressão de um movimento para a direita de antigos intelectuais revolucionários que pode ser identificado em uma escala internacional.

A conclusão a ser tirada disso é a de que a segunda metade dos anos 1970 e os anos 1980 foram um período de mudanças abruptas na geografia do pensamento crítico. Foi nesse momento que as coordenadas políticas e intelectuais de um novo período foram gradualmente fixadas.

Razmig Keucheyan é sociólogo e professor no centro Émile-Durkheim da Universidade de Bordaux.

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