Ataques em escolas: o desafio de romper as redes de ódio

Pesquisadores mapeiam extremistas: eles cooptam jovens psiquicamente frágeis oferecendo um poder vingativo, exercido pelo medo e símbolos nazistas. A solução virá com estratégias preventivas, inclusive pela regulação das redes sociais

Imagem: Niv Bavarsky/The Atlantic
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Por Luciano Velleda no Sul 21

Os últimos dias foram de ameaças e pânico para comunidades escolares de todo o Brasil. Desde o ataque na Escola Estadual Thomazia Montoro, na capital paulista, dia 27 de março, seguido por outro realizado numa creche em Blumenau, dia 4 de abril, as redes sociais e os telefones celulares de pais e alunos foram invadidos por uma enxurrada de ameaças de novos atos de violência.

Como previsto, o medo se alastrou rapidamente, com escolas anunciando providências, estudantes não querendo ir à aula, pais temerosos e governantes correndo para adotar medidas de segurança como forma de mostrar alguma resposta possível.     

Especialista em monitoramento online de grupos de extrema direita desde 2012, Letícia Oliveira explica que as ameaças que começaram a circular após o ataque em Blumenau têm uma lógica diferente daquela protagonizada pelos grupos de adolescentes normalmente monitorados. O volume de ameaças surgidos na semana passada indica que não se trata de adolescente reunidos num fandom de internet, como de costume. O monitoramento mostra que as ameaças partiram do Rio de Janeiro e então se espalharam por vários estados do País, com a curiosa característica de repetirem duas imagens extraídas da mesma fonte: o Pinterest.

Os meses de março e abril são conhecidos por quem estuda o tema dos ataques em escolas. O massacre de Suzano aconteceu no começo de março de 2019, o de Realengo em abril de 2011, e o de Columbine, nos Estados Unidos, justamente no dia 20 de abril de 1999 – o mesmo dia 20 transformado em ameaça agora.

“São datas ‘comemorativas’ para essas comunidades que a gente monitora”, explica Leticia.

Aproveitando-se do conhecido período, a pesquisadora avalia que as ameaças recentes foram feitas de forma coordenada (o que foge do padrão dos grupos monitorados) com o objetivo de criar pânico. As ameaças chegaram também nas universidades, se utilizando de duas imagens de pichações feitas na Universidade Paulista (UNIP) do bairro de Tatuapé, na capital paulista. Ambas as pichações fazem ameaças de morte, enaltecem Hitler e incluem até hashtag.

Leticia explica que embora a onda de ameaças que se espalhou pelo Brasil nos últimos dias fuja do padrão dos grupos de adolescentes conhecidos, ela pode servir como uma espécie de “chamado à ação”, ou seja, um estímulo aos jovens que já exaltam atiradores de escolas. “Apesar de não serem eles os responsáveis, eles estão sendo incentivados por essas ameaças.”

Há 11 anos monitorando grupos de extrema direita na internet, a editora do site El Coiote participou do relatório “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental”, elaborado em dezembro de 2022 pela área de educação do governo de transição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva

Entre os muitos grupos monitorados pela especialista em extrema direita, está um no Twitter e no Tik Tok que cultua atiradores de escola, um fandom de adolescentes, meninos e meninas. Os mais admirados são os atiradores de Columbine, nos Estados Unidos, e os de Suzano.

Desde o ano passado, seis membros dessa comunidade foram presos por atentados ou tentativas de ataques em escolas. Alguns usavam em seu perfil o nome do atirador de Suzano ou seu apelido em rede social (nickname). No Brasil, os casos cresceram desde o retorno das aulas presencias em 2022, após a pandemia. Ao todo, o País registra 24 ataques em 20 anos.

Últimos ataques causaram medo e busca por medidas de segurança nas escolas. Foto: Luiza Castro/Sul21

Ação na crise

Ari Gomes Pereira Júnior, psicólogo do Centro de Apoio Transdisciplinar, serviço que oferece suporte à rede municipal de educação de Capão da Canoa, observa que as duas tragédias recentes criaram um ambiente de crise e trauma. O efeito imediato é o que chama de “redução do horizonte de planejamento da vida”.

“Neste momento, estamos no período pós-traumático. Houve um evento que atingiu uma escola especificamente, mas atingiu também todas as escolas e toda a sociedade”, avalia.

O psicólogo explica que, no momento de crise, “fazer alguma coisa” é uma necessidade para mostrar que providências estão sendo tomadas. É o caso dos governadores, incluindo Eduardo Leite (PSDB) no Rio Grande do Sul, que se apressaram em anunciar aumento de policiamento diante das escolas. Para ele, todavia, o melhor caminho a seguir é trabalhar na lógica da prevenção.

Ao ver a preocupação das escolas, pais e alunos, sendo noticiadas na mídia, o psicólogo diz pensar no prazer que tal sentimento deve causar em quem se alimenta da lógica do medo. “Mais do que o ato em si, é o efeito que ele gera, coletivamente, na experiência do medo. É disso que essas ideologias se alimentam, propõem o medo como forma de gerir a sociedade, que é o modo da vigilância”, afirma.

Ele então comenta que o modo de garantir a segurança usado pelos governantes é justamente a vigilância e o uso da força, por meio do “temor” da figura da autoridade armada nas escolas. No momento da crise e do trauma, como o vivido agora após os dois últimos ataques, o reforço de segurança nas escolas pode até ser benéfico para passar tranquilidade à comunidade escolar. A longo prazo, entretanto, a medida já se mostrou ineficaz nos Estados Unidos.

“O momento agora é de suportar a ansiedade, o medo, tendo atenção para não alimentar esse medo. E que a gente não confunda vingança com justiça”, pondera.

O jovem invisível

A cada novo ataque realizado no Brasil, o perfil do agressor se revela semelhante: jovem, homem, com poucos amigos, comportamento antissocial, histórico de bullying, ligado a grupos de internet que pregam discurso de ódio.

Professor de Psicologia da Educação na Faculdade de Educação da UFRGS, Rodrigo Lages e Silva destaca que o comportamento dito antissocial é algo comum na adolescência, fase da vida em que muitas coisas novas surgem e precisam ser elaboradas. Apesar do comportamento mais ou menos esperado, ele pondera que o importante neste período é o silêncio do adolescente estar envolto numa atmosfera de confiança, um ambiente confortável e com vínculos que lhe permitam se integrar novamente quando a fase passar. A sensação de instabilidade dos tempos atuais, ele explica, é um ingrediente que dificulta ainda mais os sentimentos dos jovens.

“Os adolescentes hoje não sabem se vão ter futuro. É um grande desafio no mundo atual. Ele não sabe se vai ter o dia de amanhã, então é muito mais intenso o mergulho pra dentro de si”, afirma.

Sobre o papel da escola diante da cruel realidade de ameaças, acredita que a instituição bem sucedida é aquela com integração comunitária, cultural, com festas, que abre no final de semana para uso do espaço escolar e que envolve a família. “Mesmo o adolescente calado, com raiva do mundo, que está fazendo seu mergulho emocional, envolto numa atmosfera como essa tem um prognóstico melhor”, sugere.

Por sua vez, Pereira Júnior chama atenção para aquele adolescente que se fecha dentro de si e “não é visto” na escola, nem dentro de casa, embora pondere ser pouco provável haver um comportamento que não seja realmente percebido dentro de casa. Como exemplo, cita sinais sobre o que o jovem gosta de fazer, o que o diverte e o que o entristece, formas de comunicação que muitas vezes mostram que algo não está bem. São como sintomas. Em alguns casos, revelam o que o jovem pensa ou imagina e isto precisa ser visto pelos responsáveis.

Quando a ameaça se transforma em ato, explica o psicólogo, ela também comunica algo, que pode ser contra a escola ou alguém. É como se o agressor dissesse: “O sofrimento que eu experimento, vocês também vão experimentar”.

Quem me suporta? Quem me contém? Quem se importa com o que eu falo? São elementos que Pereira Júnior acredita estarem por trás dos atos de violência praticados por jovens.

Ele ainda pondera que os atos de violência praticados contra as escolas comunicam alguma coisa que é experimentada individual ou coletivamente (como as ideologias de extrema direita). E alimentar o medo na sociedade, portanto, faz parte do contexto desejado.

Para o psicólogo que atua diretamente com uma rede municipal de ensino, o fato dos agressores serem normalmente meninos é um ponto a ser observado. Para ele, os fatores que levam esses jovens a cometerem atentados contra escolas são variados. O machismo é um deles, com a ideia da masculinidade que se expressa pela violência. Outro ponto é o modo como homens e mulheres administram suas frustrações. Enquanto  homens lidam com suas frustrações “mais para fora”, mulheres se voltam “mais para dentro” de si.

“Ou eu direciono (a frustração) para algo distante de mim ou para mim”, explica. “Se sofro, alguém tem que sofrer igual a mim”, diz, se referindo à expressão da frustração por parte dos homens.

Especialistas apontam várias razões para as escolas terem se tornado alvo de ataques. Foto: Luiza Castro/Sul21

A escola como alvo

Sem querer idealizar a instituição, o psicólogo do Centro de Apoio Transdisciplinar de Capão da Canoa, analisa a escola como o local que “descola” cada um de nós da sua origem, fazendo com que outro tipo de regulação seja criado. Nesse sentido, é a escola que apresenta para cada indivíduo um mundo novo para além do ambiente familiar, permitindo se “desligar” da origem.

“Esses ataques têm a ver com a dificuldade de romper com o elemento tóxico da tradição. A escola é vista como ameaça quando ela é pensada como promotora de autonomia, a capacidade das próprias crianças nomearem coisas, o que pensam, o que gostam, pela própria experiência e não pela experiência da tradição. Por isso a escola não se torna alvo por acaso, ela traz esse momento onde o contrato social obrigatoriamente se insere”, explica Pereira Júnior.

Não à toa, em certos casos a escola tem sido vista como um ambiente que atrapalha e corrompe os valores da família, que por sua vez se julga no direito de impor seus valores aos descendentes sem contestação.

Já o professor de Educação da UFRGS destaca que os autores destes crimes têm problemas de saúde mental e isso não pode ser afastado do debate. Porém, pondera que casos de psicopatia costumavam ter como foco a família e não a escola. Para Lages, a doença psíquica é a mesma, mas sua expressão e o local onde ela é dirigida tem sido alterado influenciado por questões políticas.

“Hoje, a figura da autoridade está colocada na escola, talvez o último espaço público que temos em que se garante diversidade”, avalia. “A escola antigamente era uma instituição muito violenta em termos de racismo, misoginia, homofobia, e houve um processo de maturidade, de evolução cultural para impedir esses comportamentos na escola.”

Com as mudanças em curso, Lages acredita que o espaço escolar mais plural tem deixado alguns jovens desconfortáveis por não ocupar mais o lugar de privilégio que havia antes. “São pessoas que não têm condições de lidar com essa diferença”, afirma.

Para os autores do relatório “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental”, os agressores tornam-se violentos em processo de cooptação pela extrema direita e procuram a escola com o desejo condicionado por associarem-na às condições de exposição ao bullying e outras situações de violência.

Assim, a opção por invadir uma escola não é mera coincidência ou fruto de escolha aleatória. As motivações incluem ódio às maiorias minorizadas e aproximação ideológica a teorias nazistas e fascistas.

“Não se revela incomum, o fato de ex-alunos ou alunos de instituições escolares, tornarem essas instituições o local para atentados em massa, muitas vezes, motivados por sentimentos de exclusão e vingança, ligados diretamente à violência do bullying”, diz trecho do relatório.

Discurso de extrema direita na internet atrai cada vez mais jovens. Foto: Luiza Castro/Sul21

Fenômeno em rede

Os ataques às escolas estão relacionados com o surgimento de novos atores da política mundial. Ao menos é nisto que o professor de Educação da UFRGS acredita. Para ele, os atos terroristas nas escolas são uma reação ao surgimento e o protagonismo de reivindicações de grupos até então à margem na sociedade, as chamadas pautas identitárias.

“Entendo ser indissociável esses atos bárbaros como reação à essas forças”, afirma Lages, enfatizando que nossa sociedade não está preparada para compreender esses eventos devido ao modo como se costuma lidar com a violência.

Para explicar seu ponto de vista, o professor pondera que a tendência da nossa sociedade é individualizar a conduta da pessoa, trazendo à tona a relação dela com a família e com a escola. No entanto, ele vê a questão de modo diferente e questiona por que ataques semelhantes não costumam acontecer na Argentina, Uruguai, Venezuela ou Colômbia, citando alguns países sulamericanos, ou mesmo na maioria dos países da Europa – os que ocorreram na Finlândia ou Noruega tiveram motivações de fundo religioso.

Para Lages, o Brasil sofre de “colonialismo cultural dos Estados Unidos”, uma grande influência que não ocorre com a mesma força em outros países latinos. Enquanto nos anos de 1980 e 1990, tal influência cultural se deu muito pelo acesso ao cinema americano, o professor de Educação da UFRGS analisa que agora se vive um momento em que a influência se dá pela política dos Estados Unidos e a radicalização da extrema direita.

Neste segundo momento, as redes sociais organizadas pelas grandes empresas de tecnologia cumprem importante papel na propagação de ideias extremistas, aliadas ao culto à arma e à cultura de “perdedores e vencedores” – o conceito de “losers” da sociedade americana.

“As redes sociais deram características mais tensas para situações que são normais da vida”, diz, se referindo às frustrações que todo indivíduo tem. “As redes sociais pulverizaram essa mentalidade fomentada nos Estados Unidos para o resto do mundo, só que o Brasil sofre muita influência (dos EUA), mais do que outros lugares.

A avaliação do professor da UFRGS vai ao encontro do que também pensa a especialista em extrema direita Letícia Oliveira. A pesquisadora diz haver ligação direta do crescimento político da extrema direita no Brasil e no mundo com os discursos propagados nas redes sociais.

“O Brasil só está acompanhando uma tendência que é mundial. Grupos identitários de extrema direita na Europa, assim como o Alt-Right, nos Estados Unidos, começaram a se engajar politicamente pela internet e a crescer assim. Durante muito tempo quem dominou a comunicação política na internet foi a esquerda, só que com a saída dos blogs e dos coletivos midiáticos, as redes sociais e os grupos de extrema direita tomaram conta”, explica a editora do site El Coiote.

Especialistas apontam uma séria de medidas na área da educação, da psicologia e da legislação para enfrentar o problema da violência nas escolas. Foto: Luiza Castro/Sul21

Leticia avalia que o crescimento da extrema direita no mundo começou após a crise econômica de 2008. No Brasil, diz que o ponto da virada foram os atos de junho de 2013 e, na Europa, vê como momento chave o movimento “Euro maidan”, na Ucrânia, em 2014, que começou como um levante popular mas em poucos dias, ela afirma, estava tomado por nazistas. Na sequência, a saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit) e a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, foram os eventos mais importantes para evidenciar o crescimento da extrema direita no mundo.

A pesquisadora destaca que o compartilhamento de material nazista no Brasil é crime e que, antigamente, ter acesso a esse tipo de conteúdo era bem mais difícil. Como a extrema direita atualmente está com mais poder político, os adeptos da ideologia nazista não precisam mais se esconder e isso facilita o acesso de adolescentes a esse tipo de material. Não só facilita, como incentiva – e neste sentido, o período de confinamento imposto pela pandemia de covid-19 deixou os jovens ainda mais conectados na internet.

Há 11 anos monitorando grupos de extrema direita no Brasil, ela afirma que a principal mudança ocorrida no período deve-se aos algoritmos das redes sociais.

“Hoje a gente sabe que os algoritmos privilegiam o discurso de ódio. A extrema direita cresceu muito nos últimos anos na internet justamente por causa disso. O algoritmo não é uma entidade onipresente, ele tem um viés do desenvolvedor.  Às vezes nem é proposital, mas eles têm como saber que que isso vai sendo enviesado. Hoje, discursos de nazismo e fascismo estão no mainstream. São discursos que dão mais engajamento e, consequentemente, mais dinheiro”, explica Leticia.

“Essa mudança foi essencial para que esse tipo de discurso, que antes ficava restrito a certos nichos, a deep web, hoje esteja tudo na ‘superfície’. Discurso nazista com alusão a Hitler e Mussolini, livros, material que ensina a fazer bomba, a fazer armas em impressora 3D, isso tudo se acha fácil no Telegram, por exemplo.”

Devido ao contexto de grande influência das redes sociais sobre os jovens, a editora do site El Coiote acredita que a regulação das redes sociais é um dos caminhos para lidar com o problema, tendo em vista que o conteúdo que estimula ataques em escolas circula em plataformas como o Telegram e o Twitter sem qualquer moderação.

Enquanto não avança no Congresso um projeto de lei sobre a regulação das redes sociais, ela elogia a portaria do Ministério da Justiça sobre a moderação de conteúdo exclusivamente com referência aos ataque em escolas. Desde os últimos dois ataques, o governo federal iniciou uma articulação, com grande resistência inicial do Twitter, para que sejam retirados das redes sociais os perfis que estimulam e enaltecem ataques em escolas.

“É um começo importante”, acredita Letícia.

O relatório elaborado pelo governo de transição propõe ainda outras ações para o combate ao extremismo de extrema direita no Brasil: o desarmamento da população civil; a criação de redes de inteligência entre agências de investigação das Polícias Civis dos Estados e da Polícia Federal para monitoramento de grupos extremistas; e a responsabilização criminal para lideranças de grupos extremistas.

O relatório sugere ainda a alteração da Lei dos Crimes de Discriminação e Ódio Racial no que se refere “à fabricação, comercialização, distribuição e veiculação de símbolos, emblemas, distintivos ou propaganda de teor supremacista que não necessariamente façam uso da cruz suástica ou gamada, tal como menciona a lei”.

Por fim, o documento sugere a inserção dos crimes de ódio e da violência extremista de direita contra escolas nos paradigmas da Justiça Restaurativa. Conforme o Conselho Nacional de Justiça, a Justiça Restaurativa é “um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato”.

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