Chile: por que a ultradireita venceu 

Voto dos desencantados foi decisivo – e a esquerda o perdeu, ao abandonar as pautas das maiorias. Pinochetistas terão maior bancada na Constituinte, mas ainda há brechas: sentimento de mudança não se extinguiu, o desafio será reconquistá-lo

Gabriel Boric, presidente do Chile. Imagem: Cristobal Escobar/AgenciaUno
.

Por Tomás Leighton e José Acevedo, no Nuso | Tradução: Rôney Rodrigues

Há algum tempo, o Chile voltou a ocupar um lugar especial no coração do progressismo mundial. Em 2019, os protestos sociais contra o neoliberalismo geraram um processo democrático com objetivo virar a página da Constituição imposta pela ditadura de Augusto Pinochet em 1980. Em 2021, Gabriel Boric, um ex-líder estudantil de 36 anos, foi eleito presidente, iniciando o que alguns apontavam como uma nova onda de governos progressistas na América Latina.

No entanto, em setembro passado, a população rechaçou maciçamente nas urnas o texto constitucional que pretendia substituir a antiga Constituição, obrigando os partidos a iniciar um novo processo – e mais tutelado que o anterior. E isso seria apenas o prelúdio: nas eleições para o novo Conselho Constitucional, realizadas neste 7 de maio, a extrema direita, representada pelo Partido Republicano (PR) de José Antonio Kast, obteve 35,41% dos votos. Desta forma, ultrapassou a direita tradicional (21,1%) e derrotou o oficialismo progressista (que concorria em listas separadas, um erro que demorará muito para ser admitido e reparado). Além disso, o PR conseguiu para si o poder de veto e, juntamente com a direita tradicional, obteve representação de dois terços para vetar qualquer modificação que a comissão de especialistas sugerir ao projeto da nova Constituição.

Tudo isso dificulta extremamente qualquer acordo entre a esquerda e a direita tradicional (quem diria que essa possibilidade seria ansiada!). Ainda que os resultados inevitavelmente dinamitassem a postura negociadora do governo para levar a cabo um programa já emparedado pela falta de maioria parlamentar, o certo é que a maioria de extrema direita no Conselho Constitucional não tem um caminho garantido para vencer nas próximas eleições presidenciais. Na realidade, os tempos das “identidades negativas” e o rechaço de tudo o que cheire ao poder vem mostrando justamente o contrário: sem experiência e disposta a liderar um processo com expectativas que não poderão cumprir, a extrema direita pode enfrentar um processo de degradação, assim como a esquerda teve o seu com a primeira Convenção Constitucional.

Idas e vindas constituintes

Embora ainda seja muito cedo para tirar conclusões sobre o comportamento eleitoral, há várias questões a serem mencionadas. Em primeiro lugar, a introdução do voto obrigatório desde o ano passado estabilizou uma elevada percentagem de participação que muda completamente o mapa eleitoral. Se em 2022 a participação foi de 86%, desta vez foi de quase 85%. Parece que o desinteresse dos cidadãos pelo atual processo constituinte, ao invés de se transformar em abstenção, tem se manifestado em votos nulos e branco: estes somaram 21,54% do total. Por outro lado, os eleitores que não tinham ido às urnas anteriormente (nem no primeiro processo constituinte nem na eleição do presidente Boric, quando o voto ainda era facultativo), desta vez, com o voto obrigatório, optaram pela extrema direita.

Se isso significará uma expansão da penetração cultural do conservadorismo no Chile, dependerá se o PR manterá seus bons resultados ao longo do tempo. Mas, por ora, três aspectos podem ser depreendidos. O primeiro é que a votação pela rechaço no último plebiscito é semelhante ao percentual de apoio à oposição: 62%. Segundo: o centro político finalmente desmoronou depois que a aliança entre a Democracia Cristã e o Partido para a Democracia (PPD, do ex-presidente Ricardo Lagos), batizado Todo por Chile, decidiu abandonar o bloco oficialista e não obteve nenhuma cadeira. Terceiro, e talvez o mais importante: parece que a extrema direita está aproveitando temporariamente um voto de repúdio ao establishment político que não é muito diferente daquele que mobilizou os eleitores da nova esquerda chilena nos últimos tempos. Como já aconteceu em outros países, as eleições estão sendo definidas pelas chamadas “identidades negativas” e quem ganha as eleições vê seu poder diluído em um piscar de olhos.

Agora, para entender com mais precisão aquilo que os chilenos agora estão punindo, é preciso resgatar a série de idas e vindas constituintes das quais deriva o processo atual. A persistência do problema constitucional chileno reside no fato de que, apesar das múltiplas reformas que a Constituição de 1980 teve, ela não se desenvolve como um pacto fundador da comunidade política nem serve de base para resolver as diferenças entre os cidadãos. Além de sua herança ditatorial, o texto degradou ainda mais sua legitimidade ao bloquear reformas que pudessem alterar o caráter subsidiário do Estado.

Após a eclosão social de outubro de 2019, o mundo acreditou que tudo isso ficaria para trás com a Convenção Constitucional e suas inovações democráticas sem precedentes em termos de paridade de gênero e proteção ambiental. No entanto, o projeto foi fortemente rejeitado por quase 62% dos eleitores em todas as regiões do país. Embora alguns ainda culpem a campanha de desinformação conservadora, a verdade é que ela só pôde ter sucesso devido a um erro estratégico e também ideológico da esquerda: a redação de uma Constituição confundiu-se com a implantação e materialização de um programa inovador de governo progressista. O problema estrutural com a ratificação de novas Constituições por referendo é que quanto mais longo o texto, mais motivos os eleitores têm para rejeitá-lo. No caso do Chile, por exemplo, grande parte dos novos eleitores de setores populares interpretou a “plurinacionalidade” como um ataque à sua identidade patriótica.

Com o projeto anterior rejeitado, o Congresso Nacional lançou um novo processo muito mais limitado pelo poder constituído. Embora tenha sido um balde de água fria para as expectativas da esquerda, qualquer outra coisa teria dado armas à direita. Assim como na Convenção, o novo órgão estabelecia quóruns de contramaioria, em particular de três quintos em uma assembleia de 51 representantes eleitos (o acordo original previa 50 cadeiras, às quais seriam acrescentadas as cotas indígenas caso se obtivesse 1,5% do total de votos do país em uma votação separada. Este foi o caso de Alihuén Antileo, eleito por essa cota). E, como aconteceu antes com a direita, a escassa representação da centro-esquerda no atual processo faz com que os quóruns não cumpram seu objetivo de fazer avançar os pactos. Além disso, a direita tinha três reivindicações: 12 bases institucionais intocáveis durante o processo (como a impossibilidade de eliminar o Senado, e a menção explícita à existência das Forças Armadas e dos Carabineiros na Constituição, dois pontos polêmicos na última Convenção), uma comissão de especialistas composta proporcionalmente pelas forças representadas no Congresso e um comitê de árbitros para garantir a proteção do poder constituinte. O primeiro paradoxo é que, com resultados eleitorais favoráveis à extrema direita, na melhor das hipóteses esses contornos conferem certo grau de influência à esquerda (e não mais aos conservadores) e, na pior, os tornam irrelevantes. O segundo paradoxo eleitoral é que um partido como o PR, que defende a continuidade da Constituição de 1980, ficou encarregado da mudança constitucional.

A surpresa da extrema direita

A mudança na hegemonia da direita chilena é total. A partir de hoje, José Antonio Kast não é apenas o ex-candidato presidencial da direita que obteve 44% dos votos no segundo turno de 2021, pois seu partido acaba de somar mais que o dobro de representantes das forças clássicas da direita, entre elas a Renovação Nacional (do ex-presidente Sebastián Piñera) e a União Democrática Independente (UDI, fundada por Jaime Guzmán, um dos ideólogos da ditadura).

A imprensa internacional catalogou Kast como a simples adaptação chilena de populistas como Donald Trump ou Jair Bolsonaro, o que faz sentido considerando as conexões do PR com as principais organizações de extrema direita do mundo. No nível discursivo, Kast apela desde 2017 para os perigos vividos quanto aos valores da família tradicional e a estabilidade econômica. A ameaça? A clássica rede de conspiração de inimigos coordenados: esquerda, operadores políticos, “ideologia de gênero” e imigrantes. Nada muito diferente do discurso da alt-right que está crescendo no resto do mundo.

Desde que Boric foi eleito em 2022, o contexto econômico, a crise migratória e a crise de segurança (particularmente com o forte crescimento de crimes de elevada repercussão na sociedade) não só suscitaram uma reação contra o governo, como revigoraram discursos como o dos Republicanos, que passaram a ser vistos como forasteiros que vem para usar uma “mão forte” contra a delinquência. Com efeito, toda a campanha eleitoral para o novo Conselho Constitucional foi marcada por mensagens sobre a falta de controle em questões de segurança pública que pouco tinham a ver com a Constituição, mas foram usadas pelo PR para se antagonizar ao partido no poder.

Ora, será que José Antonio Kast é mesmo um outsider? Ao contrário de alguns de seus pares internacionais, Kast é um político de longa data que ocupou cargos públicos desde 1996 e, até sua primeira campanha presidencial em 2017, sempre concorreu à UDI. Em particular, Kast vem do coração de uma das culturas políticas mais tradicionais da direita chilena. Quando estudava direito na Universidade Católica, Jaime Guzmán foi seu tutor e assim se tornou militante do Movimento Gremial, grupo corporativista e religioso, que mais tarde se tornaria a semente do partido. Por outro lado, seu irmão, Miguel Kast, era um garoto de Chicago treinado por Milton Friedman que, mais tarde, se tornou ministro de Pinochet. Justamente quando Guzmán e Miguel Kast iam fundar a UDI, este faleceu, de modo que a figura de José Antonio passou a ocupar um papel simbólico fundacional que se reflete em inúmeros discursos e homenagens.

Tudo isso é extremamente relevante para intuir a forma como Kast e os Republicanos tentarão conduzir seu grupo no Conselho Constitucional. Continuarão a antagonizar o resto dos partidos agora que precisarão liderar? O atual presidente da UDI, Javier Macaya, mostrou-se confiante de que isso mudaria quando afirmou que “quase 90% dos Republicanos eleitos vêm da UDI”. Embora não saibamos qual o papel que Kast escolherá desempenhar até o fim do processo, ele pode apresentar algumas diferenças em relação ao roteiro do populismo de direita em outras latitudes.

Progressismo chileno: e agora?

O Chile elegeu o presidente mais esquerdista desde a volta da democracia no país, mas, ao mesmo tempo, votou em um Congresso majoritariamente de direita. Tal foi o alvoroço desencadeado pelo primeiro, talvez intensificado pelas expectativas iniciais do processo constituinte, que a esquerda cometeu um erro estratégico: esqueceu do segundo ponto. Assim, em vez de tramitar de imediato as principais reformas do programa de governo, aproveitando a cada vez mais curta lua-de-mel dos governos, ele decidiu aguardar o resultado do plebiscito de setembro de 2022, pensando que a vitória fortaleceria o poder de negociação do executivo no Congresso. No entanto, com a proposta rejeitada, o partido no poder ficou com grande parte do programa de governo foi ladeira abaixo e, após os resultados de 7 de maio, não apenas foi escolhido um corpo político mais direitista em décadas, mas também a posição de negociação no Congresso piorou novamente.

Num cenário adverso, o progressismo precisa se livrar rapidamente de sua derrota e partir para a autocrítica; e, ao invés de continuar em autoflagelação, olhar adiante: quais elementos do processo constituinte propostos até agora devem ser recuperados e quais devem ser abandonados? Quais consensos serão necessários para recuperar a legitimidade de nossa vida comum em um contexto como o descrito?

Se há algo claro é que a esquerda não pode ignorar o processo constituinte. Afinal, foi ela que propôs ao país uma nova Constituição destinada a possibilitar um período de justiça social. Assim, mesmo que tenha que fazer múltiplas concessões, seria muito mais prejudicial renunciar a um acordo com a direita tradicional. Por um lado, isso permitiria chegar a um acordo sobre um texto com maais chances de ser aprovado em dezembro de 2023 para encerrar este processo de vez. E, por outro, construiria um precedente para bloquear o avanço do autoritarismo.

A era das identidades políticas negativas também implica que no Chile poderia haver espaço para construir uma identidade contra a extrema direita, algo que em certa medida foi gerado no segundo turno presidencial de 2021 – embora a questão seja se construir esse antagonismo é suficiente para denunciar que o Partido Republicano “não é democrático” justamente quando acaba de ganhar as eleições. Em vez disso, vale a pena voltar à origem: a razão pela qual iniciamos esse longo caminho de idas e vindas desde a eclosão social foi o desconforto com a subsidiariedade do Estado consagrada na Constituição de 1980. Se considerarmos a lógica do plebiscito ratificatório, que não distingue artigo por artigo, mas submete todo a proposta a uma votação, então o mais importante para a votação final serão os anticorpos que o novo texto pode induzir. Se a direita optar por constitucionalizar o sistema de AFP (administradoras de fundo de previdência privada) ou das Instituições de Seguridade Social (ISAPRE, sistemas privados de saúde), rechaçado pela população, é muito plausível que o “não” a um novo texto constitucional vença novamente.

O dilema de Kast

Dissemos acima que o processo constituinte ficou a cargo daqueles que rechaçavam um processo constituinte. Basta um exemplo para ilustrar isso: Luís Silva, o candidato mais votado em nível nacional, sinalizou que o PR “não quer uma nova Constituição“. Em poucas palavras, pode-se dizer que a proposta constitucional do PR é a Constituição de 1980, nem mais nem menos. No entanto, apesar das duras derrotas eleitorais neste ano e no ano passado, o plebiscito constitucional de 2020 aprovou com 78% dos votos a mudança do texto imposto pela ditadura e reformado em diversas ocasiões. Em outras palavras, este é um capítulo que dificilmente terminará com mais um rechaço.

Como se vê, a questão não é tão simples para o PR. Como principal força do Conselho – com 23 assentos, poder de veto autônomo e apenas 8 votos para atingir três quintos (quórum para aprovação dos artigos) –, a responsabilidade pelo andamento do processo agora recai sobre eles na mesma medida que o apoio recebido na votação. E, embora haja mais de uma tentativa de se desvincular de sua responsabilidade, a verdade é que as expectativas de encerrar a crise social e institucional no Chile não desapareceram, apesar de segurança e imigração terem se tornado temas centrais na agenda cidadã.

Ao contrário do último referendo, capitalizar um novo rechaço não é mais possível para a direita. A facilidade com que três quintos e até dois terços podem ser construídos com o Chile Vamos implica que os custos do processo constituinte recairão em grande parte sobre a direita. Portanto, é provável que a aposta do PR seja a realização de uma minuta para ser aprovada em dezembro. Isso depende da capacidade da direita, mas sobretudo do Partido Republicano, de agir com moderação. Isso não é impossível se considerarmos que, ao contrário de boa parte da esquerda independente da Convenção, o PR tem um líder e uma estrutura partidária muito mais verticalizada.

No entanto, esta não é a única possibilidade. O PR é um partido novo, com muitos quadros que não foram forjados na política nem estão habituados a debates institucionalizados, regulamentos de votação, aparições públicas etc., e podem cometer os mesmos erros táticos e de comunicação que foram cometidos, em abundância, na primeira Convenção Constitucional. Não podemos esquecer que na Câmara dos Deputados, militantes e ex-militantes do PR estiveram envolvidos em diversas polêmicas.

Em suma, enquanto o caminho da nova esquerda chilena liderada pelo presidente Boric enfrenta curvas perigosas, o da extrema direita de José Antonio Kast, embora pareça claro, enfrenta os riscos do excesso de velocidade. É possível que ele aposte no marco de uma nova Constituição que deve ser aprovada para mostrar que ele pode governar e gerar “estabilidade”, mas ele deverá tomar cuidado para que suas ideias “oitentistas” não apareçam no novo texto. Enquanto isso, entre curvas perigosas e excesso de velocidade, um verdadeiro abismo entre a política e a sociedade continua a crescer.

Leia Também:

Um comentario para "Chile: por que a ultradireita venceu "

  1. José Mario Ferraz disse:

    O desencanto com político é o único caminho possível. Daí que os poucos políticos sinceros deviam abandonar a política para que ela se desmoralizasse de vez e viesse abaixo. Entretanto, sendo analfabetos políticos os componentes do povo, acredita haver encantamento na política do venha a mim e os outros que se danem, o que é um erro sem proporções de tamanho.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *