O furor incendiário dos vereadores de Porto Alegre

Por unanimidade, Câmara da capital gaúcha proíbe o livro de Hitler. Além de criar um exótico poder de censura municipal, erra ao desvincular o nazismo de seus atores e financiadores históricos. Quais os próximos opúsculos lançados ao fogo?

Imagem do filme “Fahrenheit 451”, de François Truffaut, baseado no livro de Ray Bradbury
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Fiquei sabendo, apenas ontem, que a Câmara Municipal de Porto Alegre, minha cidade natal, aprovou, em 5 de abril, por unanimidade, portanto, com os votos dos 32 vereadores votantes ditos de direita, centro-direita, centro-esquerda e de esquerda, a proibição “à comercialização, publicação, distribuição, difusão e circulação do conteúdo integral ou parcial da obra Mein Kampf (Minha Luta), de autoria de Adolf Hitler, no município de Porto Alegre”. 

O projeto estrambólico que acaba de ser aprovado é da vereadora Mônica Leal, do PP, filha do coronel Pedro Américo Leal, chefe de Polícia do Estado do Rio Grande do Sul durante a ditadura, de triste memória, ao menos para a esquerda, homenageado, diga-se de passagem, por denominação de avenida na mesma cidade, por iniciativa da mesma edil. 

Nem rir, nem chorar. Compreender

Fiquei com vontade de chorar e de rir. Mas logo me acalmei um pouco. Como  tenho residência em Viamão, na fronteira com Porto Alegre, meu valioso exemplar, do citado livro, não está em perigo, pois fora do alcance da lei.

Lei que se inspira, creio, no livro Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, que não li, ou no filme homônimo, de François Truffaut, de 1966, que assisti, quando garotão. Ou, talvez, nos autos de fé dos tempos da Inquisição ou da era nazista, fogueiras acendidas para incendiar a literatura tida como subversiva, quando não era possível incendiar os autores.

E não digam que eu não tinha razão em temer por meu exemplar! Valioso, como disse, pois, até a sua publicação cair em domínio público, em 1º de janeiro de 2016, não era coisa fácil conseguir uma boa edição em português.

O meu exemplar, furtei da biblioteca de um parente próximo, mais admirador de Mussolini, mas com alguma simpatia pelo citado autor. Livro que expropriei com as páginas virgens, quase amareladas pelos anos, ainda necessitando serem separadas. Confesso que li o livro por obrigação profissional. Chatíssimo. 

Alguém leu?

Será que algum dos 32 Bombeiros 451º F de Porto Alegre leram o livro? Posso emprestar. Mas, por amor a deus, leiam fora das fronteiras municipais e não me devolvam suas cinzas!

Minha vontade de chorar nasceu das incongruências de tal medida, democráticas, intelectuais e legais. Uso esse vocábulo para não me servir de algum outro mais forte e mais pertinente.

Desculpem-me. Quem são os dignos e dignas camaristas da capital dos sul-rio-grandenses, dignificada pelo Império com o título de “Leal e Valorosa” por ter posto a correr os farroupilhas, para se alvoroçarem em censores literários, ditando o que seus representados podem ou não podem ler? 

Não compreendem os excelsos vereadores que essa determinação autoritária, dessa estranha nova Inquisição,  instituída, unanimemente, à beira do belo Guaíba, desrespeita preceitos constitucionais maiores? Isso porque ela passa a repartir o terrível imprimatur eclesiástico, dos nossos tempos coloniais, bisados em 1937 e 1964,  com vigência exclusiva às fronteiras do antigo Porto dos Casais. 

Nem mais uma bandeira gremista!

Imaginem se cada municipalidade se atribuir a autoridade de determinar o que se pode ler, o que se pode escutar, o que se pode ver, nos limites de sua fronteira? Baseados em razões inconsistentes e exóticas como a apresentada pela proponente de tal despropósito. Em município de vereadores com bom gosto, em maioria colorados, poderá ser proibida a bandeira gremista! Neste caso, me perdoem, com todo o meu apoio! 

O argumento da autora da proposta desatinada é que: “A difusão dessa obra tem um potencial lesivo incalculável [sic], além dos danos que já produziu por meio da propagação de ideais nefastos que a obra preconiza, e que protagonizou, seguramente, como uma das páginas mais sombrias da história recente da humanidade.” 

A redação da justificação já nos fica a dever. Se os danos que a publicação de tal obra provocarão são “incalculáveis”, eles poderão ser, eventualmente, grandes, médios e até mesmo nulos. E a obra não protagonizou nada. A página histórica dolorosamente sombria que constituiu o nazismo não foi produzida pelo livro, mas pelo movimento nazista, seus militantes e, sobretudo, seus grandes apoiadores. 

O nazismo não teria prosperado sem o apoio do capital monopólico alemão, ou seja, da grande burguesia alemã, que, como é de conhecimento geral, apoiou aquele movimento contra o avanço do Partido Comunista Alemão e, a seguir, se serviu e se regalou com o trabalho forçado dos trabalhadores de países europeus e euro-asiáticos ocupados. 

A culpa foi toda de Hitler! 

Empresas que prosperam hoje na Alemanha e não poucas se encontram instaladas no Brasil. Nos anos 1970, no exílio, conheci em Charleroi, na Bélgica, velhos mineiros levados como trabalhadores semi-escravizados para a Alemanha e familiares de alguns que de lá não haviam voltado. O fascismo e o nazismo foram recursos das classes dominantes contra a luta dos trabalhadores e do movimento social. Hitler e Mussolini  foram apenas instrumentos e personificações daqueles movimentos, como poderiam ter sido outros. 

E se tal princípio prosperar, a transformação dos vereadores em censores do que podemos ler, teremos proibido certamente um número infinito de obras, de todos os gêneros – ensaios, literatura, poesia, etc. –, por proporem, algumas em forma ainda mais aberta, princípios e comportamentos malévolos, racistas, etc. 

Apenas alguns poucos exemplos excelentes brasileiros. O romance O presidente negro, de Monteiro Lobato, que sugere um modo indolor para terminar com o, segundo o autor, “choque das raças”, que atrasaria os USA, eliminando com todos os afro-estadunidenses! Pode? Pro fogo!

Ou o longo poema laudatório Feitos de Mem de Sá, escrito em latim, pelo jesuíta José de Anchieta, que celebra como obra divina o massacre geral de tupinambás da capitania da Bahia pelo terceiro governador-geral do Brasil. E o massacre dessa e de outras nações nativas foi, em forma indiscutível, a única ação em nossa história que podemos aproximar a um genocídio. Pro fogo!

Judeus, aves de rapina

E teríamos que queimar a obra icônica de Gilberto Freyre, publicada em 1933, quando o nazifascismo bombava, devido às, entre outras propostas, as suas sinistras referências antissemitas: “Técnicos da usura, tais se tornaram os judeus em quase toda parte por um processo de especialização quase biológica que lhes parece ter aguçado o perfil no de ave de rapina, a mímica em constantes gestos de aquisição e de posse, as mãos em garras incapazes de semear e de criar”. Pro fogo!

E, minha gente, essa fogueira sem fim não poderia deixar de fora um trabalho histórico como o do Gustavo Barroso, Brasil: colônia de banqueiros, de 1934, escrito, portanto, na mesma época de Casa Grande & Senzala, onde se apresenta invariavelmente um judeu ardiloso e malévolo emboscado atrás de cada tropeção do passado brasileiro. Igualmente pra fogueira!

E, saindo dos nacionais, por que não queimamos, também, toda a obra de J. Stalin, personagem que não poucos  aproximam a A. Hitler. E por que não fazemos o mesmo com a obra enorme de V. Lenin,  já que outros tantos desavisados dizem que J.Stalin foi apenas uma mera continuação do dirigente da Revolução de Outubro.

Ou quem sabe, em uma censura mais refinada, devamos queimar e proibir, nas fronteiras de Porto Alegre, qualquer publicação da Constituição imperial de 1823, vigente até a República, que sustentou o direito de propriedade sobre o trabalhador escravizado africano e afrodescendente, sem se referir a ele ou à escravidão, coisa muito brasileira. Página histórica sombria, de mais de três séculos, que dizem respeito, diretamente, a Porto Alegre e ao Rio Grande do Sul.

No frigir dos ovos, a câmara da capital sulina acaba de proclamar, por unanimidade, com a sua  legislação “politicamente correta”, a República de Porto Alegre, com o direito de decidir o que quiser, nos seus limites! Em pequeno, materializa a reivindicação de alguns gaudérios irredentistas tresloucados.  

Mesmo sem saber o que vem por aí, espero, sinceramente, que não exijam passaporte, para os universitários, estudantes, curiosos, etc. obrigados a viajar para os países vizinhos da República de Porto Alegre, ou seja, os estados soberanos de Viamão, São Leopoldo, Guaíba, para exercerem o direito constitucional e democrático de ler o que bem quiserem. Até as sandices malignas ditadas por Adolfo Hitler.

Bibliografia

ANCHIETA, De Gestis Mendi de Saa. Introd., versão e notas do A. Cardoso , S.J.. São Paulo: Loyola, 1986. [Obras completas, 1.]

BARROSO,Gustavo.Brasil:colôniadebanqueiros.5ed.SãoPaulo:CEN,1936.

FREYRE,Gilberto.Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sobre [sic] o regime da economia patriarcal. 47. ed. rev. São Paulo: Global, 2003. 

MAESTRI, Mário. Os senhores do litoral: conquista portuguesa e agonia tupinambá no litoral brasílico (Século 16) – 3. ed. rev. e ampl. – Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2013.

MAESTRI, Mário. O presidente negro pintou-se de branco e alisou o cabelo. Correio da Cidadania, 05/04/2023 https://www.correiocidadania.com.br/cultura-esporte/5601-16-03-2011-o-presidente-negro-pintou-se-de-branco-e-alisou-o-cabelo

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