Araraquara: O lockdown que enfrentou a ira de Bolsonaro

Cidade do interior paulista ganhou destaque nacional por exitoso isolamento social, que reduziu drasticamente internações e mortes por covid. Isso inflamou o clã Bolsonaro, que passou a atacar prefeito e até ameaçá-lo com impeachment

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Por Camille Lichotti, na Piauí

O largo do Paço Municipal de Araraquara, na região central do estado de São Paulo, estava vazio na manhã do dia 26 de junho. O sol se esgueirava entre um edifício residencial e o imponente prédio de nove andares da prefeitura, iluminando parte da praça. Eram onze da manhã, o típico calor araraquarense já se impusera, e dois amigos caminhavam em direção aos bancos à sombra. Sentados ali, eles mal conversavam. Apenas observavam a paisagem desértica, como se estivessem perdidos. Não havia um táxi sequer no ponto. A parada de ônibus estava vazia. As lojas, todas fechadas. No coração da cidade de 238 mil habitantes, só se ouviam as folhas das árvores balançando ao vento e, de vez em quando, a buzina distante dos trens que corriam sobre a centenária linha férrea das proximidades. “Parece uma cidade fantasma”, disse um deles, entre divertido e perplexo. Naquele sábado, os dois amigos, que moram em municípios vizinhos, haviam decidido visitar Araraquara – e se esqueceram de um detalhe nada trivial: a cidade estava em completo lockdown.

Os dois só se deram conta de que aquele sábado era o sétimo dia de fechamento total quando já estavam na metade da viagem. Eles haviam se encontrado em São Carlos, a 45 km de Araraquara, e pegaram a estrada que liga as duas cidades, cortando plantações de cana-de-açúcar que se arrastam até o horizonte, nos dois lados da pista. Conversavam e ouviam música no carro até que um deles, o estudante de biotecnologia Gilberto Yanes, de 23 anos, lembrou que ouvira falar de um lockdown em Araraquara. “Ah, mas agora já estamos no caminho, né? Vamos ver se está tudo fechado mesmo”, sugeriu. Ele apostava que seria um lockdown à brasileira, com regras de circulação e fiscalização capengas, como aconteceu no resto do país desde o começo da pandemia de Covid-19. Estava enganado. “Quando estacionamos, parecia um filme de faroeste”, lembra ele, rindo, referindo-se à imagem de uma bola de feno rolando pelas ruas desertas de uma cidadezinha do Velho Oeste. “Aí eu vi que era lockdown mesmo.” Depois da rápida visita à praça, eles voltaram a São Carlos, onde haveria um restaurante aberto para o almoço.

Araraquara, com suas ruas centrais limpas e arborizadas, sempre retas e amplas, foi a primeira cidade paulista – e uma das únicas no país – a adotar o lockdown, essa palavra que o Brasil tomou do inglês para designar o fechamento completo de uma cidade. Em junho, quando já registrava 493 mortos pela Covid-19, Araraquara, pela segunda vez na pandemia, fechou e esvaziou suas ruas. Foram oito dias de restrição, de 20 a 27 de junho. A circulação na cidade só era permitida mediante justificativa. Equipes de vigilância faziam rondas para fiscalizar o cumprimento das regras e a polícia controlava o fluxo de pessoas por meio de drones. Comércio e serviços não essenciais fecharam as portas e, nos três primeiros dias, nem mercados e padarias puderam funcionar para atendimento presencial.

Na véspera, a mesma praça que os visitantes de São Carlos encontraram vazia tinha sido palco de uma modesta manifestação contra o lockdown. Cerca de trinta pessoas, vestindo verde e amarelo e carregando bandeiras do Brasil, penduraram fotos do prefeito Edinho Silva (PT) em varais de barbante que atravessavam toda a praça, como bandeirinhas de festa junina. Para não deixar dúvidas sobre o conteúdo político do protesto, nas imagens o prefeito aparecia ao lado de figurões do PT, como os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, de quem foi ministro e tesoureiro de campanha. No varal improvisado, havia também fotos da secretária de Saúde, Eliana Honain, e de vereadores da base governista. Um carro de som tocava músicas de festa junina, embalando o coro dos manifestantes que pediam a abertura dos serviços e gritavam palavras de ordem contra o PT.

Em fevereiro deste ano, quando Araraquara realizou seu primeiro lockdown, a cidade ganhou destaque nacional por sua liderança na adoção da medida. “É hora de quem vive em Araraquara dar um exemplo para o país inteiro”, disse o oncologista Drauzio Varella, num vídeo em que elogiou a decisão da cidade. Mas o prefeito Edinho Silva também enfrentou um vendaval de críticas e virou um alvo do presidente Jair Bolsonaro. Em abril, Bolsonaro disse que a população da cidade estava passando fome e anunciou, numa mensagem no Twitter, o envio de alimentos aos “vitimados pela política do fique em casa”. Era mais provocação do que ajuda humanitária. Em junho, quando o prefeito decretou o segundo lockdown, Bolsonaro voltou a citar Araraquara em sua live de quinta–feira e disse que não sabia “o que tem na cabeça” o prefeito da cidade. Na ocasião, disse que a média de mortos em Araraquara era maior do que a média brasileira – o que seria uma prova de que o lockdown “não funciona”.

Era tudo mentira. A fome não aumentou em Araraquara e a média de mortos na cidade era inferior à média nacional (202 contra 234 por grupo de 100 mil habitantes). Além disso, o lockdown do início do ano, que durou de 23 de fevereiro a 2 de março, teve um efeito positivo incontestável. Um estudo da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) mostrou que a medida evitou 3,5 mil contaminações e 259 mortes por Covid-19 na cidade. Num município que, ao tempo do primeiro lockdown, havia registrado 171 óbitos, poupar 259 vidas é um resultado excepcional.

O segundo lockdown derrubou em 49% a média diária de casos de Covid-19 em relação ao pico do mês de junho. No caso das internações hospitalares, a redução foi de 24%. São bons resultados, embora mais modestos do que os verificados depois do primeiro lockdown. Para os especialistas, o saldo menos efetivo da segunda intervenção pode ser explicado pela adesão mais baixa às medidas, decorrente da sensação de segurança provocada pelo avanço da vacinação, e também pela menor duração do segundo isolamento – o primeiro durou dez dias, o último durou oito. “As pessoas estão cansadas”, reconhece a secretária Eliana Honain. O ideal, segundo pesquisadores ouvidos pela piauí, seria um lockdown de catorze dias, que corresponde ao tempo médio da infecção em uma pessoa. Mas o objetivo da prefeitura era dar um “choque” na curva de crescimento de casos. Conseguiu: a circulação do vírus caiu, enquanto a vacinação ganhava maior tração. No fim de junho, metade da população adulta de Araraquara já havia recebido pelo menos uma dose do imunizante.

O prefeito Edinho Silva raramente responde às bravatas de Bolsonaro. Prefere deixá-lo falando sozinho. É uma boa tática, diz a cientista política Maria Teresa Kerbauy, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “É emblemático que essas investidas sejam contra um prefeito do PT. O objetivo de Bolsonaro é reduzir tudo a uma briga entre bolsonaristas e petistas. Ele não fala nada das cidades que depois adotaram medidas parecidas porque não teria o mesmo impacto”, analisa Kerbauy. “Se ele não atacar, o discurso dele perde a validade. Esse é o jogo político do Bolsonaro. O Edinho sabe disso. Ele é um quadro político bem preparado e não cai nesse jogo.”

A decretação de lockdown não fazia parte dos planos iniciais da Prefeitura de Araraquara. O município conseguiu controlar a pandemia em 2020. Fechou o ano com 92 óbitos. Se o Brasil como um todo tivesse tido o mesmo desempenho de Araraquara, o país teria encerrado 2020 com 80 mil mortos, e não com os 195 mil óbitos registrados. “O desempenho do Brasil é fruto de uma gestão ruim”, avalia Eliseu Waldman, professor do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). “Com um vírus desse, você não consegue controlar a epidemia sem diminuir drasticamente a circulação e dosar as medidas paliativas. Mas é preciso ter liderança para fazê-lo. Em vez disso, ficamos sem governança no país e as ações do governo federal dispensam comentários.”

Os resultados colhidos por Araraquara em 2020 são produto de uma medida elementar: a cidade apenas seguiu a cartilha de boas práticas usada por países asiáticos e europeus. No começo de março do ano passado, antes mesmo do primeiro caso de Covid-19 na cidade, a prefeitura inaugurou o Comitê de Contingência do Coronavírus, formado por diferentes setores do governo. Até hoje, esse grupo se reúne diariamente para monitorar a situação do município e definir as ações contra o vírus. Mas qualquer protocolo ou decreto, antes de ser aprovado pelo comitê de contingência, passa pelo crivo de outra comissão, o comitê científico, que reúne representantes de todos os hospitais da cidade – públicos e privados –, infectologistas, pneumologistas e pesquisadores convidados.

No comitê científico, os especialistas debatem quais as melhores estratégias recomendadas pela ciência para conter a doença. Todas as discussões baseiam-se em estudos recentes sobre o vírus Sars-CoV2 e em experiências descritas na literatura científica. Nenhum detalhe escapa ao olhar criterioso do grupo. Certa vez, o comitê gastou horas discutindo sobre quais instrumentos musicais poderiam ser tocados pelas bandas da cidade. Levando em conta o modo de transmissão do vírus, os especialistas concluíram que instrumentos de sopro deveriam ser banidos. “Então está liberado ter música ao vivo no bar, desde que não seja saxofone”, brincou um dos especialistas.

“Nenhum município recebeu orientações do Ministério da Saúde sobre como agir”, lamenta a secretária Eliana Honain. “Cada um teve que usar a criatividade para definir suas próprias políticas.” Araraquara teve uma vantagem em relação à maioria dos municípios brasileiros: o contato direto com as universidades. A cidade é sede de quatro centros universitários da Unesp, além de contar com o Serviço Especial de Saúde de Araraquara (Sesa), vinculado à Faculdade de Saúde Pública da USP. Trata-se de um campus avançado, que presta serviço de vigilância epidemiológica para o município e serve como polo de pesquisa da universidade. Logo no começo da epidemia, a prefeitura fez parcerias decisivas para o desempenho de Araraquara no combate à Covid-19. Uma delas foi o programa de testagem em massa.

Desde abril do ano passado, Araraquara não depende do laboratório estadual para os testes de Covid-19. Na época em que o Brasil ainda patinava na testagem, a cidade levava quase dez dias para receber os resultados dos testes – o que afetava o monitoramento dos infectados e, consequentemente, o controle da doença. A prefeitura então fechou um acordo com a Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp. Comprou os kits para o exame de RT-PCR, conseguiu o software para a leitura das amostras e passou a testar qualquer pessoa que apresentasse qualquer sintoma. Até hoje, Araraquara investe, em média, 90 mil reais por mês nos testes para Covid-19, e os resultados ficam prontos em, no máximo, 24 horas.

Além disso, a prefeitura reservou uma de suas três unidades de pronto atendimento para receber exclusivamente pacientes com síndrome gripal. Em frente a essa unidade, nas dependências de uma pequena igreja mórmon, foram montados leitos de retaguarda para os diagnosticados com a doença. Os vinte leitos de enfermaria foram instalados no salão sacramental do templo esvaziado. Mas ainda havia um problema estrutural. Em um cenário de crise, Araraquara não tinha sistema hospitalar grande o suficiente para garantir leitos para a população. O único hospital que atendia pelo sus dentro dos limites municipais era, até então, a Santa Casa de Araraquara, que reservava apenas 46 leitos de enfermaria e 14 leitos de uti para tratamento de alta complexidade da Covid-19.

Para solucionar essa carência, a prefeitura construiu um hospital de campanha de 2,5 mil m², oferecendo mais 31 leitos de enfermaria e outros 20 com suporte ventilatório. Construída às pressas, a unidade começou a operar em cinco semanas. A decisão de usar recursos federais para a obra gerou uma controvérsia porque, quando o hospital foi inaugurado, no início de maio, Araraquara tinha apenas 130 casos de Covid-19 confirmados e quatro óbitos. A oposição argumentava que a estrutura era um exagero. De fato, o hospital de campanha operou com folga durante o ano de 2020 – mas se revelou imprescindível no decorrer de 2021, quando chegou a ficar lotado.

Mas nem tudo correu bem naquele ano. Por 4 milhões de reais, a prefeitura comprou 25 respiradores eletrônicos que nunca foram entregues. Para fechar o negócio, a administração municipal havia adiantado 25% do valor para a empresa RY Top Brasil Ltda. Como se tratava de dinheiro repassado pelo governo federal, o Tribunal de Contas da União foi acionado e encontrou indícios de improbidade administrativa. Em acórdão, o órgão ressaltou que não havia “prova da capacidade operacional da empresa selecionada, a reforçar o descuido dos gestores” e constatou “erro grosseiro dos gestores na antecipação de pagamento”. A prefeitura afirmou que o processo ocorreu de forma legal. A compra foi cancelada a pedido da empresa, que alegou dificuldades na importação dos respiradores. O fato, porém, é um constrangimento para a prefeitura, que pagou 1 milhão de reais por aparelhos que nunca chegaram. Até julho deste ano, apenas metade do valor havia sido recuperado por meio do bloqueio de bens da empresa contratada.

Com a busca ativa de infectados e rastreamento de contatos, Araraquara manteve a epidemia sob controle em 2020, apesar da baixa adesão ao isolamento social. Em meados do ano passado, a cidade tinha a menor taxa de óbitos por Covid-19 entre as cidades com mais de 100 mil habitantes no estado de São Paulo. Àquela altura, a taxa de testagem do município já era o dobro da média brasileira. Em proporção à população, Araraquara ultrapassava até a Coreia do Sul, país pioneiro na estratégia de testagem em massa. “A própria Secretaria da Saúde do governo estadual reconhece que a gente avançou por conta própria”, diz Eliana Honain. “Não ficamos esperando a orientação do que era para fazer.” Nas reuniões do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo, do qual Honain é diretora, ela costuma ouvir que Araraquara é um ponto fora da curva, uma exceção. O desempenho da cidade foi destaque no jornal francês Libération, que caracterizou o prefeito Edinho Silva como “uma estrela do PT em ascensão”. A cidade fechou 2020 com 92 óbitos por Covid-19 e, até ali, parecia que o pior já havia passado.

Com a virada de ano, o cenário da epidemia em Araraquara mudou radicalmente.

Em meados de janeiro, o infectologista André Nogueira, diretor técnico da Santa Casa de Araraquara, recebeu um chamado dos colegas. Os intensivistas queriam sua opinião sobre o estado de uma paciente intubada no hospital. A mulher de 45 anos fora diagnosticada com Covid-19, mas a tomografia apresentava manchas anômalas no pulmão, muito diferentes do padrão que os médicos estavam acostumados a ver. “Parecia uma doença nova”, lembra Nogueira. Era um caso semelhante a outros que começavam a pipocar nas unidades de saúde de Araraquara: pacientes cada vez mais jovens já chegavam em estado crítico, com o pulmão muito inflamado e precisando de maior aporte de oxigênio. Nogueira sugeriu que os colegas investigassem o histórico da paciente.

A mulher era uma turista de Manaus que havia saído para um tour pelo Brasil no dia 26 de dezembro, viajando a bordo de uma van com outras dez pessoas. O grupo esteve em Rondônia, Goiás, Minas Gerais e passou o Réveillon no Rio de Janeiro. No caminho de volta para Manaus, a mulher passou mal. Ela reclamava de fadiga e sua respiração ficou ofegante. Buscou atendimento na cidade mais próxima da estrada: Araraquara. O grupo chegou no dia 11 de janeiro, e a paciente foi imediatamente encaminhada à Santa Casa em estado grave – e por lá ficou até receber alta, semanas depois. Do resto da turma, outras seis pessoas tiveram teste positivo para Covid-19 e ficaram internadas na unidade de retaguarda de Araraquara, em observação. Todos se recuperaram.

O infectologista André Nogueira sabia que a epidemia de Covid-19 estava diferente. Ele tinha um palpite: o vírus provavelmente sofrera alguma mutação. O comitê científico montado pela prefeitura, do qual ele faz parte, teve a mesma impressão. A curva de casos crescia “como um foguete”, afetando um novo perfil de vítimas. Em um curto intervalo, o número semanal de novos casos de Covid-19 mais que triplicou e atingiu o pico em fevereiro. Naquele mês, 38% dos óbitos pela doença foram de pessoas com menos de 60 anos – em comparação aos 18% registrados no ano anterior. “Nós esperávamos um aumento em consequência das festas de fim de ano, mas aquilo era absurdo”, lembra a secretária de Saúde. “Chegamos a ter 42 óbitos em uma única semana. Em todo o ano de 2020 foram 92. Todas as luzes de alerta se acenderam para nós, e a gente precisava entender o que estava acontecendo.”

Por meio do Sesa, o braço da USP na cidade, a prefeitura formou uma parceria com o Instituto de Medicina Tropical de São Paulo para realizar o sequenciamento genético de amostras coletadas em pacientes com Covid-19, incluindo a turista manauara internada na Santa Casa. No dia 12 de fevereiro, o IMT respondeu. Era a p.1, que depois seria rebatizada de variante Gama e fora inicialmente identificada em Manaus. Das amostras coletadas entre o fim de janeiro e fevereiro, 93% correspondiam àquela cepa. Não foi um achado acidental. Araraquara é até hoje um dos únicos municípios do país a realizar vigilância genômica independentemente do estado. Em outras palavras, só acharam a mutação porque a procuraram.

Araraquara também foi a primeira cidade paulista a identificar a disseminação comunitária da variante P.1 – até então, os casos eram importados da região Norte ou detectados em pessoas que tiveram contato com infectados de lá. A prefeitura comunicou os governos estadual e federal. A notícia fez os moradores se lembrarem da “van de Manaus”, que passara pela cidade no mês anterior. A Secretaria de Saúde de Araraquara não perdeu tempo em esclarecer que não havia vínculo epidemiológico entre a chegada dos turistas manauaras e o surgimento da P.1 na cidade. Nada indicava, portanto, que a turma da van de Manaus trouxera a nova variante para a cidade. Na verdade, um estudo retrospectivo mostrou que a cepa já circulava em Araraquara antes da chegada dos turistas do Amazonas.

Mas era tarde demais: a lenda da “van de Manaus”, cheia de infectados que supostamente espalharam o vírus pelo Brasil, já tinha povoado o imaginário dos habitantes de Araraquara. Nas redes sociais, surgiram teorias da conspiração relacionando a van a uma negligência proposital da prefeitura. “Estranho uma van sair de Manaus com infectados da nova cepa da Covid, rodar mais de 4,5 mil km e parar na paradisíaca Araraquara, justamente onde o prefeito do PT adora comprar e não entregar respiradores superfaturados… E aí, Polícia Federal, bora investigar isso?”, escreveu um usuário do Twitter.

Segundo os especialistas, a explicação mais provável – e menos pitoresca – é que a P.1 se disseminou pelas estradas, por meio dos caminhoneiros que escoam os produtos da Zona Franca de Manaus pelo Brasil. E Araraquara fica justamente em uma região de entroncamentos rodoviários importantes no estado.

Assim que recebeu as notícias da cidade, o governador João Doria (PSDB) convocou o prefeito Edinho Silva para uma reunião emergencial. “Não existe uma ponte direta ligando Manaus a Araraquara”, esclareceu o prefeito na ocasião. “Nós só identificamos a cepa primeiro, mas ela provavelmente já está espalhada por todo o estado.” A conversa foi tensa: uma repetição das cenas caóticas de Manaus era a última coisa que ambos queriam ver em São Paulo.

Com apoio estadual para ampliar os leitos de enfermaria e UTI, Araraquara começou a se preparar para o pior. Estocou insumos para intubação e encomendou dezenas de galões de oxigênio. Mas não havia profissionais suficientes para operar os novos leitos. Àquela altura, a região passava por um apagão de mão de obra qualificada porque a demanda era alta: o sistema de saúde colapsava em todo o interior de São Paulo, e não havia pessoal suficiente para operar tantos leitos. As taxas de ocupação, tanto na UTI quanto na enfermaria, chegaram a 100% e, pela primeira vez desde o início da pandemia, formou-se uma fila de espera por vagas de internação na cidade. Em poucos dias, a P.1 começava a desenhar em Araraquara o estrago que havia feito na região Norte do país.

Depois de uma votação interna, o comitê científico sugeriu a adoção de um lockdown. A dúvida devia-se ao fato de que alguns estudos da época indicavam que o lockdown, sozinho, trazia resultados a curto prazo, mas não se sustentavam sem outros três pilares: testagem em massa, distanciamento social com educação da população e vacinação. A cidade vinha fazendo testagem em massa e tentava manter o distanciamento social, mas a vacinação estava apenas engatinhando. O receio de alguns integrantes do comitê era de que a cidade ficasse num “abre e fecha” constante. Depois de muita discussão, o perigo que a nova cepa representava levou à decisão final do comitê. E a secretária de Saúde foi categórica ao comunicar a mensagem ao prefeito: não havia alternativa, Araraquara estava perdendo o controle da pandemia. Era preciso um lockdown mesmo. Como o resultado mostrou, a decisão foi acertada.

O gabinete de Edinho Silva, no sexto andar do prédio da prefeitura, é repleto de objetos que remetem ao mundo dos esportes: troféus, camisas autografadas, bolas de futebol. Quando jovem, ele jogava no time de base da Ferroviária, tradicional clube de Araraquara, pelo qual torce até hoje. Edinho Silva não é muito alto, mas tem os ombros largos, típicos de zagueiros. Mantém seu cabelo cuidadosamente penteado para trás e a barba por fazer. Apesar do calor naquela tarde de junho, ele vestia um suéter azul por cima de uma camisa branca e calças jeans. Apoiado no espaldar alto de sua cadeira, cerrava os olhos enquanto lembrava da crise de Covid-19 que enfrentara no começo de 2021. “Eu já cumpri muitas funções na vida pública, com dificuldades imensas. Mas igual àquilo que eu vivi em fevereiro, nunca”, disse. A procura por leitos vagos na região, para acomodar pacientes que não encontravam vaga em Araraquara, se alongava madrugada adentro. E apareciam cada vez mais doentes. “O lockdown foi uma imposição da realidade, não uma opção.”

Antes de fazer o decreto do fechamento total, a prefeitura marcou uma reunião com representantes dos setores industriais, de eventos, bares e restaurantes. Eles foram contrários à adoção da medida. Argumentaram que a maioria das empresas seguia os protocolos sanitários. Mas, como a pandemia não dava trégua, não havia opção. De início, o decreto fechava todos os serviços na cidade de 21 a 23 de fevereiro. Supermercados funcionaram apenas para serviço de entrega domiciliar. Postos de gasolina operavam exclusivamente para abastecimento de veículos dos serviços públicos. No dia 24, no entanto, a cidade chegou a uma marca assustadora: em dois meses, a quantidade de mortos pela Covid-19 ultrapassara a de todo o ano de 2020.

O lockdown foi prorrogado até 2 de março. Nesse segundo momento, os postos de gasolina e mercados voltaram a funcionar com restrições de horário, mas todos os serviços não essenciais continuaram fechados. “A prefeitura não considera nossa opinião”, reclama o presidente da Associação Comercial e Industrial (Acia), José Janone Júnior, que era contra o lockdown. “A gente nem sequer faz parte do comitê de contingenciamento. Ou seja, as políticas não são construídas junto com a gente. Eles só perguntam se temos alguma dúvida em relação aos decretos.” Janone acredita que o setor de serviços foi indevidamente “penalizado” porque a maior parte das contaminações, diz ele, acontece no ambiente familiar.

Segundo os cálculos da Acia, mais de quinhentas empresas fecharam as portas durante a pandemia. Atividades industriais cuja paralisação afetasse o maquinário e a qualidade dos produtos puderam funcionar durante o lockdown, com redução de funcionários. O prefeito fazia questão de repetir, publicamente, que tinha o apoio da nata do setor industrial na adoção das restrições. As fábricas representam uma fatia expressiva da economia local: lá estão sediadas, por exemplo, a Lupo, gigante do ramo de vestuário, a cervejaria Heineken e a Sucocítrico Cutrale, uma das maiores exportadoras de suco de laranja do mundo. Durante todos os dias de isolamento, as chaminés da fábrica da Cutrale continuaram soltando a fumaça branca que espalha o típico cheiro de laranja pela cidade.

No fim das contas, os pequenos comerciantes foram os mais afetados. “Com a preocupação de salvar vidas e cuidar da saúde, houve excesso de ações que tiveram consequências muito prejudiciais para a classe trabalhadora”, afirma o presidente da Acia. O prefeito reconhece essa realidade. “Eu não queria decretar o lockdown porque eu sei que o Brasil não tem um programa de socorro ao pequeno e médio empresário, infelizmente”, diz. Se ajuda viesse, argumenta ele, as medidas restritivas poderiam ser menos amargas. “Eu ando pela cidade e vejo as lojas fechadas. Os autônomos também estão sofrendo um monte, e é uma população que já lutava contra o desemprego antes. Eu resisti ao máximo”, insiste, como se estivesse se desculpando pelos efeitos econômicos da decisão que tomou. O infectologista André Nogueira também concorda que o lockdown foi uma medida extremista, mas necessária, pois o crescente número de mortos não era uma questão de opinião. “Quando você escuta os catedráticos da usp, seus professores, defendendo a medida, trazendo evidências de outros países, você fica seguro de que está respaldado pela academia no propósito de salvar vidas”, diz ele.

Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e fundador e ex-presidente da Anvisa, faz parte de um seleto grupo de professores da universidade que se tornaram interlocutores frequentes da Prefeitura de Araraquara. Com suas longas barbas brancas e óculos arredondados, o médico é presença constante nas discussões sobre o desempenho da cidade na pandemia. “Há anos eu não participo de atividades de campo desse tipo”, conta Vecina. “Mas eu percebi que ali em Araraquara estava acontecendo uma coisa importante para aprender e divulgar.” Como sanitarista, ele sempre defendeu o lockdown. Diz que, antes mesmo de saber o que era um microrganismo, a humanidade já sabia, instintivamente, que os danos causados por doenças infectocontagiosas são reduzidos com isolamento. “Essa é uma das lições mais antigas da saúde pública, e o Brasil a ignorou solenemente”, lamenta.

Araraquara não só resgatou os conhecimentos básicos da epidemiologia como planejou seu lockdown em detalhes. A prefeitura manteve comunicação direta com a população por meio das redes sociais, publicando dois boletins diários em formato de vídeo. Garantiu transporte para os profissionais de saúde durante o isolamento, monitorou casos e investigou os contatos de quem se contaminou. Em pleno lockdown, a cidade colheu o triunfo que tanto buscara: teve seu primeiro dia sem registro de óbitos por Covid-19 desde que a crise da P.1 explodira.

Os bons resultados renderam até meados de maio. Os hospitais deixaram de ser pressionados e passaram a receber cada vez mais pacientes de cidades vizinhas. “Eu vou pegar aqui alguns dados”, diz o prefeito, se preparando para relatar seu sucesso, enquanto folheia as páginas previamente separadas sobre a mesa de seu gabinete. Ele mantém o tom de voz baixo, fala pausadamente, como quem pesa cada vocábulo e dá ênfase às palavras que reforçam sua ideia. “A média móvel de casos… derrubamos em 74%. As internações, em 60%. Os óbitos, 64%. Isso é resultado”, concluiu, com o sotaque tão próprio do interior paulista.

Encerrado o primeiro lockdown, a prefeitura estabeleceu parâmetros para eventuais fechamentos futuros. A ideia era conter o avanço da doença antes que a situação fugisse do controle novamente. A convite do prefeito, representantes da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), braço da OMS, estiveram em Araraquara para discutir novas estratégias de combate à epidemia. Na reunião, os consultores da Opas elogiaram as ações implementadas na cidade e sugeriram que a prefeitura definisse uma taxa de contaminação como gatilho para a adoção de um novo lockdown. Assim foi feito. Se 20% dos testes na população em geral fossem positivos, em um intervalo de três dias consecutivos ou cinco dias alternados, Araraquara entraria novamente em lockdown. A mesma regra valeria se a proporção fosse de 30% entre sintomáticos, aqueles que procuram o serviço de saúde.

Com essa definição, todas as manhãs, em lives na rede social da prefeitura, a secretária de Saúde divulgava a taxa de casos positivos registrada no dia anterior – e repetia as condições para o fechamento. Os vídeos sempre se encerravam com o mesmo alerta. “Não se esqueçam: há transmissão de coronavírus em Araraquara. Se protejam.” Mas, como é comum quando a epidemia dá um alívio, os moradores relaxaram, e as festas clandestinas começaram a se multiplicar pela cidade. Para escapar da fiscalização, os araraquarenses realizavam os eventos no meio dos canaviais, na área rural da cidade. Logo no começo de junho, Araraquara registrou um recorde de novos casos: 252 em apenas um dia. O boletim extraordinário do dia 17 de junho, publicado às 6h47 da manhã, teve 124 mil visualizações. Nele, a secretária Eliana Honain avisava que a taxa de testes positivos de Covid ultrapassara os 20% por três dias consecutivos. Ou seja, Araraquara entraria mais uma vez em lockdown por uma semana. “As pessoas simplesmente não respeitam as regras. O resultado é esse”, disse Honain. Àquela altura, Araraquara havia registrado 24 mil casos de Covid-19 e 483 óbitos.

No verso da mesma folha em que consultou os dados do primeiro isolamento, o prefeito Edinho Silva começou a desenhar círculos, linhas e diagramas incompreensíveis, como se aquilo guiasse o fluxo de seu pensamento. Então, passou a fazer contas para justificar o novo lockdown: “Nós sabemos que, em média, 20% dos positivados vão precisar de internação. Desses, 20% vão para a UTI. Se num dia eu tiver duzentos positivados, nem abrindo outro hospital de campanha eu dou conta. É como se eu estivesse vendo um trem vindo na minha direção. Lógico que eu preciso sair da frente. Aí entra o lockdown.” O prefeito largou a caneta e se recostou na poltrona para continuar seu desabafo. “Você acha que eu gosto? Quando eu fecho a cidade, minha arrecadação despenca e eu tenho um aumento de custeio absurdo [para bancar as medidas]. Diferente de 2020, quando o governo repassou recursos para o enfrentamento à doença, neste ano não teve repasse. Eu estou enfrentando a pandemia com recursos próprios.” Depois de alguns segundos em silêncio, acrescentou: “Eu e todos os prefeitos.”

Olockdown, embasado por evidências científicas, trouxe Edinho Silva de volta aos holofotes – e serviu para remediar sua imagem pública depois de um período conturbado. Da última vez que aparecera nas páginas dos jornais, ele estava na mira da Operação Lava Jato. Foi apontado por ex-executivos da Odebrecht como articulador do caixa dois nas campanhas de Dilma Rousseff, da qual foi tesoureiro, e de Aloizio Mercadante, quando presidia o diretório regional do PT. Ele sempre negou as irregularidades. Os inquéritos relacionados à campanha de Mercadante, instaurados com base em delações, foram arquivados por falta de provas em 2019. Os de Dilma ainda estão em tramitação.

Com o impeachment da ex-presidente, Edinho Silva deixou o cargo de ministro-chefe da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom). Na eleição de 2016, quando o PT perdeu metade das suas prefeituras Brasil afora, ele foi um dos poucos petistas que sobreviveram. Na disputa pela prefeitura, a qual comandara entre 2001 e 2008, nem mesmo a cúpula do PT acreditava na sua vitória diante da disseminação do sentimento antipetista no país. Enfrentar uma eleição em meio àquela turbulência era a última coisa que ele pretendia fazer. Mas era o que lhe restava para não morrer politicamente. Seu cálculo foi pragmático: era preciso recuar para continuar avançando.

A campanha começou a ser construída, informalmente, pelo menos nove meses antes do período regular. Ele estava fora de Araraquara havia oito anos e precisava reaquecer sua base de apoio. Todo fim de semana, fazia ronda em dezenas de churrascos e eventos, tentando cativar o eleitorado onde tinha maior inserção: o futebol, a Igreja Católica e a periferia. Como Araraquara, pelo tamanho do seu eleitorado, não tem dois turnos, ele aproveitou a fragmentação da oposição ao PT e venceu o pleito com 41% dos votos válidos. “O Edinho se beneficiou da história pretérita dele, que lhe garantia uma base minoritária, mas suficiente. Não existia um concorrente à altura, capaz de galvanizar o centro naquele momento”, analisa o cientista político Milton Lahuerta, professor da Unesp.

Mesmo quando já estava no comando do Executivo municipal, Edinho sabia que não contava com o apoio da maioria da população, graças às suspeitas levantadas na Lava Jato. A Polícia Federal chegou a cumprir mandados de busca na casa do prefeito, apreendendo celulares e aparelhos eletrônicos. No pico da crise, ele buscou interlocução com a oposição – dentro e fora de Araraquara – e passou a moderar o discurso. Foi um dos primeiros a propor que o PT fizesse autocrítica, reconhecesse seus “erros” e voltasse a fazer política de cara lavada. Até a chegada da pandemia, o prefeito andou cautelosamente pela sombra. Em 2020, deu a volta por cima. Ganhou imagem de bom gestor da crise sanitária e conquistou maior apoio do eleitorado. Reuniu força política para se reeleger, mas não abandonou as pontes que construíra no mandato anterior.

Quando precisou decretar o segundo lockdown, o prefeito avisou que o faria na reunião semanal com outros prefeitos da região. Descreveu a emergência da situação, ressaltou o sucesso do primeiro lockdown e sugeriu que os colegas acompanhassem as medidas. O sanitarista Gonzalo Vecina explica que as medidas de restrição são mais efetivas quando tomadas em conjunto. “O lockdown virou uma sanfona porque o resto da região não acompanhou as medidas restritivas de Araraquara da primeira vez. A cidade realizou esse trabalho inclusive sem o auxílio necessário do Estado”, afirma ele. “No campo das doenças infecciosas, temos que pensar em manchas populacionais. Não existe, em saúde pública, essa ficção chamada ‘município’.”

O Departamento Regional de Saúde (DRS) de Araraquara, que abrange 24 cidades da região, chegou a registrar 88 mortes na fila por leitos de UTI. O representante do DRS, órgão vinculado ao governo estadual, reforçou a importância das medidas conjuntas durante a reunião com os prefeitos. Ao contrário do que havia acontecido no primeiro lockdown, dessa vez sete cidades acompanharam Araraquara. As outras dezesseis, no entanto, preferiram seguir seus próprios planos, menos restritivos. Acreditavam que reprimir a “liberdade” da população não era o caminho ideal.

Como o governador João Doria havia pedido aos prefeitos paulistas que não fechassem os supermercados para atendimento presencial, o assunto entrou na pauta da reunião do DRS, pois o decreto de Araraquara previa liberar os mercados apenas para entrega domiciliar. Ali reunidos, alguns prefeitos decidiram não adotar o lockdown rígido e aguardar uma decisão do governador, a quem caberia o ônus político de mandar fechar tudo. Presente ao encontro, o representante da DRS não se manifestou sobre o impasse. O prefeito de Araraquara não recuou. “Eu vou fechar”, insistiu. “E acho que seria bom para todo mundo fechar também.”

No Palácio dos Bandeirantes, a assessoria técnica de João Doria divide-se em dois grupos: os que se alinham com as posições mais moderadas do governador e os que defendem a adoção de medidas duras e restritivas no Plano São Paulo. No jogo político, Doria não quer entrar para a história como o governador que paralisou a economia paulista. Há meses, as decisões do plano deixaram de ser regionalizadas e o estado inteiro entrou na fase de transição sob as mesmas regras, consideradas mais flexíveis. “A gestão da pandemia deveria ter ficado a cargo dos prefeitos”, opina Edinho Silva. Ele próprio se define como “municipalista” e acredita que o pacto federativo, desenhado na Constituição, ruiu. “A vida real acontece no município. Eu sei exatamente onde a pandemia acontece aqui. Se você não trouxer o protagonismo, você não enfrenta a doença de forma eficaz. Na hora em que o Plano São Paulo perdeu a força, nós teríamos colocado uma coisa muito mais efetiva no lugar.” Edinho Silva já havia procurado o governador para sugerir mudanças. O prefeito reconhece a importância que o plano teve no momento inicial da pandemia, mas, segundo ele, faltou dar o passo seguinte: a autonomia regional. Em reunião com João Doria, sugeriu que o governador concedesse essa autonomia e responsabilidade aos municípios. Doria não foi refratário, disse que já pensava em adotar ação semelhante, mas até hoje a proposta não saiu do papel.

Os dois gestores, de tendências políticas opostas, se aproximaram durante a pandemia. Doria esteve em Araraquara para inaugurar a campanha de vacinação na cidade e posar para fotos ao lado do prefeito. Antes disso, quando Edinho Silva era ministro e Doria promovia os seminários do Lide, um grupo de líderes empresariais, eles tiveram apenas encontros protocolares. Hoje, o petista não mede elogios ao tucano: “O governador sempre colocou a epidemia como prioridade e eu respeito isso, reconheço os esforços. Ele tem muitos méritos, foi o cara que investiu tudo no desenvolvimento da vacina”, diz. Mas acha que Doria é ingênuo nos embates públicos com o presidente. “Ele muitas vezes cai nas armadilhas do Bolsonaro. Em vez de ignorar os ataques, ele vai lá e responde”, diz, emendando em seguida: “Mas ele é um cara de comunicação, deve saber o que está fazendo.”

Edson Antônio Edinho da Silva tem 56 anos e dedicou 36 deles à militância política. “A vida do Edinho é isso. Ele tem um compromisso com o PT e com a cidade que são invejáveis. É difícil encontrar alguém que faça críticas a ele dentro do partido”, diz Vera Lucia Botta, ex-colega de bancada do prefeito. “Ele sabe compor tendências contrárias e ganhou muitos pontos pelas ações na pandemia. E, claro, é muito próximo ao Lula – o que é importante no partido.” Quando era deputado estadual e presidente do PT paulista, Edinho Silva foi indicado por Lula para ser o tesoureiro da campanha de Dilma em 2014. Mas a relação entre os dois é mais antiga. Em abril de 2002, num restaurante em São Paulo, Edinho Silva apresentou Lula a um amigo, o bilionário José Luís Cutrale, dono da fábrica de suco que leva seu sobrenome. Durante o almoço, Cutrale concordou em oferecer assessoria a Lula sobre como impulsionar o crescimento econômico com exportações, abriu as portas do setor agroindustrial para Lula e ainda se tornou doador de suas campanhas presidenciais. Depois disso, o ex-presidente visitou muitas vezes o município de Araraquara, instalado em uma região estratégica para o agronegócio.

Nascido em Pontes Gestal, uma pequena cidade do interior de São Paulo, Edinho Silva chegou a Araraquara ainda criança porque seu pai, trabalhador rural, arrumara um emprego como peão de gado na região. Na juventude, foi office-boy, operário e metalúrgico. Durante sua infância e adolescência, a família enfrentava dificuldades financeiras, o que moldou seu comportamento e determinou suas escolhas políticas. Na Faculdade de Ciências Sociais, ele se destacava mais por levantar discussões inflamadas do que pelo desempenho acadêmico.

Edinho, como é chamado por todos, entrou para o Partido dos Trabalhadores em 1985, depois de militar na Pastoral da Juventude de Araraquara, onde se familiarizou com a Teologia da Libertação da Igreja Católica. Naquela época, Araraquara passava por uma transformação social e demográfica. Os filhos das elites tradicionais, as mesmas desde o século XIX, saíam da cidade para estudar e trabalhar na capital. Ao mesmo tempo, famílias imigrantes oriundas de vários estados do Brasil, principalmente da região Nordeste, chegavam para trabalhar nas plantações de cana. Os novos moradores ocuparam as regiões periféricas e formaram uma nova base social, o que tornou Araraquara um caldeirão de movimentos sociais. Foi com esse impulso que Edinho Silva e seus colegas começaram a se projetar politicamente. Aos 24, já era presidente do Diretório Municipal do PT e coordenador regional da legenda.

Ele foi vereador por oito anos, entre 1993 e 2000, e liderou a bancada do partido e a oposição aos prefeitos da época. Sempre tomava a palavra para fazer discursos acalorados e defender as propostas do PT. Àquela altura, logo depois de promulgada a atual Constituição, algumas forças políticas de Araraquara se organizaram para romper com o conservadorismo das elites locais e propor um projeto de longo prazo para a cidade. Era uma frente de legendas democráticas, não de esquerda, que previa investimentos maciços em saúde e educação, colocando as universidades da região na vanguarda do debate público. Com isso, Edinho Silva passou a ser interlocutor frequente das lideranças políticas locais e, aos poucos, conquistou seu espaço. “Ele deixou de ter uma posição radical e se tornou um vereador com mais ginga, começou a entender que fazer política parlamentar não se resumia a fazer discurso social indignado. Tinha que articular, conversar”, lembra o cientista político Milton Lahuerta, que foi professor do prefeito na Faculdade de Ciências Sociais.

No ano 2000, Edinho Silva se elegeu prefeito pela primeira vez e foi reeleito no pleito seguinte. A primeira gestão foi marcada pela criação do Orçamento Participativo, uma bandeira do PT na época, e por avanços nas pautas sociais em Araraquara. Beneficiado pelo cenário político nacional, foi crescendo dentro do PT e se tornou um quadro político influente.

Certa vez, quando já era deputado estadual, convocou o Conselho Administrativo da Santa Casa de Araraquara para uma reunião. “Do que vocês precisam hoje?”, perguntou o petista. Os administradores compartilharam a ideia antiga de construir um Centro de Diagnóstico por Imagem no hospital. O então deputado pediu que eles apresentassem um projeto. Tempos depois, ao analisá-lo, disparou: “Isso que vocês colocaram aqui é o top?” Não, tratava-se de um projeto mediano, mas viável. “Ele negou a proposta”, conta um dos administradores presentes na ocasião. “Pediu que nós fizéssemos um novo projeto, que fosse de ponta, e que mostrássemos o valor final para ele.”

Aconselhou os administradores da Santa Casa a aproveitar enquanto Alexandre Padilha, também petista, era ministro da Saúde. Na época, o “projeto top” foi orçado em 6,3 milhões de reais. “Está bancado”, respondeu Edinho, ao receber a proposta. “Esse projeto vai sair.” O Centro Diagnóstico da Santa Casa de Araraquara é até hoje um dos mais modernos do interior do estado e ajudou a transformar o hospital em referência na região para tratamentos de alta complexidade. Edinho Silva, claro, compareceu à cerimônia de inauguração da unidade, em 2015, ao lado do então ministro da Saúde, Arthur Chioro.

A influência política que conquistou em Araraquara faz com que até os opositores pisem em ovos para criticá-lo. Edna Martins (PSDB), ex-mulher de Edinho e sua concorrente na eleição de 2016, limita-se a dizer que o projeto do petista para a cidade está ultrapassado. “Ele já teve quatro mandatos, eu acredito que a pauta chegou ao limite. Teve muita importância no passado, sem dúvida, mas agora precisamos de algo novo, mais dinâmico e moderno”, diz. Prefeitos de cidades vizinhas o descrevem como um líder nato, uma referência política.

Apesar dos protestos de empresários e comerciantes, o desempenho do prefeito no combate à pandemia aumentou sua popularidade entre o eleitorado mais humilde e de classe média com formação acadêmica. O prefeito consolidou seu perfil de “defensor da vida”, sempre reforçando sua ligação com a ciência e as universidades, e isolou cada vez mais a oposição bolsonarista radical. Durante o primeiro lockdown, carros de som circulavam diariamente pelo Centro de Araraquara com a mensagem “Fora, Edinho!”, desqualificando a medida e propondo que as pessoas não respeitassem o isolamento. No segundo lockdown, isso não aconteceu.

“O Edinho se saiu muito bem nessas medidas, e ele tem consciência de que é importante se projetar nacionalmente. Isso não foi um acidente. Ele se preparou a vida toda para aparecer como liderança nacional e agora isso ganhou materialidade e legitimidade porque ele não está com um preposto. Ele não é mais o ministro da Dilma ou tesoureiro da campanha de alguém. Ele é o prefeito que tomou a primeira atitude em favor do lockdown no país. Convenhamos, não é pouca coisa”, diz Milton Lahuerta. “Eu não falo isso como um elogio barato: o Edinho é o melhor quadro que o PT tem hoje em São Paulo, que entende que a política é um processo de construção de confiança, que não dá para pegar atalhos. O Edinho não dá um ponto sem articular com o seguinte e com uns dez na frente. Ele aprendeu o que é política.”

Mas, como todo político manhoso, o prefeito nega que tenha maiores ambições. “Eu já ocupei todos os cargos que um homem público pode desejar”, diz. Ainda assim, ele não deixa de pensar além das fronteiras municipais. “Na minha avaliação, o Brasil está na contramão da economia mundial”, analisa ele. “Estamos numa grande depressão econômica, um fenômeno mundial. Se você olha o governo Joe Biden, ele não resgatou a Escola de Chicago, ele resgatou Keynes”, diz, referindo-se à eterna disputa entre Milton Friedman, pai do liberalismo da Escola de Chicago, e o economista britânico John Maynard Keynes, que revolucionou o papel estatal na economia. “O Estado precisa investir na retomada do processo produtivo porque lá na frente vamos ter que conter a inflação de qualquer jeito. No município, eu brigo para atrair projetos. Quando ouço alguém falar sobre empresas que querem ampliar uma planta, eu já boto Araraquara na fila.”

Edinho Silva não planeja adotar um terceiro lockdown, mas garante que a maioria da população araraquarense foi favorável às medidas tomadas pela prefeitura. Quem não apoiou, segundo ele, no fundo sabia que as ações eram necessárias. “Mesmo os mais bravos, os comerciantes mais indignados, sabem que a doença está aí. Sabem que, se baixar a guarda, as consequências serão sérias. Só o negacionista que não tem jeito. Não se converte convertido”, diz. Ainda assim, a minoria é barulhenta. Em março, a secretária de Saúde e o próprio prefeito receberam ameaças de morte pela internet. Um usuário do Facebook fez uma publicação perguntando onde Edinho Silva morava e, em seguida, escreveu que iria esfaqueá-lo. A equipe da prefeitura que monitora as redes sociais identificou o autor das ameaças. Fazia parte de grupos de apoio ao presidente Bolsonaro. O prefeito registrou um boletim de ocorrência e a Delegacia de Investigações Gerais identificou outras nove pessoas envolvidas, que já prestaram depoimento. Em abril, o inquérito foi enviado à 3ª Vara Criminal do município.

O presidente Jair Bolsonaro e os bolsonaristas mais encarniçados também não descansam. Assim que o segundo lockdown começou, o prefeito sofreu uma nova onda de ataques. Em 21 de junho, segundo dia do isolamento, o presidente da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), coronel da reserva Ricardo Mello Araújo, foi a um programa de rádio dizer que Edinho Silva executava uma “ação contra a humanidade”, e Araraquara estava em “situação de pós-guerra”. Na entrevista, Araújo alegou que a prefeitura fechara o entreposto local da Ceagesp. Era mentira. O decreto de lockdown manteve abertos os postos de segurança alimentar e assistência.

Na mesma entrevista, o coronel ainda pediu que os apresentadores colocassem no ar um áudio de uma mulher aos prantos. Na gravação, ela dizia que uma moradora de Araraquara havia comido o gato da vizinha por falta de comida. A coordenadoria de proteção aos animais da prefeitura foi atrás da história. Os fiscais identificaram a mulher chorosa, foram até sua casa, num bairro de classe média da cidade, e ela recuou. Disse que tinha apenas ouvido falar da história, mas não tinha como provar. “Nós vamos fazer uma representação no Ministério Público para que ela vá lá e diga quem é a mulher que comeu o gato”, insiste Edinho Silva. “O município tem que agir com rigor, mas chega a ser cômico. É um nível de ataque típico de gabinete de ódio.” Procurado, Araújo,  o coronel que deu publicidade ao áudio do suposto gato devorado, informou que qualquer manifestação só seria transmitida por sua assessoria de imprensa. Em nota, a assessoria disse que os sentimentos de respeito e solidariedade permeiam todas as ações da Ceagesp, mas não disse palavra sobre as declarações do coronel.

A Ceagesp, entidade vinculada ao Ministério da Economia, tem sido abertamente usada pelo governo federal em embates políticos. Em abril, Bolsonaro postou um vídeo em seu Twitter mostrando motos e caminhões em um amplo galpão, alguns com o logotipo do Exército, e escreveu a seguinte legenda: “Nesse momento, comboio parte da Ceagesp rumo a Araraquara/SP, levando alimentos para aqueles vitimados pela política do ‘fique em casa que a economia a gente vê depois’. Nossos parabéns ao coronel Mello Araújo.” A prefeitura entrou em contato com os organizadores para avisar que havia uma rede de distribuição própria de alimentos na cidade, diz Edinho Silva. A tropa do coronel Araújo, no entanto, se recusou a usar o sistema de segurança alimentar do município. Preferiram colocar as pessoas em uma longa fila indiana para entregar os alimentos individualmente. “Claro que tinha um caráter político aquilo. Eles montaram essa cena para dizer que Araraquara fez o lockdown e as pessoas estavam morrendo de fome. O que me deixa mais chocado é uma empresa com a importância da Ceagesp se tornar um aparelho de disputa ideológica”, conclui ele. No começo da pandemia, a Prefeitura de Araraquara montou uma rede de solidariedade para doação de alimentos que já atendeu mais de 20 mil famílias. Procurada, a Ceagesp não explicou por que preferiu ignorar o sistema municipal e limitou-se a dizer que não há motivações políticas em suas ações sociais.

Edinho Silva repete com frequência que tenta, ao máximo, não politizar a pandemia e acusa a gestão de Bolsonaro de fazê-lo. “Eu não posso elogiar o governo federal, por mais que eu tente”, diz. “Só espero que esse atual ministro da Saúde invista na vacinação porque, para o restante, já perdeu o timing. Imagina se o presidente tivesse chamado uma medida de isolamento nacional por uma semana, o Brasil todo unido. Quantas vidas não teriam sido salvas?” Até o dia 25 de julho, contando-se os dezesseis meses de pandemia, os dois lockdowns e ainda um surto da variante Gama, Araraquara tinha 557 óbitos e uma lição a oferecer ao Brasil. Se tivesse um desempenho igual ao da cidade paulista, o Brasil – mesmo considerando a hipótese da repetição do surto da variante Gama em escala nacional, coisa que felizmente não aconteceu – teria poupado, num cálculo bastante pessimista, 63 mil vidas.

No fim da tarde, o pôr do sol fazia entrar uma luz dourada pela janela do gabinete do prefeito Edinho Silva. Apoiado em um dos braços de sua cadeira, ele tentava manter o rosto na sombra enquanto resumia seus pensamentos sobre a polarização política. “Eu não me incomodo com os ataques e nem me intimido. Mesmo aqueles que vêm do presidente. O Bolsonaro se apequena quando faz isso. Ele vai querer atacar um prefeito que está tomando as medidas defendidas pela ciência? O presidente está escolhendo o lado dele. Eu sei qual é o meu”, afirma. “Agora deixa a história julgar.”

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