Trabalhadores do SUS contra os novos manicômios

Políticas de base antimanicomial sofrem ataques contínuos do governo. Mas articula-se movimento em sua defesa. Em fala durante Conferência Municipal de Saúde Mental, em SP, Fernanda Almeida defende: “A liberdade é terapêutica!”

Imagem: Folha
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Avança a resistência contra o desmonte de políticas antimanicomiais promovido pelo governo de Jair Bolsonaro. O campo da Saúde Mental, no Sistema Único de Saúde (SUS), tem sofrido mais retrocessos. Uma portaria cortou o financiamento do Programa de Desinstitucionalização, Para piorar, o ministério da Saúde lançou de um edital que busca a aquisição de hospitais psiquiátricos. Entidades de saúde levantaram-se, então, para combater as medidas que, ao isolar pessoas com problemas de saúde mental, contrariam os parâmetros de cuidado comunitário em liberdade, elaborados pela Reforma Psiquiátrica Brasileira. , Essas resoluções serão debatidas e questionadas hoje (18/4) em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos do Senado.

Mas a luta pelos direitos de pessoas com transtornos mentais se intensifica este ano, durante a Conferência Nacional de Saúde Mental, em novembro, e em eventos regionais preparatórios para ela. O artigo que publicamos abaixo registra a fala de Fernanda Almeida, trabalhadora de um CAPS-AD – serviço de saúde mental do SUS –, na mesa abertura da Conferência Municipal de Saúde Mental de São Paulo, que aconteceu nos dias 25, 26 e 27 de março. Em seu discurso inspirador, Fernanda reafirma alguns dos parâmetros da Reforma Psiquiátrica e chama à radicalidade em tempos de crise sanitária, neoliberalismo e um governo que deseja retornar ao passado com sua política manicomial.

A psicanalista lança, logo no início, um argumento categórico contra os manicômios: nos primeiros meses da pandemia, quando o distanciamento social foi mais intenso, todos pudemos perceber como o isolamento é enlouquecedor. “Agora que todos, de alguma maneira, estiveram isolados, puderam ver que a liberdade é, sim, terapêutica. O confinamento não pode ser sinônimo de tratamento.” Nesse momento, também ficou clara a importância dos profissionais desse campo. Enquanto a crise recrudescia e trabalhadores de postos de saúde e hospitais lutavam para tratar a covid, as Redes de Atenção Psicossocial (RAPS) agiam bravamente em um “meio de campo” para manter os cuidados dos pacientes mais vulneráveis. 

Esse desmonte das políticas de saúde mental que prezam pela liberdade começou em 2017, segundo Fernanda. Uma de suas bases é o financiamento desproporcional de comunidades terapêuticas – frequentemente ligadas a igrejas – em detrimento dos CAPS. “Não é de agora que os governos ultraconservadores buscam, em uma pseudocientificidade psiquiátrica, apoio para suas políticas de controle social de corpos”, escreve ela. As comunidades terapêuticas são, para ela, os novos manicômios. “É preciso compreender que aquilo que está em jogo é a versão atualizada da mercantilização da loucura, ou seja, existem (e sempre existiram) setores da sociedade interessados em abocanhar fatias do fundo público e comercializar estruturas hospitalares e manicomiais de confinamento e controle dos corpos.”

A crítica de Fernanda passa também pelo caráter racista da desestruturação da Rede de Atenção Psicossocial – especialmente quando se trata da política para usuários de álcool e drogas. “Com a proposta de aquilombamento dos serviços de saúde mental, o que se propõe é racializar a escuta terapêutica, compreendendo que esse país é profundamente racista e desigual e que, portanto, a determinação do processo saúde-doença tem um componente racial estruturante.” Ela também cita as mais de 30 mil pessoas em situação de rua – atendidas pelos CAPS –, das quais 70% declaram-se negras ou pardas. 

Num país cada vez mais desigual, enormes fossos separam e segregam algumas populações. E por isso, finaliza Fernanda, “é impossível pensar estratégias de cuidado isoladamente no campo da saúde”. Um primeiro passo para avançar nesse sentido, para ela, é a revogação da emenda constitucional 95, o “teto de gastos”, que congelou gastos públicos por 20 anos. “É preciso viabilizar reformas estruturantes, tais como a reforma agrária e a reforma urbana. Dizíamos [já em 1987, durante a primeira conferência de saúde mental] que era fundamental garantir os empregos. Sabíamos que era necessária a articulação de todos os direitos (saúde, educação, moradia, cultura etc) para garantir uma saúde ampliada. Será que não é hora de recuperarmos esse mesmo engajamento político no campo da saúde?”

[Apresentação: Gabriela Leite]

Abertura da Conferência Municipal de Saúde Mental

A Política de Saúde Mental como Direito: pela defesa do cuidado em liberdade, rumo a avanços e garantia dos serviços da atenção psicossocial no SUS.

Bom dia a todas, todos e todes, é com emoção que eu saúdo todos(as) os delegados(as) desta 4ª Conferência Municipal de Saúde Mental da cidade de São Paulo. Esse é um momento muito especial para todos nós, o retorno presencial das conferências participativas.

Como importantes espaços participativos, as conferências fazem parte do legado democrático deste país. Democracia e direitos humanos são os nossos pilares. O campo da saúde mental inexiste na ausência ou fragilidade destes.

É para mim uma honra imensa ocupar esse lugar. Estou verdadeiramente emocionada e agradecida. Sou servidora pública municipal de um CAPS-AD, sou trabalhadora do SUS e me orgulho em compor a enorme teia de trabalhadores, usuários, familiares e militantes da luta antimanicomial desta cidade. Agradeço a confiança da comissão organizadora desta 4ª Conferência Municipal de Saúde Mental que me confiou a tarefa importante de fazer, juntamente com o meu querido companheiro Emiliano Camargo de David, esta fala de abertura. Sei da responsabilidade histórica e política deste espaço que me foi concedido, espero estar à altura. Foram 8 anos desde a última conferência municipal, em 2013, ano emblemático na história recente do país. São 35 anos desde a I Conferência Nacional de Saúde Mental de 1987.

Vivemos tempos de guerra, pandemia, recessão financeira e econômica, austeridade, desemprego, fome e opressões. A destrutividade nos amedronta e nos faz pensar na finitude da vida humana, e do próprio planeta. Ao mesmo tempo, a engrenagem cínica do capitalismo dissimula com sua ideologia negacionista, e quer nos fazer crer que tudo é normal, e assim seguirá, normalmente. Nosso campo sempre foi “anormal”! O campo antimanicomial sempre foi diverso, plural e sempre apostou na diversidade: as populações LGBTQIA+, as populações indígenas, quilombolas, enfim, um campo diverso que constrói e que acolhe afetiva e eticamente a diversidade e os modos de ser, viver e amar. Sabemos bem que a “normalidade” como valor político, estético, ético e moral dá sustentação para as propostas asilares e manicomiais, desde sempre.

Não nos resta outra alternativa: É preciso radicalizar, é preciso construir fissuras nas estruturas de poder político e social. É preciso denunciar o esvaziamento político do campo antimanicomial, e consequentemente a dissociação da determinação social do sofrimento. As condições materiais da vida social, sob a égide do neoliberalismo, impõem as novas manifestações sintomáticas que imprimem o mal-estar deste nosso tempo. A razão neoliberal, como forma de sociabilidade, coloniza as subjetividades e impõe as novas formas do sofrer e consequentemente do adoecer. Nesse sentido, é imprescindível resgatar o caráter classista, radicalmente humanitário e revolucionário da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Esse sempre foi o fundamento, o espírito e a imago da luta antimanicomial.

Reforma sanitária e reforma psiquiátrica (Carta de Bauru)

Buscar o referencial na história é estabelecer um nexo entre passado, presente e futuro. Resgatar os princípios do SUS, fruto do movimento da reforma sanitária. Recuperar as bases da luta antimanicomial que estão descritas na famosa Carta de Bauru de 1987. É tempo de restabelecer e resgatar o sentido e a radicalidade que animou os trabalhares(as), os usuários(as), a sociedade civil como um todo, quando afirmaram na carta de Bauru: “O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida.”

Conjuntura em que acontece a Conferência

De lá para cá muita coisa aconteceu. O SUS resiste bravamente. O Sistema Único de Saúde Brasileiro, diante de seu maior desafio, resiste. Resiste pela força de seus trabalhadores, resiste por ter em seu DNA as bases de uma estrutura radicalmente democrática. Resiste ao esvaziamento dos espaços de participação social. Resiste pela força do controle social que hoje viabiliza esta conferência, que foi precedida por outras 27 pré-conferências territoriais (além das demais que acontecem em todo país). O SUS resiste mesmo que a tônica palaciana do governo federal seja de negação, desinformação, desinvestimento, ausência de diretriz e ausência de política de proteção social.

Realizamos a 4ª Conferência Municipal de Saúde Mental no contexto da maior crise sanitária dos nossos tempos. As crises se avolumam em nosso país. Uma crise política sem precedentes na história, uma crise social que empurra o país para a fome, uma crise ambiental que coloca em xeque a finitude do planeta, a

crise sanitária que já matou milhares de pessoas. Temos (ou deveríamos ter) um país enlutado, são 658 mil mortos. “E o que tudo isso tem a ver com saúde mental?” – alguns poderiam me dizer. Eu pergunto: é possível ter saúde mental em um momento histórico tão hostil? O que significa ter saúde mental neste contexto? Quem acolherá a dor inominável do luto? Quem acolherá o desamparo dos órfãos da pandemia?

No período de maior isolamento social, no começo da pandemia, muitas pessoas reclamaram, legitimamente, do insuportável do confinamento. Foi-lhes indicado investir tempo em atividades lúdicas, nas artes, nas práticas terapêuticas, no autocuidado. Todos puderam perceber como o isolamento é enlouquecedor. E eu dizia, o nosso princípio de cuidado em liberdade ressalta muito isso. Agora que todos, de alguma maneira, estiveram isolados, puderam ver que a liberdade é, sim, terapêutica. O confinamento não pode ser sinônimo de tratamento.

Enquanto os olhos do mundo, legitimamente, estavam voltados para a ampliação de leitos de UTI, nós trabalhadores das Redes de Atenção Psicossocial sabíamos da importância do nosso trabalho, não como linha de frente, mas como uma espécie de meio de campo. A corrida contra o tempo marcou os primeiros meses de trabalho deste período pandêmico: reorganizamos os projetos terapêuticos singulares; levamos a medicação até as casas das pessoas isoladas; monitoramos, ao modo que nos foi possível, as condições de saúde (física e mental) dos mais frágeis e vulneráveis; pensamos e construímos as alternativas para as pessoas em situação de rua. Sustentamos as inseguranças dos pacientes que utilizam e necessitam diariamente dos atendimentos dos CAPSs e demais serviços especializados; construímos espaços que garantissem o sigilo nos atendimentos e, ao mesmo tempo, o distanciamento social e as condições sanitárias seguras para os usuários e para nós. Não nos esqueceremos que abraços, apertos de mão e saudações mais efusivas – que marcam o cuidado afetivo que oferecemos – foram ao longo desses quase dois anos sendo substituídos por máscaras, álcool em gel, água e sabão, além dos olhares amedrontados diante de qualquer espirro ou tosse.

Ao mesmo tempo, graças à convicção ético-política dos trabalhadores, vimos que foi possível garantir uma clínica potente, um trabalho em rede estruturado. A articulação territorial e comunitária sustentou aquilo que potencialmente fundamenta a RAPS (Redes de Atenção Psicossocial), e em especial os CAPSs, ou seja, o cuidado em liberdade, o acolhimento do sofrimento psíquico e o respeito às diferenças. Que a nossa conferência tenha espaço para discutir o retorno ao presencial. E que tenhamos condições de avaliar e propor as mudanças necessárias.

São inegáveis e indiscutíveis os avanços e as conquistas, desde a Reforma Psiquiátrica com a aprovação da Lei 10.216/2001. Temos um legado, mas ao mesmo tempo é necessário avaliar e discutir o lugar da saúde mental na atenção primária em saúde. A fragmentação e focalização podem, por vezes, segregar os usuários da saúde mental, limitando seus atendimentos tão somente aos CAPSs, tirando-lhes a circulação por toda a rede de saúde. Temos falado do “CAPSCENTRISMO”. Que os CAPSs não percam sua natureza de serviço comunitário e de articuladores da rede ampliada de saúde. Que o trabalho em grupo possa voltar mais forte e enraizado. Que o princípio da liberdade continue sendo nosso farol.

Mas, verdade seja dita, ainda que o contexto pandêmico traga tanta destrutividade, o desmonte da saúde mental não começou agora. Mais precisamente, desde 2017, uma sucessão de eventos vem tomando de assalto o campo da luta antimanicomial e antiproibicionista. Uma sequência de ataques à Política de Saúde Mental, assim como mudanças de rumo na Política e nas ações relativas ao campo das políticas sobre Álcool e outras Drogas, a exemplo do desproporcional financiamento das comunidades terapêuticas em detrimento do aporte de recursos financeiros para os CAPS-AD. Não é por acaso que a mais exorbitante ofensiva seja no campo de álcool e drogas. Não é de agora que os governos ultraconservadores buscam, em uma pseudocientificidade psiquiátrica, apoio para suas políticas de controle social de corpos. É preciso desmistificar a polêmica da incompatibilidade entre redução de danos e abstinência. No centro do tratamento deve estar o desejo dos usuários. Nesse sentido, defendemos uma concepção de redução de danos que expresse uma ética. A ética do cuidado! Radicalmente diferente do que é imposto pelas comunidades terapêuticas de cunho religioso. Os relatórios de vistoria realizados apontam as graves violações de direitos humanos em todo país; algumas dessas comunidades agem lamentavelmente como espécie de “milícias” no campo da saúde mental.

É preciso ainda lembrar que o golpe jurídico-parlamentar-midiático de 2016 trouxe consequências políticas e técnicas para a área da saúde. A famigerada Emenda Constitucional nº 95, fruto da “PEC da morte”, impôs o congelamento dos gastos públicos; no entanto, o sub e o desfinanciamento do SUS não poderiam ocorrer sem que fossem destruídas por dentro as estruturas que dão sustentação àquele que é um dos sistemas públicos de saúde mais robustos em todo o mundo. A Política de Saúde Mental brasileira, construída com uma sólida base antimanicomial, é uma dessas estruturas que o governo federal busca agora destruir. É preciso revogar imediatamente esta emenda austera e antidemocrática.

Vivemos momentos extraordinariamente disruptivos e que têm trazido tanta dor e sofrimento. Os resultados objetivos e subjetivos dessa sucessão de tragédias inundam os serviços de Saúde Mental em todo o país. Sou trabalhadora de um Centro de Atenção Psicossocial, na modalidade álcool e drogas (CAPS-AD) que ainda resiste sob Administração Direta; isso porque, aqui na cidade de São Paulo, a maior parte dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial é administrada pelas Organizações Sociais (OSs), uma outra peça importante na conjuntura. Como mencionei, o desmonte no campo da saúde mental não é recente, a destruição do serviço público estatal é parte dessa engrenagem e vem de longa data.

É preciso fazer a crítica ao modelo de gestão pautado, quase exclusivamente, na terceirização. Tenho muito respeito pelo trabalho técnico desenvolvido por companheiras e companheiros das OSs (meus colegas trabalhadores e trabalhadoras). Quando indico que é necessário fazer a crítica, não se trata de desmerecimento quanto ao trabalho desempenhado. Minha crítica é ao modelo de gestão adotado.

Sem dúvidas, as terceirizações no campo da saúde são peça principal, no tabuleiro político-administrativo, para a compreensão dos mecanismos destrutivos que corroem o SUS por dentro. Ousadia, audácia, irreverência, criatividade, perenidade, constância são fundantes do modelo antimanicomial; no entanto, posso afirmar: a loucura não cabe na “métrica” dos engessados e burocráticos contratos de gestão, que impõem aos seus trabalhadores a padronização, o “planilhamento” e a alienada produtividade, alheia ao tempo psicossocial necessário para o acolhimento mais cuidadoso.

Por isso é importante reafirmar a valorização dos serviços públicos estatais, com a ampla e imediata abertura de concursos públicos. É urgente um amplo processo de formação permanente, com financiamento de planos de supervisão técnica.

Questão AD / Novo manicômio

Por essas e outras, o manicômio se metamorfoseia. O contexto é novo, mas a estratégia é velha. Temos assistido à pressão pela volta dos hospitais psiquiátricos. Podemos afirmar que, de alguma forma, eles se reatualizam, por exemplo na versão comunidade terapêutica. É preciso compreender que aquilo que está em jogo é a versão atualizada da mercantilização da loucura, ou seja, existem (e sempre existiram) setores da sociedade interessados em abocanhar fatias do fundo público e comercializar estruturas hospitalares e manicomiais de confinamento e controle dos corpos.

Evidentemente que esse modelo arcaico e carcerário não deveria receber a alcunha de tratamento; entretanto, ele ganha um verniz neoliberal reificado em práticas higienistas, no contexto da narrativa falaciosa da eficiência e da resolutividade da iniciativa privada em comparação com o serviço público que se quer destruir. A contrarreforma proposta pelo governo federal, que instituiu a “nova política de saúde mental de 2019”, se alinha aos interesses dos setores profissionais que defendem modelos hospitalocêntricos segregados e hierarquizados em estruturas biomédicas, radicalmente opostos àqueles modelos preconizados pelos princípios da Reforma Psiquiátrica os quais agora, no contexto da COVID-19, precisam ser defendidos acima de tudo. Na noite de ontem, o Alex (Alexander Navarro) trouxe os dados numéricos sobre a quantidade de pacientes institucionalizados que ainda residem sob o velho modelo. Ainda não concluímos nossa tarefa de fechar os manicômios!

A desestruturação do serviço de saúde mental, cindindo o atendimento psiquiátrico da atenção psicossocial e da reabilitação é o que dá fundamento à gênese do modelo manicomial. Ou seja, desde os tempos de Nise da Silveira, o tratamento aos pacientes com agravos mentais é palco de disputas e concepções. Nise, àquela época, já demonstrava que setores da psiquiatria tradicional pareciam não dar qualquer importância aos reais problemas dos sujeitos que atendiam e, com isso, promoviam uma espécie de apagamento das subjetividades, que era a marca dos pacientes internados nesses manicômios. O modelo ambulatorial, ao qual a gente deve resistir, em nada difere daquele antigo e já ultrapassado modelo cindido de acolher os pacientes psiquiátricos. E por falar em cisão, ironicamente ou não, a proposta fragmentária parece um espelho da desestruturação psíquica que “eles” buscam, com “remédios”, reparar. A ultra medicalização, por vezes, tem sido a alternativa de tratamento. É preciso fazer essa denúncia.

Por outro lado, é importante assinalar a face invisibilizada e ainda mais cruel desse processo. Refiro-me ao fato de que uma parcela significativa da população atendida no serviço de Saúde Mental é composta por pessoas negras ou pardas. O último Censo Rua de 2022, por exemplo, identificou que 70% da população em situação de rua se autodeclarou como negra ou parda. Temos um contingente de 31.884 pessoas vivendo nas calçadas e nas praças da cidade. Assim, desestruturar a Rede de Atenção Psicossocial, substituindo-a por serviços baseados em modelos asilares e manicomiais, é acentuar ainda mais a violência e controle de corpos negros submetidos desde sempre à lógica eugenista e manicomial. Os usuários do CAPS-AD têm cor, o povo de rua tem cor, os pacientes dos manicômios têm cor, a raiz desse fenômeno está no âmago do racismo estrutural e colonial.

A luta antimanicomial em intersecção com a luta antirracista vêm produzindo um importante acúmulo discursivo sobre a necessidade de desvelar essa chaga secular. Com a proposta de aquilombamento dos serviços de saúde mental, o que se propõe é racializar a escuta terapêutica, compreendendo que esse país é profundamente racista e desigual e que, portanto, a determinação do processo saúde-doença tem um componente racial estruturante.

Vulnerabilidades / Periferia / População de rua

Conquistamos e construímos as RAPSs – Redes de Atenção Psicossocial – mas ao mesmo tempo temos uma população mais empobrecida e mais vulnerabilizada. Os Projetos Terapêuticos Singulares (PTSs) precisam levar em consideração a real condição de vida dos usuários. Os PTSs não podem ser simples “agendas” de atividades recreativas e terapêuticas mas, sim, dispositivos concretos que apoiem os usuários (individual e coletivamente) a enfrentarem os desafios da vida como um todo. Portanto, a reabilitação psicossocial como estratégia de geração de emprego e renda é fundamental.

Nossa cidade é territorialmente marcada pelas contradições de classe. A distância entre os faria limers e os homens e mulheres de rua do largo da batata, da cracolândia na região da Luz ou os jovens negros e periféricos das regiões mais afastadas do centro não pode ser medida em metrôs ou quilômetros. Há um fosso que os separa. A necropolítica – objetivada pelo “deixar morrer” ou pela perseguição das forças de repressão do Estado aos jovens negros e pardos – tem deixado suas marcas objetivas e subjetivas. Perguntem aos trabalhadores dos CAPS IJ (Infanto Juvenil) das periferias quais são os relatos dos meninos e das meninas atendidos (as) e vocês terão uma cartografia contemporânea da segregação étnico-racial. Eu fico pensando: “Como escutar e acolher tamanha violência sem se implicar?”

Ao mesmo tempo, em todas as regiões da cidade, é perceptível o aumento significativo da população em situação de rua. Fala-se de uma crise humanitária. Uma população adoecida que requer uma rede de saúde potente para um cuidado ampliado. Por isso é fundamental discutir o papel da Atenção Primária em Saúde no contexto das Redes de Atenção Psicossocial – conforme afirmei anteriormente.

Como diz o documento norteador desta Conferência, “a população em situação de rua necessita da ampliação das ofertas e estratégias de moradia para pessoas com transtornos mentais em situação de vulnerabilidade, com ampliação e implantação de equipamentos intersetoriais”. É fundamental assumir a bandeira do Movimento Nacional da População em Situação de Rua,

“Casa Primeiro”, baseada na concepção do “house first”. Ampliar a oferta de moradia, diversificar nas formas do morar.

Nesse sentido, é impossível pensar estratégias de cuidado isoladamente no campo da saúde. A intersetorialidade não pode ficar apenas à mercê dos esforços dos técnicos dos trabalhadores. Intersetorialidade se faz com investimentos públicos em políticas sociais. Fortalecer a rede de Assistência Social é fundamental. Defender o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) como um agente fundamental da RAPS.

Assim, é fundamental romper com o modelo ambulatorial, centrado na doença e no diagnóstico, é urgente resgatarmos o sentido do cuidado de base territorial pautado na integralidade. É necessário recuperar a noção da determinação do processo saúde-doença e o conceito de saúde ampliada. Em 1987, na primeira conferência de saúde mental, ousamos dizer que era preciso viabilizar reformas estruturantes, tais como a reforma agrária e a reforma urbana. Dizíamos que era fundamental garantir os empregos, sabíamos que era necessária a articulação de todos os direitos (saúde, educação, moradia, cultura, etc.) para garantir uma saúde ampliada. Será que não é hora de recuperarmos esse mesmo engajamento político no campo da saúde?

Homenagem

Por fim, mas não menos importante, eu gostaria pedir licença e fazer uma homenagem (assim como fiz na pré-conferência da minha região) a um paciente que faleceu em 30 de agosto do ano passado. Um homem com um quadro de adoecimento grave que mobilizou toda a rede de saúde. CAPS II, CAPS III, UBS (Unidade Básica de Saúde) – equipe EMAD (Programa Melhor em Casa), equipe de ESF (Estratégia Saúde da Família), programa PAI (atendimento ao Idoso). Foi uma luta dele, nossa e de sua família. No dia do seu sepultamento, seu irmão me ligou e disse: “vocês nunca desistiram dele, mesmo quando ele parecia ter desistido. Obrigado, meu irmão se foi, mas hoje eu entendo como o SUS funciona”. Essa é a força do nosso trabalho! Esse é a força do SUS!

Teremos dois longos dias de debates e discussões. Temos um longo e potente caderno de propostas, muitas destas propostas são fundamentais para avaliação, revisão e ampliação da RAPS; no entanto, poucas questionam as bases estruturais. Convido todas e todos a se autorizarem o exercício da radicalidade. Teremos ao longo do ano a oportunidade de mudança. Em todo país, conferências de saúde mental estão sendo realizadas. O campo da luta antimanicomial, no alvorecer da democracia, depois dos 20 anos de ditadura, ajudou a construir a arena democrática. Em nosso tempo, ao nosso modo,

podemos ser agentes desta mudança de agora, tão necessária para o futuro democrático do nosso país.

Faço um último pedido: Não nomeiem mais as atitudes perversas de alguns políticos como loucura. Dos loucos nós cuidamos e acolhemos; a perversão do fascismo nós combatemos!

Saudações antimanicomiais, antiproibicionistas, antirracistas e anticapitalistas a todas e todos. Manicômio nunca mais! A liberdade é terapêutica!


1 Parte das ideias aqui apresentadas foram anteriormente publicadas no texto: O ataque à Saúde Mental, para além dos números. Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/o- ataque-a-saude-mental-para-alem-dos-numeros/

2 Fernanda Almeida é assistente social, coordenadora do curso de Pós-Graduação em Serviço Social e Saúde da FAPSS-SP. Atua na Rede Pública de Saúde (SUS) em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD). Psicanalista clínica em formação, aluna do Curso Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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