Drogas: a resistível ascensão de comunidades terapêuticas

Estudo radiografa as instituições que executam principal política do Estado bolsonarista para o abuso em psicoativos. São dominadas por grupos religiosos e nada evidencia que funcionem – mas recebem cada vez mais recursos públicos

Foto: Vitor Shimomura/Agência Pública
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Um modelo único de cuidado de pessoas com uso problemático de álcool e drogas foi escolhido como o principal favorecido por políticas públicas, especialmente desde 2016: as comunidades terapêuticas (CTs). São espaços de cuidado centrados na abstinência e no isolamento, e fortemente ligados a igrejas. A falta de definição de sua real atuação, bem como a escassez de evidências científicas de que suas práticas funcionem, levanta grandes questionamentos em relação a essa transferência de recursos públicos. 

Ao perceber que o financiamento de comunidades terapêuticas vem aumentando, especialmente desde 2016, um grupo de pesquisadores decidiu investigar o fenômeno. O relatório Financiamento público de comunidades terapêuticas brasileiras entre 2017 e 2020, produzido pela Conectas Direitos Humanos e Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), foi lançado na segunda-feira (10/5) em evento virtual com a presença de pesquisadores e especialistas. O documento busca jogar luz numa política obscura em termos de financiamento, planejamento e fiscalização.

Ao levantar os números de repasses do governo federal, dos estados e municípios às CTs, os pesquisadores descobriram que o investimento entre 2017 e 2020 foi de R$ 560 milhões – sendo R$ 300 milhões da União. “A tendência mais provável é que o investimento continue crescendo, especialmente por parte do governo federal, que faz do repasse às CTs o eixo principal de sua política de cuidado a quem faz uso problemático de drogas”, preocupam-se os pesquisadores. 

Em 2011, um passo perigoso foi dado na legislação, dando início a esse fenômeno. “[As comunidades terapêuticas] foram incluídas, com uma função não muito bem definida, na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) por meio da Portaria 3.088 do Ministério da Saúde, e tiveram suas normas gerais de funcionamento sanitário definidas pela Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 29 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).” Desde então, os repasses têm aumentado ano a ano, tendência que fica clara já no Plano Plurianual de 2015.

Comunidades terapêuticas, segundo define o estudo, “são entidades privadas que realizam acolhimento residencial temporário de pessoas que fazem uso problemático de drogas”. Têm como práticas centrais o isolamento e a abstinência total e estão geralmente localizadas nas periferias urbanas ou em áreas rurais. “Sua abordagem está ancorada no tripé trabalho-disciplina-espiritualidade, sendo a adoção da laborterapia (exercício de atividade de trabalho como forma de atingir objetivos terapêuticos) e do cultivo da espiritualidade, notadamente cristã, uma constante de seu projeto terapêutico.”

A pesquisa expõe algumas das críticas mais frequentes a esse modelo e ao seu financiamento público. Em primeiro lugar, porque fere o princípio da laicidade. Mas também porque não há quase nenhum estudo capaz de mostrar que essa abordagem traz benefícios. “São comuns as dificuldades relativas à adesão do tratamento medicamentoso, os abandonos precoces e as altas taxas de recaídas, em especial quando estão presentes fatores como pobreza, carência de suporte familiar e comorbidades psiquiátricas”, afirmam os pesquisadores. A porcentagem de pessoas que volta a ter problemas com drogas meses depois é de 40% a 60%, conta o estudo.Enquanto favorece essa abordagem que restringe a liberdade, o governo Bolsonaro ataca iniciativas ligadas à reforma psiquiátrica. Em março, acabou com o financiamento do Programa de Desinstitucionalização Integrante do Componente Estratégias de Desinstitucionalização da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Defensores da luta antimanicomial criticam essa atitude. “Agora que todos, de alguma maneira, estiveram isolados, puderam ver que a liberdade é, sim, terapêutica. O confinamento não pode ser sinônimo de tratamento”, refletiu Fernanda Almeida, em artigo publicado em abril, no Outra Saúde.

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